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A fórmula vencedora dos Camisas Negras do Vasco da Gama

Bruno Pagano 7 de abril de 2024

O centenário da Resposta Histórica

Em 2024, comemoramos o centenário da Resposta Histórica. Um evento determinante para a construção do legado do Vasco e de sua ideia assimiladora. A trajetória da histórica equipe vascaína, além de promover inclusão das camadas populares num jogo aristocrático, mostrou uma fórmula que, dez anos depois, serviria como inspiração para algumas das reivindicações pela Profissionalização do Futebol, oficializada em 1933.

O ofício nº 261, popularmente conhecido como “Resposta Histórica”, foi produto de uma reunião em que se aprovou por unanimidade o conteúdo da carta e o posicionamento que a acompanhava, em texto escrito pelo presidente José Augusto Prestes e enviado para a Federação e os periódicos da época, com certeza e coragem para defender seus jogadores, ainda que esse posicionamento trouxesse prejuízos esportivos, econômicos e políticos ao Clube. Na carta, o Vasco desistia de sua inscrição na AMEA, alegando não aceitar a condição de excluir seus 12 jogadores da equipe, sendo sete deles do 1º quadro, titulares, todos eles representantes das camadas populares da cidade ou oriundos de times de fábrica, excluídos sem direito a qualquer defesa.

Não raro, ao tentar explicar o sucesso experimentado pelos Camisas Negras, a grande maioria dos materiais produzidos concentra sua explicação apenas em um suposto comportamento técnico e tático da equipe, ou mesmo pelo condicionamento físico. É fato que o Vasco de Ramón Platero, em 1923, trouxe um novo sistema de treinamento tático, técnico e físico que não era percebido no Campeonato. Também é fato que os atletas vascaínos, técnica e fisicamente, sobravam nas partidas, pois estavam melhor preparados para a exigência física que os jogos ofereciam e treinavam para isso, demonstrando dentro de campo esse preparo com os muitos resultados construídos na segunda etapa das partidas. Como diziam os jornalistas da época, o Vasco “cozinhava” os adversários para comer no segundo tempo.

No entanto, existe uma fase anterior que articulou a estrutura oferecida a estes atletas e que equiparou as condições de jogadores das camadas populares com as condições de atletas da alta sociedade, que dispunham das melhores condições para fazer seu jogo. Em outras palavras, houve uma movimentação vascaína para articular as condições materiais que pela primeira vez na história do futebol brasileiro, colocaria brancos e pretos, ricos e pobres, letrados e analfabetos em condições minimamente isonômicas de disputa, perpassando 5 pontos principais: vínculo empregatício, alimentação, treino remunerado, descanso remunerado e letramento.

Ao longo desse novo material produzido pelo autor para a coluna Expresso Cascadura, não nos concentraremos em debater o conteúdo da Resposta Histórica, já exaustivamente estudada por grandes pesquisadores, ou mesmo da Réplica à Resposta Histórica, escrita pelo presidente do Fluminense e da AMEA, Arnaldo Guinle. Em vez disso, aqui serão trazidas reflexões sobre pontos fundamentais que ajudaram a construir uma estrutura que podemos chamar de “semiprofissional” para que houvesse um título, o do Campeonato Carioca de 1923, e uma resposta, o ofício número 261, que entrou para a história marcando a posição vascaína contra o racismo, o preconceito social e a xenofobia da liga, e que agora chega ao seu centenário como um grande símbolo da luta contra a discriminação no esporte brasileiro.

Condições materiais: a fórmula vencedora dos Camisas Negras do Vasco da Gama

A estrutura organizada pelo Vasco, buscando colocar seus atletas em igualdade de condições contra os chamados “grandes clubes” e seus atletas, mostrou um protótipo de uma organização profissional dentro de um regime amador, reunindo condições materiais que possibilitaram, como nunca antes, uma disputa isonômica entre os jogadores.

Os sportmen da Primeira República, membros da alta sociedade carioca que representavam, em grande parcela, os clubes da elite aristocrática do esporte na Capital, especialmente America, Botafogo, Flamengo e Fluminense, e que dispunham de condições materiais que os colocavam em vantagem física, como o número de refeições realizadas por dia, horas de sono e descanso aproveitadas e o (pouco) tempo gasto com trabalho/estudo, teriam que competir em igualdade de condições contra os representantes do estratos sociais antes excluídos do jogo. É verdade que alguns destes clubes já contavam com atletas das camadas populares em suas fileiras, mas sempre em número bem menor do que os atletas afortunados. Com a estrutura montada pelo Vasco da Gama, oferecendo treino, descanso, alimentação, emprego e letramento, o Clube encontrava meios não somente para fornecer mecanismos que estimulavam o condicionamento físico e a saúde dos atletas, pagando pelos treinamentos, pela concentração e descanso nos dormitórios da rua Morais e Silva e custeando toda a alimentação, como também articulava soluções para conseguir inscrevê-los na liga, driblando as resoluções de natureza excludente que operavam através de marcadores sociais conhecidos.

