175.19

A praia do futebol

José Paulo Florenzano 19 de janeiro de 2024

“As praias do Rio”, sublinhava nos anos sessenta o Jornal do Brasil, constituíam-se em um esplêndido “playground” franqueado ao povo carioca. Em um domingo de sol, com efeito, ele descia em massa para a orla marítima, configurando “a mais extraordinária demonstração de fraternidade racial do mundo”.[1] A ida do povo às praias, no entanto, ao contrário do que afirmava o citado editorial, seguia as linhas traçadas por uma lógica sociorracial que mantinha cada grupo em uma área própria. Detenhamo-nos, a título de ilustração, na praia de Ramos. O jornal O Globo reconstituía passo a passo a epopeia em que se convertia o banho de mar para os moradores da Zona Norte. Ela principiava assim:

O suburbano acorda cedinho, compra laranjas, pão fresco e mortadela para os sanduíches, bota água gelada na garrafa térmica, calça a surrada sandália japonesa, apanha os filhos e a mulher, confere os trocados e parte feliz para a praia.[2]

Uma vez ultimado os preparativos, ele se colocava a caminho das “delícias do mar”, o mais próximo situado em Ramos, ou o mais distante localizado na Ilha do Governador. Qualquer que fosse o destino escolhido, aguardava-o um “coletivo superlotado” e uma praia “apinhada de gente”, pois os ônibus provenientes de todas as partes da Baixada Fluminense “descarregavam” banhistas de “minuto a minuto”. Nada disso, porém, era motivo de desalento para os suburbanos, nem mesmo as “águas sujas de óleo do oceano” que conferiam à praia de Ramos o título de a mais poluída do Rio de Janeiro. Eis como O Globo descrevia o lazer dos banhistas na Zona Norte:

Gente comendo, gente bebendo refrigerante, xingando, criança chorando. Depois de muito suar, o banhista resolve “cair”. Desvia de uma tábua de “surfe”, esbarra em outros banhistas e dá um vitorioso e refrescante mergulho, mas levanta a cabeça meio assustado com o esbarrão que recebe de uma mulher gorda.[3]

A multidão espalhada ao longo dos dois quilômetros de extensão da praia de Ramos, tal como descrita pela reportagem de O Globo, não podia deixar de suscitar nos leitores mais privilegiados do jornal uma mescla de sentimentos de horror e efeitos de comicidade, extraídos a partir do contraste com o quadro distinto do lazer desfrutado em Copacabana, Ipanema ou Leblon. Enquanto para os habitantes da Zona Norte a chegada à praia implicava superar uma série de obstáculos, o principal deles, decerto, os ônibus superlotados, para os moradores da Zona Sul a orla marítima se afigurava mera extensão do condomínio de luxo em que residiam.[4] Além disso, ao corpo bronzeado da garota de Ipanema, contrapunha-se “a pele queimada pelo sol” do banhista de Ramos. À beleza e sensualidade da primeira, a reportagem colocava em relevo a “mulher gorda” da segunda. A poluição, a rigor, não dizia respeito somente à qualidade das águas. Dir-se-ia que toda a moldura se achava contaminada pela presença do suburbano, cujos hábitos e comportamentos, incluindo os percalços e sofrimentos, eram ridicularizados na narrativa jornalística. Ela, no entanto, chamava a atenção para a existência de uma ameaça concreta:

Antigos redutos de uma elite da praia, o Castelinho e o Arpoador foram invadidos, nos últimos dias, por milhares de pessoas (50% da Zona Norte), a ponto de, no domingo, por exemplo, encontrar-se dificuldade para entrar na água ou ensaiar um mergulho. [5]

O tema da “invasão” era recorrente na imprensa carioca e remontava pelo menos à década de trinta do século passado. No contexto focalizado pelo presente trabalho – segunda metade dos anos sessenta e primeira metade dos anos setenta -, os grupos subalternos que afluíam ao território “interdito” da Zona Sul faziam-no basicamente por dois motivos: de um lado, havia os que se mostravam dispostos a exercer o direito ao lazer no espaço público das areias de Copacabana, Ipanema e Leblon; de outro lado, havia os que vislumbravam nelas a oportunidade de atuação dentro de uma economia informal. De fato, como salientava o Jornal do Brasil, notava-se cada vez mais a presença de uma “massa” compacta de mercadores ambulantes que percorriam as praias da Zona Sul de um extremo ao outro, oferecendo aos banhistas toda sorte de produtos: de óculos escuros às bolsas de palha, passando por uma imensa gama de guloseimas e bebidas. Para atrair a atenção dos consumidores, eles utilizavam todos os recursos sonoros imagináveis: cantavam e recitavam ou, ainda, gritavam, por exemplo, que a limonada era feita de limão e que “moça bonita” não pagava, mas também não bebia![6]     

Todas as brechas e oportunidades de lazer e de trabalho eram exploradas pelos excluídos das áreas mais valorizadas da orla marítima. A imprensa expressava o mal-estar face à “invasão” suburbana, ao mesmo tempo em que reclamava medidas urgentes para o saneamento dos trechos que se achavam comprometidos pela incúria administrativa. As praias de Botafogo e do Flamengo, em meados dos anos sessenta, já recebiam a classificação de impróprias para o banho de mar. Na primeira, a baixa presença de banhistas permitia aos adeptos do futebol de areia organizarem tranquilamente suas “peladas”, ignorando a portaria que as proibia no período da manhã. Na segunda, no entanto, a movimentação se mostrava mais intensa, sobretudo, nos finais de semana com a chegada dos “moradores da Zona Norte”, os quais, indiferentes à areia “ cheia de cascalho e pedras” e à água “sempre suja”, desfrutavam do território abandonado pelos banhistas da Zona Sul.[7] Sandra Rosa, uma “morena bronzeada de 19 anos”, julgava-se uma privilegiada, pois não precisava apanhar os ônibus lotados provenientes dos subúrbios uma vez que morava nas proximidades da praia do Flamengo. “A solução”, dizia ela à reportagem de O Globo, era “ficar estirada na esteira e não entrar na água”.[8]

