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Léo Zonta: arranhaduras subjetivas e tempo-futebol

Quando começo a escrever é que me dou conta.

O pensamento é anterior ao processo de escrita, mas parece ganhar expressão quando encontra com as palavras.

Primeiro penso, depois sinto, por último escrevo.

Quando começo a escrever é que me dou conta. Preciso dos meus óculos para escrever, para pensar não. Não consegui criar o hábito de guardá-lo na caixa, andava com muita pressa pelos campos de futebol, e foi assim que algumas arranhaduras apareceram nas lentes que me ajudam a enxergar. Agora, quando escrevo, depois de pensar e sentir, escrevo através dos vários riscos que cortam minha visão e embaraçam as palavras. Me habituei ao desconforto que isso causa quando estou no processo de escrever, que há algum tempo tem sido atravessado pelos arranhões das lentes que me fazem ver.

Não há tempo a perder em um centro de formação. Todo mundo está o tempo todo se movimentando e eu só me dei conta do quanto meu tempo foi afetado pelo futebol quando notei que minhas lentes estavam arranhadas. Preciso dos meus óculos para escrever, mas na ânsia de não perder nenhum movimento, adotei péssimas estratégias como pesquisadora. Guardava os óculos no bolso mais ágil da mochila, o bolso em que moram as chaves de casa. Assim, toda vez que puxava minha máquina de fazer ver do bolso, para escrever anotações do campo, criava arranhaduras nas lentes.

O futebol faz isso, entendi depois, cria arranhaduras na visão.

***

Dias atrás escrevi sobre o tempo, quando assistia o vídeo de Adson. Ouvindo-o entendi que o tempo do pensamento é diferente do tempo da vida, e na vida quase não há tempo para o pensamento. Mas quem sonha em ser jogador, desde muito cedo, descobre como desdobrar o tempo em um outro tempo: o tempo-futebol.

O tempo-futebol é diferente do tempo do pensamento e do tempo da vida. Conheci jovens de 18 anos com mais maturidade que adultos de 40, já muito preocupados com o tempo, fazendo contas matemáticas do tempo útil de seus corpos: “com sorte terei vinte anos de carreira”.

Mas quem pensa nisso tão jovem? Quem pensa na aposentadoria com 18 anos?

Respondo: Léo Zonta, um dos oito jogadores-cineastas que me acompanham na trajetória da pesquisa que conto aqui.

Léo Zonta.

Para Zonta, não há tempo a ser perdido quando o assunto é sonho. Na infância dividia o pouco de tempo que tinha para ser criança entre treinos de futsal e futebol. Aos 11 anos fez seu primeiro teste e não muito depois se mudou do interior do Paraná para passar um mês longe da família, enquanto treinava com o Avaí na cidade de Florianópolis.

Isso sempre me assusta. A pouca idade que todos têm quando precisam sair de perto da família para apostar em um sonho, mas é algo comum entre os jogadores-sonhadores. Junto do sentimento de preocupação com a possível infância perdida, a primeira pergunta que me vem a cabeça é acompanhada do desejo de entender o quanto é possível ainda ser criança, quando desde cedo já se trilha um caminho rumo a vida profissional.

Zonta responde: “ali eu não cheguei a perder tanto a fase de criança, mas depois, mais pra frente sim […].

Pergunto: – E quando você acha que isso aconteceu?

“Quando saí de casa com 14 anos, que aí eu saí literalmente de casa, que foi quando eu fui pra Joinville”.

Zonta aprendeu sobre a vida e sobre o tempo com o futebol:

“A maioria das coisas (da vida). A minha maturidade, quem eu sou hoje, é muito porque saí de casa muito cedo e convivi com um monte de moleque desde sempre. Você tem que se virar sozinho, não adianta… Meus pais sempre estiveram longe e não tinha o que fazer. Eu tinha que me virar sozinho. […] As outras pessoas costumam aproveitar de um outro jeito que a gente não pode, vamos dizer assim… Porque senão influencia na nossa performance e no meio do futebol tem que render todo dia senão tu acaba ficando pra trás…”

Muita coisa se apresenta aí, mas dentre todas as coisas que são possíveis de enxergar através das arranhaduras das minhas lentes, reitero uma:

As outras pessoas costumam aproveitar de um outro jeito que a gente não pode.