Como se sabe, alguns dos instrumentos utilizados para frear a ascensão de atletas das camadas populares na Liga Metropolitana era a condição moral de seus empregos e a capacidade de ler e escrever. Desde a segunda metade dos anos 10, as resoluções nesse sentido vinham se encorpando dentro dos estatutos da liga. Jogadores que trabalhavam em empregos de especialidade manual, por exemplo, como operários, motoristas ou peixeiros, como foram alguns dos Camisas Negras, tinham dificuldade em passar pelo crivo da liga, que podia alegar ausência de moralidade no vínculo empregatício apresentado pelo atleta como condição de inscrição. Da mesma forma, no ato de inscrição e nas súmulas de cada jogo, os atletas tinham que assinar algumas informações, como o próprio nome, provando que sabiam ler e escrever corretamente. Esses mecanismos eram ativados a partir da ideia de moralidade que vinha dos entusiastas do chamado amadorismo puro, e a justificativa institucional era a de lutar contra a profissionalização do esporte. Por trás dos panos, o verdadeiro interesse da liga, instrumentalizada pelos grandes clubes, era o de impedir que clubes majoritariamente formados por atletas das camadas populares, tecnicamente superiores, pudessem competir e vencer o Campeonato Carioca. A retórica utilizada pelas federações da época se utilizava de dois importantes marcadores sociais, como emprego e letramento, para impedir a inscrição de determinados grupos.

Mas o Vasco jogava com o regulamento debaixo do braço. Driblando as resoluções racistas e elitistas da Liga Metropolitana, que seriam ampliadas pela AMEA em 1924, o Vasco articulou meios para inscrever seus atletas para o Campeonato de1923. Se os jogadores precisavam saber ler e escrever, então o Vasco iniciou aulas de português para aqueles que tinham dificuldade, comandadas pelo bibliotecário do Clube, o Sr. Custódio Moura. Se a questão era o emprego que tinham antes do Vasco, então os sócios vascaínos, donos de empreendimentos, ofereciam oportunidades melhores em seus comércios. Foi assim que várias figuras da equipe de 1923 passaram a trabalhar nos empreendimentos de alguns sócios do Vasco, como nas lojas da família Portella, da família Campos, de Adriano Rodrigues dos Santos e outros importantes dirigentes do Clube.

Contra a estrutura armada pelo Vasco, a Liga Metropolitana nada podia fazer. Os jogadores comiam bem, dormiam bem, treinavam todos os dias, arrumavam empregos de acordo com a moralidade exigida e aprendiam a assinar as provas de letras e as súmulas. Os ataques direcionados à prática vascaína logo se carregaram de preconceito. Algumas se destacavam denunciando que aqueles homens, antes do Vasco, trabalhavam recebendo gorjetas, como os motoristas. Portanto, não reuniam as tais condições morais de competir entre os nobres cavalheiros das outras equipes. Outras alegavam que os jogadores vascaínos nem trabalhavam mais, já que muitos diretores do grêmio da Cruz de Cristo liberavam seus novos empregados do trabalho para se dedicarem aos treinos. Com a ótima campanha do Vasco nos primeiros jogos, as denúncias aumentaram, e o medo de um clube popular conquistar o Campeonato também. Uma preocupação que se tornou realidade ao fim do certame de 1923.

Pela primeira vez na história do Campeonato Carioca, uma equipe como o Vasco, representante popular da Zona Norte do Rio de Janeiro, formada por jogadores que nunca tiveram condições de disputar o título em clubes menores, começava o campeonato com as mesmas vantagens estruturais percebidas em outras instituições. Mas o contexto do esporte naquele momento não indicava privilégios aos jogadores vascaínos, e sim igualdade. Como bem definiu Mario Filho, em sua obra O Negro no Futebol Brasileiro,

“Desaparecera a vantagem de ser de boa família, de ser estudante, de ser branco. O rapaz de boa família, o estudante, o branco, tinha de competir, em igualdade de condições, com o pé-rapado, quase analfabeto, o mulato e o preto, para ver quem jogava melhor”

