179.5

A impermanência do ser (jogador de futebol)

O que nos define? E o quanto o tempo está envolvido naquilo que dizemos que nos define?

Tenho pensado nisso.

Quando pergunto, querendo mesmo saber:

– Me fala de você!

A resposta é a mesma. Uma breve descrição de si: o ano que nasceu, regionalidade, seguida da posição, que acompanha o final da frase: sou jogador do Figueirense.

Sou.

Com a firmeza que isso dá quando uma palavra comprime em si o significado de toda uma existência. Sou jogador do Figueirense.

Não sei o quanto é possível saber o tempo que o tempo tem no futebol. Não sei se Danyllo sabia algo sobre o tempo que tinha ainda no clube. Não sei se sou eu, procurando sentido em coisa que às vezes é só palavra arranjada em discurso. Mas diferente dos outros sete jogadores-cineastas, Danyllo, que agora é ex-atleta clube, respondeu:

Atualmente sou goleiro do Figueirense.

Fiquei com o pensamento preso no início dessa frase. Danyllo foi goleiro do Figueirense. E foi assim até o fim do ano. Só que no futebol o fim do ano marca muita coisa, como, por exemplo, a reestruturação de um time que não deu certo, aos olhos do treinador que se vê derrotado. As pessoas são então substituídas, rearranjadas por outras. Outro goleiro, outro atacante, outro capitão. E eu pensei que um capitão fosse insubstituível… Ninguém é.

Tudo muda quando o ano muda. Há entre os jogadores uma identificação etária que é feita pelo ano de nascimento, que torna essa questão do tempo ainda mais concreta, quando ao invés de dizerem sua idade, falam: “sou 2002”, “eu sou 01”. Enquanto ainda fazia as contas para entender o que isso significa em termos de idade no tempo que não é tempo-futebol, me respondiam: é meu ano bom, ou, é meu ano ruim.

Tempo cortado em dois. Ano bom ou ano ruim.

Na vida-futebol, Danyllo vive isso que é o ano ruim. Não pelo ano em que nasceu, mas por aquilo que atualmente não é. E, atualmente, Danyllo não é jogador em nenhum clube. Mas o quanto isso diz de uma vida inteira? O quanto somos além daquilo que sabemos nomear que somos?

Danyllo

***

No futebol nada é, tudo está. Uma constância de inconstâncias. Mudanças que transformam a maneira de entender aquilo que se é. Que forçam a colocar no início do que se é uma palavra que faça alusão à impermanência, como atualmente, que diz tanto e por tantos outros meninos, que assim como ele, atualmente são ou não são algo no mundo-futebol.

Passamos a vida inteira buscando pelo momento no qual é possível afirmar aquilo que somos, como se depois disso não restasse mais nada a saber sobre nós. A ânsia de se formar na escola para ingressar na graduação e então dizer: é isso, agora é isso que sou. Do outro lado o futebol, que possibilita desde cedo brincar com aquilo que se sonha em ser, e que de algum modo, já se é. Mas que é na impermanência.

A angústia que mora em não saber, se é isso ou não é, se vai dar para continuar sendo depois. Corri para a graduação de psicologia mesmo antes de saber se era bem isso que eu queria, apenas para ser autorizada a dizer aquilo que sou. Agora sou psicóloga. Não atualmente, como Danyllo que atualmente era-foi jogador do Figueirense. Sou psicóloga hoje e depois que o ano acabar. Talvez resida aí a maior diferença entre eu e os oito-jogadores cineastas: a coragem que eles têm de serem, e não serem. De serem atualmente e de talvez nunca mais serem. Mas de se arriscar nisso que é o sonho e no rearranjo do que são e deixam de ser quando não fazem mais parte de um clube, de uma cidade, de um time. Não tenho essa força, nem essa coragem.

Danyllo tem de sobra, mas acontece de ser tomado pela insegurança que se aloja na impermanência do atualmente:

“Tudo que não bate na minha cabeça, que eu penso coisa que não é muito boa, as vezes eu pergunto se é isso ou não é […]. Às vezes eu fico inseguro se é isso mesmo que vai dar certo, ou não, tipo, virar. […] virar jogador de futebol todo mundo vira. A questão é virar um atleta profissional. É totalmente diferente. Porque atleta profissional tem foco do que quer. Jogador de futebol qualquer um pode ser”.

Das viradas e andanças o goleiro sabe bem. Já jogou na Itália e até no Boston City, só que do interior de Minas Gerais. Confia que vai continuar andando e virando, até que vire aquilo que acredita que nasceu para ser: um profissional no futebol. Tornando permanente o sonho que é seu e do seu pai, que quis muito poder dizer “atualmente sou jogador”. É através da virada que também vislumbra uma ajuda financeira à família que apoia seu sonho lá do Rio de Janeiro.

Mas muita coisa se perde no tempo que não é tempo-futebol, enquanto se espera a virada e a afirmação do “sou jogador”, sem atualmente antecedendo a frase. O goleiro conta que não terminou os estudos, acabou reprovando três vezes por falta, por conta do futebol. Seus pais se preocupam e ele repete a mesma preocupação quando fala:

“É importante ter os estudos, porque pode acontecer de não virar.  Se não acontecer de eu virar um jogador quero ter minha faculdade pra poder estudar na área do futebol também”.

A questão é que no tempo da vida-futebol, virar já é muito difícil. Virar sendo goleiro é ainda mais:

“O atacante ou o meia, qualquer outra posição, tem como trocar. Goleiro só se troca quando ele se machuca”.

Diferente dos outros parceiros, que eram cobrados para demonstrarem características subjetivas referentes a sua posição, Danyllo vive pela chance de mostrar, qualquer coisa que for, mesmo que não se saiba como. Atualmente não é atleta profissional, mas continua sendo jogador de futebol e continuará, porque ser jogador é o que sabe ser. Ser o goleiro é o que o define, até então. O que colocou no campo do desejo e o que faz se movimentar em busca da virada, de deixar as impermanências para o passado e de enfim poder dizer o que se é apenas no agora.

E assim segue, porque o futebol:

“Não é só pra mim, mas também pro meu pai que sempre teve vontade de ser jogador de futebol, como eu sou hoje. Pelas oportunidades que eu tive e ele não teve. Então aproveito muito isso, por mim e por ele”.

Nesse exercício forçado de forçar o pensamento a encontrar o futuro, pedi a ele, assim como a Kauan, para imaginar o que vai fazer se virar ou não:

“Não sei do dia de amanhã, só quem sabe é Deus”.  

Deixando escapar um pensamento recoberto de impermanências mais uma vez. Eu torço de longe para que o Deus de Danyllo o guie no caminho da virada, seja ela qual for.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

MORO, Eduarda. A impermanência do ser (jogador de futebol). Ludopédio, São Paulo, v. 179, n. 5, 2024.
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