Meu filho começou a participar de um projeto de iniciação ao futebol e nossa noite de segunda-feira, agora, é de treinamento. O primeiro dia foi agitado, ou melhor, cheio de ansiedade até o horário marcado, e eu acompanhei seu nervosismo.

Tudo que ele sabe aprendeu com o pai no quintal de casa (meus amigos irão contestar o nível do aprendizado), jogando com colegas na escola, assistindo televisão e até no videogame, observando jogadas e depois procurando imitar.

Ir até o local do treino, envolveu muito medo e receio, sentimentos normais relacionados ao início de uma nova atividade. Sair de casa para jogar bola exigiu, deixar o videogame de lado e pegar a chuteira, meião, calção e camisa, como se diz no Rio Grande do Sul, vestir o fardamento.

Ao entrar no campo, o temor desapareceu, encontrou alguns amigos da sala de aula e, além disso, a bola é encantada, isto é, possui um poder mágico para promover a interação entre estranhos. As diferenças econômica, racial e de idade, desaparecem, enquanto outras começam a ser destacadas e essas estão relacionadas a familiaridade com a bola, condição física, técnica e tática, que mesmo na iniciação esportiva é comum ser reconhecida como “visão de jogo.”

Em nosso caso, a atividade é desinteressada, é uma atividade física para uma criança sedentária. Quando comparo nossas infâncias, a minha teve a rua como um grande playgrand a ser explorado. As brincadeiras e jogos diversos envolviam práticas corporais. Sem contar os espaços que ocupávamos, qualquer terreno baldio em condições mínimas para receber as marcações e traves, quando não praças e outros locais públicos, serviam de campo para imaginação, logo, contribuía para um maior desenvolvimento motor.

Atualmente, as crianças estão restritas ao acesso a quadras fechadas e privadas. Essas, por sua vez, são em sua maioria quadras de grama sintética, piso ou areia. Não são mais de terrão ou gramados irregulares cheios de buracos, poeira e lama. O famoso “morrinho artilheiro” deixou de fazer parte do jargão do futebol infantil. Não posso negar que ainda há gramados ruins mesmo no cenário profissional, mas o morrinho perdeu sua posição, principalmente, na iniciação.

Enquanto observo e por um momento comparo nossas infâncias, incentivo meu filho a se divertir nessa atividade. Ele confere seu fardamento, respira fundo e passa pelo umbral (alambrado) que separa o dentro e o fora de campo, sua postura altiva talvez tenha relação com a imaginação de estar entrando para jogar a final da Liga dos Campões da Europa ou da Copa Libertadores da América.

Crianças jogando futebol
Crianças jogando futebol. Foto: crazymedia/Depositphoto.

Ao olhar aquele grupo de crianças, percebo muitas flamulas coloridas com distintivos de clubes nacionais e internacionais, que passam como raios, correndo atrás da bola, talvez sonhando por um instante que os olhares dos familiares, que acompanham o treinamento, são de torcedores inflamados com seu desempenho em campo.

O treinamento proposto pelos professores envolveu um aquecimento (físico), exercícios para desenvolvimento da técnica e, por último, a simulação de uma partida. Muitos dos meninos e uma menina, aguardavam angustiados por esse momento de “diversão.”

Coloco a palavra diversão entre aspas, pois, mesmo nessa atividade de iniciação, é possível perceber os familiares das crianças, sonhando ainda mais alto, por esperarem ter ganhado na loteria da bola. Seus filhos brincam e os familiares comparam, identificando se o seu menino é de ouro ou não. Mesmo de maneira tímida, nesse primeiro dia, encorajam os filhos a não ter medo da bola, corrigem a execução da técnica, orientam sobre jogadas, reclamam decisões equivocadas durante o jogo e se regozijam com uma suposta efetiva participação, mesmo que esteja relacionada a poucos segundos de protagonismo.

Terminado o treinamento, as resistências e temores do meu filho, agora deram lugar a um grande sorriso de satisfação. Comentários sobre o desempenho dos amigos em relação ao seu, lances e falas durante a disputa fazem parte de um universo infantil rico em informações. O apito final que encerrou a atividade esportiva foi comemorado como uma vitória na final de um campeonato, mas esse não trouxe louros ou troféus, o resultado foi ainda maior, aumentando o encanto, imaginação e estímulo pelo jogo de bola.

O futebol alimenta sonhos, assim a iniciação esportiva deve permitir que a imaginação prossiga sem limites. Para isso acontecer, o sonho não pode ser explorado, isto é, se ele se tornar utilitário, seu poder lúdico, pedagógico e socializador, perde o sentido desinteressado da prática para se caracterizar como trabalho obrigatório e muitas vezes cansativo e repetitivo, mesmo na infância e no futebol. Portanto, parafraseando um samba famoso, não deixe o futebol morrer, não deixe o futebol acabar.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Daniel Machado da Conceição

Doutor em Educação, Mestre em Educação e Cientista Social pela UFSC. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (NEPESC/UFSC), Grupo Esporte & Sociedade.

Como citar

CONCEIçãO, Daniel Machado da. A magia da bola em uma noite de iniciação. Ludopédio, São Paulo, v. 170, n. 1, 2023.
Leia também:
  • 178.28

    Projetos sociais e práticas culturais no circuito varzeano

    Alberto Luiz dos Santos, Enrico Spaggiari, Aira F. Bonfim
  • 178.27

    Torcida organizada e os 60 anos do Golpe Civil-Militar: politização, neutralidade ou omissão?

    Elias Cósta de Oliveira
  • 178.25

    Jogo 3: Galo 3 x 2 Peñarol

    Gustavo Cerqueira Guimarães