O contexto esportivo e a lei dos homens

Entre 1906 e 1922, todos os projetos esportivos vitoriosos no campeonato da cidade do Rio de Janeiro, o Campeonato Carioca, contavam com clubes cuja as equipes se utilizavam, na grande maioria, de atletas brancos, ricos e letrados, reunindo condições materiais que privilegiavam seu jogo. Foi assim em todos os títulos do Campeonato Carioca até então, monopolizado por equipes como America, Botafogo, Flamengo e Fluminense. Até 1922, a melhor colocação de uma equipe popular no torneio aconteceu em 1916, com o Bangu, quando conquistou o 3º lugar. O perfil social das equipes formadas pelos campeões cariocas era claro: em sua maioria, atletas vindos de famílias com prestígio no meio social, muitos estudantes de cursos tradicionais como direito e medicina, com amplas condições para dispor de uma melhor alimentação, um melhor e mais confortável tempo de descanso, e muito tempo livre para treinar, já que alguns nem mesmo precisavam trabalhar, apenas estudavam. Uma vez trabalhando, estes atletas receberam ao longo da vida todo um conjunto de privilégios que os permitiu ocupar funções do mercado de trabalho consideradas de esforço intelectual e associadas ao sucesso, e jamais teriam a moralidade de sua profissão questionada, como tiveram alguns atletas vascaínos.

O fato é que os valores morais da classe burguesa na época, simplesmente não permitiam, entre outras coisas, que o jovem estudante, universitário ou não, trabalhasse em qualquer profissão. Naquela época, o estudante/trabalhador era muito pouco aceito pela sociedade. Conciliar ou tentar conciliar o trabalho com os estudos era sinal de pobreza; portanto, a sociedade não teria o mesmo respeito pelo estudante e pelo estudante/trabalhador. (Waldenyr Caldas em O Pontapé Inicial, p. 74).

Era preciso equilibrar as condições materiais e a estrutura. Esse foi o grande segredo dos Camisas Negras, para além do enorme talento dos jogadores. E também o principal argumento utilizado pela AMEA em 1924, para excluir os atletas vascaínos e não cometer o mesmo erro cometido pela LMDT em 1923, quando se viu sem argumentos para impedir a inscrição destes atletas pretos, pobres e analfabetos, que mesmo desacreditados pela imprensa, atuando por uma equipe que vinha da 2ª divisão, quebraram o monopólio de títulos dos clubes ricos da Liga em sua primeira experiência na divisão principal.

A mudança para uma resolução mais firme contra as camadas populares até ensaiou partir de dentro da própria LMDT, quando Mario Pollo, representante do Fluminense, levou a questão para a liga apresentando proposta de reformulação do estatuto, sendo imediatamente rechaçado pelo teor preconceituoso da medida, sobretudo pelos dirigentes dos pequenos clubes. Assim, o amadorismo sobrevivia a partir de uma noção falida de moralidade, que já não conseguia esconder seus objetivos políticos excludentes e as tentativas de afastar os estratos sociais menos abastados do jogo. Findado 1923 com a vitória de um clube popular, a alternativa política dos grandes era deixar a LMDT e fundar uma nova liga em que os grandes clubes voltassem a ser os “donos da bola”. Na AMEA, as leis que privilegiavam o amadorismo seriam encorpadas, e uma Comissão de Sindicância, que avaliaria a inscrição dos jogadores, seria instaurada para garantir os interesses dos fundadores.

Camisas Negras
Fonte: reprodução

Os 5 pontos estruturais que levaram os Camisas Negras ao título

  1. Letramento
  2. Vínculo empregatício
  3. Alimentação
  4. Treino remunerado
  5. Descanso remunerado

1 – Letramento: o caso Custódio Moura

Os dirigentes da Liga Metropolitana perseguiram os jogadores vascaínos por causa do analfabetismo. Grande parte dos atletas/sócios do Clube eram homens que tiveram pouco ou nenhum acesso aos estudos, em decorrência da falta de oportunidade imposta por uma sociedade extremamente desigual. O contexto da época condicionava os números: mais da metade da população era analfabeta. Uma realidade onde apenas as pessoas mais ricas sabiam ler e escrever, enquanto o analfabetismo se espalhava pela população menos abastada, especialmente entre o povo preto e pobre.