Fica assim entendido que quando se vive o sonho de tornar-se jogador passa-se a habitar um outro território da vida, no qual um outro tempo funciona e são outras as regras imperativas. Não se faz mais parte da realidade compartilhada por outros da mesma idade. Inclusive, “as outras pessoas” são, de fato, outros. Explico. O que é comum a quase todos nós enquanto experiência cronológica, não acontece da mesma forma na vida de um jogador. A escola é um bom exemplo disso. Enquanto tantos adolescentes passam pela fase escolar para só então começar a pensar sobre vida profissional, o jovem-jogador já vive o sonho como garantia de profissão futura e, por vezes, abdica de um processo educacional potente porque, bem, porque não há tempo a perder.

O que há é o futebol. Quase que unicamente isso.

Tudo que é pensado, é pensado através das arranhaduras que o futebol produz nas máquinas de fazer ver dos jovens-jogadores. O jogador em formação habita então esse espaço-tempo em que não é criança, nem adulto, caso contrário “acaba ficando pra trás”. E para não ficar pra trás é preciso muito de muita coisa, além do tempo em si:

“Disciplina, trabalho e foco. O cara não é só ali dentro de campo, fora influencia muito. Tanto a sua imagem quanto o seu desempenho. Se você fica saindo e a torcida encontra você saindo e essas coisas, você vai ser o jogador baladeiro, que tá saindo e não tá rendendo em campo e isso vai se tornar uma isca pra quando você for mal falarem disso. Tem que cuidar e zelar a imagem…”

O que existe, existe sempre atravessado pelo futebol, inclusive as suposições que são feitas. Zonta não precisa experimentar a fama para saber como deve se comportar, como esperam que ele se comporte. A imagem está totalmente atrelada a isso e passa então a ser mais um território do corpo a ser zelado, mesmo quando ainda se vive o sonho.

***

A questão da imagem é tema recorrente no mundo do futebol profissional, e isso não seria diferente durante a formação. Para ser é preciso parecer que se é, até que aquilo que se parece confunda-se ao ponto de não saber mais dissociar uma coisa da outra. A força que o parecer tem na vida de um jovem-jogador força uma adaptação subjetiva, faz necessário criar características subjetivas e identitárias para chegar mais perto de alcançar o sonho.

Zonta já sofreu com a reverberação da idealização estereotipada que se faz acerca do jogador e de sua imagem. Certa vez, foi dispensado porque “não mostrava muita vontade”. Aquele velho discurso da falta de garra, de vontade, de amor à camisa. Fizemos o exercício de, durante a entrevista, pensarmos juntos como se mostra isso? Como se mostra a garra, a vontade, o amor à camisa? Quais são os elementos em campo que validam a vontade, a garra, o amor à camisa? Não sabemos dizer, ainda assim:

“Hoje me cobram bastante isso, que eu tenho que jogar mais, que eu tenho que mostrar mais a minha vontade. Não que eu não tenha, mas que eu tenho que demonstrar isso, pro mercado, pra dar bom […]. Eles falam que eu tenho que jogar pra fora. Daí eu tenho que mudar, me adequar a isso porque vai ser melhor pra mim a questão do mercado, pra ser vendido […]. Como um zagueiro hoje deve ser, sabe?”

Pergunto: – E como um zagueiro hoje deve ser?

“Ah, tirou uma bola e aí tem que vibrar, sabe? Tem que ser aquele cara durão que o outro tem que ter medo. E daí eles cobram isso de mim, que eu tenho que demonstrar mais isso. […] Se eu quiser coisas maiores eu tenho que me adequar ao mercado”. 

Zonta, com uma maturidade e firmeza no desejo de ser, parece estar anos a frente. Entendeu os sacrifícios necessários para atingir o objetivo e se move de acordo com isso, mesmo que por vezes não baste para o mercado que, com olhos arranhados pela lógica capitalística do futebol, não deixam ver o quanto um menino de 18 anos tem garra, vontade e amor à camisa. O zagueiro que hoje, vive um tempo outro que dificulta o trabalho do pensamento, afastado da infância, com arranhaduras na visão, longe da família e preocupado com a vida útil de seu corpo, porque tudo o que mais deseja é jogar:

“(Futebol) Pra mim é profissão, tenho que levar a sério, não é mais uma brincadeira”.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

MORO, Eduarda. Léo Zonta: arranhaduras subjetivas e tempo-futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 176, n. 25, 2024.
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