O mecanismo utilizado já carregava precedentes, como em 1904, ainda no remo, quando a Federação Brasileira das Sociedades de Remo aprovou medida proibindo a inscrição de determinados trabalhadores, como atendentes de botequins e armazéns, por não terem as tais condições morais adequadas e pretendidas pela liga. Dentro dessas condições morais, o letramento, claro, era um marcador social determinante na avaliação da Federação. A decisão veio logo após o Vasco conquistar uma prova importante da temporada de remo, e atingia vários de seus remadores, que trabalhavam como empregados do comércio. Três anos depois, a federação de remo aprovou medidas ainda mais duras, que excluíam alguns remadores vascaínos. Mas o clube se articulou politicamente para que não perdesse seus atletas. A posição da diretoria vascaína no embate ficou registrada pelo Relatório de Diretoria do Clube naquele ano, em 1907:

A Federação saltando por cima d’essas qualidades e direitos, decretou a exclusão d’esses amadores que são, entre outras, os que exercem profissões em casas de seccos e molhados, confeitarias etc. A opposição a essa lei por parte da nossa representação foi titanica e apezar de vencidos pelo voto fomos vencedores, pois os legisladores victoriosos não tiveram a força precisa para a tornar em facto.

Ainda em 1907, na 2ª edição da história do Campeonato Carioca de Futebol, a Liga Metropolitana de Sports Athleticos, a LMSA, enviou ofício datado de 1º de maio de 1907, anunciando que “a directoria da Liga, em sessão de hoje, resolveu, por unanimidade de votos, que não sejam registrados, como amadores nesta Liga, as pessoas de côr.”. Na ocasião, o Bangu optou por deixar a liga, protagonizando um grande posicionamento antirracista para a história do esporte.

Assim, um time que pretendia utilizar jogadores analfabetos em 1923, em tempos de preconceito velado, teria de ensiná-los a assinar seu nome nas súmulas de jogo e outras informações no ato da inscrição junto a LMDT. E essa prova de letramento tornou-se ainda mais complexa com a AMEA, em 1924. É importante lembrar que vários desses jogadores vascaínos, como Leitão, Cecy, Torterolli, Negrito e Paschoal, já haviam sido acusados de analfabetismo, tanto pelas sindicâncias da liga quanto pelos periódicos da época, e antes mesmo de se iniciar o Campeonato carioca de 1923. Mas o fato destes atletas não ameaçarem o título dos chamados grandes clubes parecia criar uma “vista grossa” entre os principais dirigentes da Metropolitana, que até tentaram impedir o título da Série B do Vasco por isso, ainda em 1922, acusando o zagueiro Leitão de analfabetismo. Mas não tiveram força política para sustentar a perda de pontos do campeão da divisão de acesso do Campeonato Carioca, título que dava vaga ao Vasco para disputar a Séria A e que trazia forte apelo popular entre os estratos sociais mais baixos do Rio de Janeiro.

O caso de Leitão, segundo a imprensa, era simples. O jogador fora chamado para fazer opção entre o Vasco e o Bangu, para escrever de próprio punho a sua inscrição, provando assim não ser analfabeto. O jogador, que atuava pelo Bangu desde 1917 e nunca havia passado por tal constrangimento, não conseguiu fazer a inscrição de próprio punho e teve seu registro cassado, como mostram as atas da diretoria do Vasco. O clube entrou com recurso e pediu novamente a inscrição do jogador, e assim Leitão pôde jogar os últimos jogos. No dia seguinte ao jogo da eliminatória contra o São Christovão, Albanito Nascimento, o Leitão, foi chamado à LMDT para fazer sua inscrição. Após ter aprendido a “ler e escrever, muito rudimentarmente”, conseguiu completar sua ficha de inscrição e fez um requerimento para um novo registro. [João Malaia em Revolução Vascaína: a profissionalização do futebol e inserção sócio-econômica de negros e portugueses na cidade do Rio de Janeiro (1915-1934), p. 272].

Em 1923, no início do ano, as denúncias de analfabetismo contra os atletas vascaínos continuaram. Apenas na edição de O Imparcial de 17 de março, o periódico trazia duas notas citando atletas cruzmaltinos. A primeira noticiava que Cecy e Nicolino, recém “contratados” pelo Vasco em 1923, tiveram seus registros cassados por analfabetismo. A segunda nota questionava: “Torterolli também não sabe o A.B.C.?”, anunciando mais uma cassação de um jogador vascaíno. Mas o Vasco brigou pela inscrição de seus atletas. Os diretores da LMDT, sem acreditar que o Vasco pudesse ameaçar o título dos concorrentes, acabaram permitindo a inscrição dos jogadores. Indiretamente, foi o que gerou a necessidade de criação da AMEA no ano seguinte.

O caso do professor vascaíno é emblemático: escolhido para ser o bibliotecário do Clube, cargo antigo, que existia desde a primeira década do século, Custódio Moura ensinava os jogadores a ler e escrever, sem receber para isso. Apenas para driblar as resoluções da liga. Ainda segundo Mario Filho, os jogadores com maior dificuldade também foram matriculados em uma escola que ficava num sobrado da Rua da Quitanda, no Centro do Rio, como reforço. Dessa forma, os atletas podiam assistir aulas em parte da manhã, ir ao clube treinar, comer e descansar e, mais tarde, no período da noite, ter mais horas de aula com Custódio Moura no campo alugado pelo Vasco, que ficava na Tijuca.

Assim, apesar das dificuldades impostas pelas elites que comandavam a Metro, esses atletas conseguiram jogar e se tornarem campeões do futebol carioca. A cada nova acusação, o Vasco recorria e defendia o direito dos seus jogadores.

O caso do ponta-direita Paschoal também é simbólico: com dificuldades para assinar seu nome verdadeiro, Paschoal Cinelli (ou Chianelli, como registrado em alguns documentos), o “Trem de Luxo” dos Camisas Negras adotou uma versão que tornava a escrita mais fácil, assinando agora como “Paschoal Silva”, um dos sobrenomes mais populares do Brasil.

Era uma coisa, porém, desenhar o nome numa sala, quase sozinho, e outra, completamente diferente, assinar a súmula. Gente em volta, de olho em cima, atrapalhando. Trancado numa sala o jogador podia errar uma porção de vezes, até acertar. Não tinha importância errar. Errava e ficava por isso mesmo. Se ele, porém, errasse na súmula, estava tudo perdido. O clube perdia os pontos, a Liga era capaz de chamá-lo para um examezinho. De bê-á-bá. Dando uma cartilha para ele ler. Havia jogador que não aprendia a assinar o nome de jeito nenhum. Parecia que tinha aprendido, na hora esquecia, o clube precisava arranjar outro para entrar em campo.

Havia jogador que para aprender tinha de trocar de nome. O caso de Pascoal. Nunca foi Silva, sempre foi Cinelli. Horácio Werner, do Rio de Janeiro, viu Pascoal jogando na Saúde, no campo do Municipal. O Municipal era o clube de Antônio ‘Ferro-Velho’. Um clube do Cais do Porto. Arranjava jogadores nas peladas da Saúde, às vezes bons jogadores, como Pascoal.

Pascoal não fazia outra coisa. Passava o dia com uma bola nos pés, chegava a juntar gente para vê-lo brincando com a bola. Parava a bola no pé, suspendia-a, a bola presa, como se estivesse amarrada no pé dele. Depois ele ficava mexendo com o pé, para baixo e para cima, a bola subia e baixava, não caía no chão. Só caía no chão quando ele se cansava. Se não se cansasse, ficaria até de noite assim, brincando de não deixar a bola cair no chão.

Horácio Werner não quis saber de mais nada. Agarrou Pascoal, levou-o para o Rio de Janeiro, encheu uma papeleta de inscrição, depois deu a papeleta para ele assinar. Aqui. Pascoal avisou que não sabia escrever. Horácio Werner teve de usar o processo de Anacleto, no Andaraí, de Paulo Canongia, no Carioca. Assinou o nome de Pascoal simplificando a letra, nada de apurar muito a caligrafia, senão dava na vista, e mandou Pascoal cobrir o nome mil vezes. Não houve jeito.

O sobrenome de Pascoal, o sobrenome de um italiano peixeiro da Saúde, o seu Cinelli, tinha letras dobradas. O jeito foi dar a Pascoal um sobrenome mais modesto, mais comum, com poucas letras, nenhuma letra dobrada para não atrapalhar. Horácio Werner não encontrou nada melhor do que Silva. Pascoal Silva.

Pascoal ficou sendo Pascoal Silva daquele momento em diante. Com o nome verdadeiro não passaria de um jogador da Saúde. Para se ver a importância de saber assinar o nome. (Mario Filho em O Negro no Futebol Brasileiro, 5ª Ed., p.100).

2 – Vínculo empregatício

Outra maneira de impedir jogadores pretos e pobres de se inscrever na liga, sem que se escancarasse a discriminação racial e social dos dirigentes, era admitir a inscrição apenas de atletas com empregos “tradicionais”, em que não fosse exigido o esforço braçal. O modelo era conveniente aos grandes clubes, que podiam acusar atletas que trabalhavam como operários, empregados, motoristas e outras profissões braçais como desprovidos da moralidade exigida pela liga.

E a partir dessa resolução, podiam solicitar a exclusão desses jogadores. Um caso emblemático é o de Nelson, o primeiro goleiro negro do Vasco e da Seleção Brasileira.

Antes de chegar ao Vasco, Nelson era motorista de praça, função conhecida como “chauffeur” na época, mas que era usada de forma pejorativa pelos rivais. Para ter sua inscrição validada pelas federações em que o Vasco competia, muito mais elitistas que a Liga Suburbana onde competia o Engenho de Dentro, seu antigo clube, Nelson passou a trabalhar em um dos empreendimentos de um dirigente vascaíno, Alberto Portella. O mecanismo de encontrar empregos para os atletas nos empreendimentos dos dirigentes vascaínos era o que viabilizava a inscrição de muitos deles.

Aqui, é importante atentar para o uso de “vínculo empregatício” em vez de “emprego”, porque muitas vezes os atletas não cumpriam a carga total de trabalho, priorizando os encontros da equipe. Era exigido deles, em algumas vezes, apenas o treinamento. E, claro, boas atuações. Em outros casos, os atletas vascaínos trabalhavam duro nas novas oportunidades, recebiam um melhor salário e elevavam sua condição financeira a partir dos empregos articulados pelos sócios vascaínos.

O Vasco, seguindo o caminho da justiça, e lamentavelmente tendo que fazer isso burlando as regras de um esporte excludente, se articulava para defender-se dos mecanismos da liga e mostrava, dez anos antes, um protótipo de uma ideia de “profissionalização” de seus atletas, que ganharia todo o futebol brasileiro em 1933.

3 – Alimentação

Em futebol, seja em 1923 ou 2024, é impossível descartar a boa alimentação como fator central do jogo. O atleta melhor alimentado tende a performar melhor. Não é difícil imaginar que um atleta com quatro refeições diárias esteja mais preparado que um atleta com duas refeições diárias, por exemplo. No Vasco, isso foi levado a sério. Os jogadores passavam tanto tempo envolvidos nos treinamentos e nas concentrações no campo da rua Morais e Silva, que faziam tudo às custas do Vasco, até comer. Conta Mario Filho que os jogadores faziam todas as refeições no restaurante Filhos do Céu, localizado na Praça da Bandeira, bem próximo ao campo alugado pelo Vasco na Morais e Silva. O restaurante era muito conhecido à época. Quem ficava satisfeito com isso era o técnico Ramón Platero, que poderia extrair até a última gota de suor dos seus atletas.

Os outros clubes achando que aquilo precisava acabar. Tornou-se quase uma questão nacional derrotar o Vasco. O jacobinismo no futebol, lançando o brasileiro contra o português.

O português levava a culpa. Pouco importava que o time do Vasco, com os seus brancos, seus mulatos e seus pretos, fosse brasileiríssimo. Os jogadores de Morais e Silva perdiam a nacionalidade, viravam portugueses. Para que ninguém pudesse dizer que os grandes clubes estavam contra os pequenos, contra os pretos. Estavam contra o português, que tinha alterado a ordem natural das coisas.

Os pobres das peladas e dos clubes pequenos, brancos, mulatos e pretos, dando nos times dos grandes clubes, só de brancos, de gente fina, de sociedade. Por causa do português. Se não fosse o português, como é que aqueles jogadores, que nunca tinham feito coisa alguma, podiam fazer alguma coisa?

Muitos sem saber ler nem escrever, mal assinando o nome, sem emprego, sem nada. O português é que lhes dava tudo: casa, comida, roupa lavada e engomada. Eles comiam do bom e do melhor. Café com leite de manhã cedo, ovos com presunto, gemada, depois do individual, almoçavam e jantavam no ‘Filhos do Céu’. (Mario Filho em O Negro no Futebol Brasileiro, 5ª Ed., p.122).

4 – Treino remunerado

Uma das grandes marcas dos Camisas Negras era a imposição física. Vencendo muitos jogos no segundo tempo e virando várias partidas, o técnico uruguaio Ramón Platero alterou profundamente o que o futebol carioca entendia como preparação física naquela época. Na historiografia, Platero é sempre lembrado como um técnico linha dura e um grande precursor da importância do treino físico/tático. Em seus anos como treinador do Vasco, os jogadores cruzmaltinos treinavam correndo da Praça Barão de Drumond, em Vila Isabel, hoje mais conhecida como Praça 7, até a Morais e Silva, na Tijuca. Ida e volta. Todo dia. Isso fazia com quem desfrutassem de ampla vantagem física nos jogos. Os jogadores vascaínos tinham, agora, os mesmos privilégios físicos que seus rivais. Mas seus rivais não tinham algo que dominava os atletas vascaínos, que era a possibilidade de realizar o impossível. Por outro lado, alguns deles buscavam algo muito mais simples: ser visto e eternizado. Superar a condição de invisibilidade social.

Mas como convencer os jogadores a se matarem em treinos e jogos para conquistar o título? Com vantagens financeiras.

Os jogadores, quando acordavam, tomavam o seu café-com-leite, saíam para o individual. Um individual que nenhum jogador do América, Flamengo, Fluminense e Botafogo, tinha feito em toda a sua vida. Com Platero, de charuto na boca, dando o exemplo, eles trotavam do campo da Rua Morais e Silva até a Praça Sete. Ida e volta. Depois campo, bate-bola, horas e horas.

Às vezes, de noite, se a noite era de lua, podia-se ver os jogadores do Vasco no campo, treinando. Não faziam outra coisa. O sistema de Platero era esse: bola, bola e mais bola. Com uma exceção para Nelson Conceição. Nelson Conceição podia brincar de pular, de pés juntos, para cima e para baixo de uma cadeira. Bom exercício para o quíper.

Também, quando o Vasco entrava em campo, o máximo que o outro time aguentava era um tempo. O Vasco não se incomodava de perder o primeiro half- time. Quanto mais o outro time corresse, molhasse a camisa, melhor para ele. No segundo half-time os jogadores do outro time estavam que nem podiam se sustentar em pé. E os jogadores do Vasco pareciam que nem tinham começado a jogar. (Mario Filho em O Negro no Futebol Brasileiro, 5ª Ed., p.121).

5 – Descanso remunerado

Todos os clubes pagavam seus jogadores com bichos e, em alguns casos, até mesmo com ordenados fixos, de maneira escondida. Era proibido, mas era o que acontecia. O regime amador, não à toa, era chamado de amadorismo marrom, falso amadorismo ou mesmo falso profissionalismo. Pois já não se sabia se no futebol predominavam os jogadores que recebiam dinheiro escondido ou os que jogavam por amor à camisa – os amadores.

Mas o Vasco sofisticou essa dinâmica e percebeu que os atletas antes excluídos do jogo, em condições de igualdade, poderiam superar qualquer adversário. Foi quando o ato de pagar jogadores passou a incomodar de verdade. O descanso remunerado equilibrava o jogo. No alojamento montado na Morais e Silva, os vascaínos dormiam pelo tempo necessário sem se preocupar com o emprego. O foco era o campeonato. Recebendo para treinar e descansar, a única preocupação era a bola. Exatamente igual aos atletas ricos, que acordavam, eventualmente saíam para estudar, outros para trabalhar, e depois grande parte deles voltava pra casa tendo todo o restante do dia livre para descansar, se alimentar e treinar. Isonomia.

Os jogadores do Vasco ficavam em Morais e Silva, como alunos de colégio interno. Tinha hora de saída, todos juntos. Platero, de charuto na boca, não os perdia de vista. O português achando que todo cuidado era pouco.

A tranquilidade dele dependia de Nelson Conceição, do Nicolino, do Bolão, do Ceci. Nem era bom pensar em uma derrota do Vasco. Se o Vasco perdesse o português ia passar mal, nem ia poder andar no meio da rua. Por isso mesmo, além da casa, comida, roupa lavada e engomada, o português dava dinheiro aos jogadores de Morais e Silva. Chamava-se esse dinheiro de ‘bicho’ porque, às vezes, era um cachorro, cinco mil réis, outras um coelho, dez mil réis, outras um peru, vinte mil réis, um galo, cinquenta, uma vaca, cem. Não parava aí. Havia vacas de uma, de duas pernas, de acordo com o jogo. Contra o América, campeão do Centenário, contra o Flamengo, bicampeão, contra o Fluminense, tricampeão, uma vaca de uma perna era pouco, só mesmo de duas pernas. O português não encontrava um jogador do Vasco sem meter a mão no bolso. ‘Toma lá, ó Nelson Conceição, para que não me engulas nenhum gol. Toma lá, ó Bolão, é justo que leves o teu, pois já me deste muito dinheiro a ganhar’. (Mario Filho em O Negro no Futebol Brasileiro, 5ª Ed., p.122-123).

Acréscimos

O título do Campeonato Carioca de Footballl conquistado pelo Vasco em 1923 mostrou ao Brasil a fórmula de um time campeão: qualidade com a bola no pé, independente de cor ou classe. A era dos grandes clubes que empilhavam campeonatos com times formados por gente abastada chegava ao fim. Em maioria universitários, com tempo livre para treino e estrutura familiar e redes de apoio para descanso e alimentação, os primeiros amadores seriam substituídos por um novo perfil de atleta campeão: analfabetos, pretos, trabalhadores pobres e imigrantes. Gente operária que, segundo a teoria e a moral aristocrática predominante no esporte, jamais poderia ter sido inscrita na LMDT. Justamente por isso, surgia a AMEA. Para que o “erro” dos grandes clubes não fosse repetido.

O modelo invocado pelo Vasco era simples e logo passou a ser repetido por outros clubes: reunir condições materiais para que seus atletas pudessem treinar, se alimentar e descansar tal como os atletas ricos das grandes equipes. Se preciso, articular empregos e aulas de português para que não existisse nenhum problema com a inscrição dos jogadores.

Assim, munido de alternativas, o Vasco poderia contar com qualquer jogador de qualquer estrato social. Ou seja, poderia contar com os melhores. De maneira sintomática, a Sindicância da AMEA em 1924 concentrou seus esforços em descobrir irregularidades dos atletas negros e pobres, mascarando seu preconceito social e racial através do argumento da moral amadorista e da necessidade de saber ler e escrever e ter um vínculo empregatício considerado apropriado.

Essa estrutura montada pelo Vasco, logicamente, não estava tão escancarada naquela época. Grande parte dos primeiros relatos pessoais de ex-atletas só seria revelado por Mario Filho, em sua obra supracitada, no fim dos anos 40. Muitos desses jogadores, como Negrito e Paschoal, trariam relatos importantes sobre a fórmula vascaína, que passou a ser estudada com mais afinco pelos intelectuais do esporte apenas nas últimas décadas. Os primeiros trabalhos sobre o tema, aliás, e de maneira generalista, citavam a estrutura montada pelo Vasco apontando apenas os “bichos”, sem entender que, na verdade, as vantagens oferecidas pelo Clube iam muito além do que o pagamento por vitórias, como os ordenados fixos para alguns jogadores, facilmente percebidos nos relatórios do Vasco, ainda que mascarados como, por exemplo, despesas de farmácia, como aconteceu com Nelson da Conceição em 1923. Para além dos ordenados, o letramento e a articulação de empregos moralmente aceitos também entravam na conta, assim como a alimentação e a rotina de treino e descanso remunerado. No entanto, desde os primeiros trabalhos sobre o tema, era consenso entre os maiores especialistas que a equipe vascaína em 1923, ao utilizar dessa estrutura que aqui dividimos em 5 pontos e qualificamos como “semiprofissional”, mostrou ao futebol uma fórmula vencedora que, indiretamente, apontava ao futebol brasileiro que estava no profissionalismo o futuro do esporte, só que em uma concepção muito mais democrática:

Este comportamento “policialesco” (não vejo outro termo mais adequado), na verdade, foi a forma encontrada pela AMEA para impedir (ela apenas conseguiu adiar) a implantação do profissionalismo. No entanto, quando o Vasco da Gama instituiu o “bicho”, em 1923, a profissionalização no futebol tornar-se-ia um fato irreversível. Era uma questão de tempo apenas. Por isso é que o período de 1923 a 1933 registra a chamada fase do “profissionalismo marrom” no futebol brasileiro. Esta afirmativa é a única que tem a unanimidade dos homens ligados ao futebol brasileiro da época. (Waldenyr Caldas em O Pontapé Inicial, p. 85).

Foi esse modelo de captação de craques do subúrbio e remuneração escondida, inaugurado pelo Vasco como um projeto de futebol vitorioso, que se aperfeiçoou e se espalhou Rio e Brasil afora, escancarando a necessidade inadiável da Profissionalização do Futebol no país. Enquanto os dirigentes dos grandes clubes lutavam pela manutenção do futebol amador, o Vasco da Gama apontava o caminho do progresso. O regime da falsa profissionalização, ou falso amadorismo, que vigorou até 1933, ficou conhecido como Amadorismo Marrom, pois inaugurou um processo de enegrecimento do futebol. Não por acaso, esse processo se acelerou após o título vascaíno em 1923, e o futebol se expandiu para uma nova ideia que jamais voltaria ao seu tamanho original: a possibilidade de um esporte não apenas praticado, como também vencido pelas camadas populares.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Bruno Pagano

Historiador (UFRJ), pesquisador da História do Futebol e consultor de conteúdo. Autor do livro Russinho: o inigualável êxtase do gol.

Como citar

PAGANO, Bruno. A fórmula vencedora dos Camisas Negras do Vasco da Gama. Ludopédio, São Paulo, v. 178, n. 7, 2024.
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