Futebol mulheres
Fonte: Museu do Futebol

As empregadas domésticas do bairro do Leblon, por sua vez, para terem acesso e usufruir de uma praia não poluída, inventaram o “futebol depois da louça lavada”.[9] Conforme nos mostra a pesquisa acurada da historiadora Giovana Capucim e Silva, as partidas começavam por volta das 23 horas e isto por uma razão muito simples: “Na casa de algumas”, justificava Lurdinha, uma das organizadoras, o jantar era “servido muito tarde”.[10] Além de pertencerem à categoria socioprofissional das empregadas domésticas, muitas delas se inseriam no contingente negro da sociedade brasileira, como podemos inferir pelos codinomes identificados na reportagem de Mara Caballero, publicada no Jornal do Brasil: “Fio Maravilha”, ”Luisão Pereira” e “Planeta dos Macacos”.[11] De acordo com a referida jornalista, o “futebol de praia” não integrava “nenhum movimento para a liberação das domésticas do Leblon”, posto que o objetivo declarado das jogadoras era “apenas se divertir”. Todavia, talvez a reportagem tenha subestimado a série de significados que o jogo promovido por aquelas mulheres, pobres e negras, encerrava. A começar pela deliberação nº 7 do Conselho Nacional de Desportos, baixada em outubro de 1965:

Não é permitida a prática de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo aquático, polo, rugby, halterofilismo e baseball.[12]

A proibição à prática do futebol pelas mulheres só seria levantada com a deliberação nº 10, baixada em 21 de dezembro de 1979. Sendo assim, no verão de 1976, quando deram início ao futebol de praia, as empregadas domésticas incorriam em uma clara violação da lei escrita pela instância de poder masculino que o CND representava. Mas, além disso, elas transgrediam também os códigos não escritos que regiam o fluxo de banhistas nas areias do Leblon, os quais não previam a presença de suburbanos ou de “favelados”, e, muito menos, o jogo de futebol protagonizado por mulheres pobres e negras. Todo o ambiente que o cercava, a rigor, desvelava-se adverso, incluindo o público. Com efeito, as “manifestações” dos torcedores dirigiam-se às “qualidades físicas e estéticas” das jogadoras, ao invés de levarem em consideração suas “virtudes esportivas”. Entre os que acompanhavam a partida, estava Maria Gilda, que não jogava mais porque o marido a proibira. Ao que tudo indica, preocupado com o assédio ao qual as jogadoras se achavam expostas, como no caso do “português” louco por Lucy, que invadira o campo para “abraçá-la”.[13] 

Em suma, superando e suportando tudo e todos: a proibição do CND, o código do Leblon, o assédio da plateia, as empregadas domésticas levavam adiante a prática do futebol de praia, cotizando-se para arrecadar dinheiro e comprar uniforme, condição necessária para agendar os jogos contra o time de mulheres da favela da Rocinha ou do Aterro do Flamengo. Dessa maneira, sob a luz do luar, as trabalhadoras pobres e negras do Leblon lavavam a alma das humilhações sofridas no cotidiano; costuravam a rede de interação com outras mulheres que, assim como elas, não se deixavam domesticar pelo exercício do poder de classe, de raça e de sexo, temperando a prática de liberdade do futebol de praia com o sabor irresistível da transgressão.


Notas

[1] Cf. “Editorial: “Praias”, Jornal do Brasil, 9 de janeiro de 1968.

[2] Cf. “Ida à praia nos subúrbios é uma excursão e uma aventura”, O Globo, 25 de janeiro de 1969.

[3] Cf. “Ida à praia nos subúrbios é uma excursão e uma aventura”, O Globo, 25 de janeiro de 1969.

[4] A publicidade dos edifícios, aliás, enfatizava abertamente tal privilégio: “Morar no Leblon e sobretudo a 100 metros da praia é desfrutar completamente a liberdade”, isto é, da “liberdade de ir e vir à praia mais gostosa do Rio de Janeiro”. Cf. O anúncio veiculado na edição do Jornal do Brasil de 18 de novembro de 1972.

[5] Cf. “Povo destrói o mito do Arpoador e Castelinho”, O Globo, 8 de janeiro de 1968.

[6] Cf. “O salgado mercado da areia”, Caderno B, Jornal do Brasil, 15 de fevereiro de 1968.

[7] Cf. “Flamengo tem esgoto, cascalho e sujeira”, Jornal do Brasil, 8 de janeiro de 1969.

[8] Cf. “Flamengo tem esgoto, cascalho e sujeira”, Jornal do Brasil, 8 de janeiro de 1969.

[9] Cf. “O futebol depois da louça lavada”, Caderno B, Jornal do Brasil, 29 de janeiro de 1976.

[10] Silva, Giovana Capucim e. “Mulheres impedidas: a proibição do futebol feminino na imprensa de São Paulo”, Rio de Janeiro, Editora Multifoco, 2017, p.137.

[11] Cf. “O futebol depois da louça lavada”, Caderno B, Jornal do Brasil, 29 de janeiro de 1976.

[12] A deliberação nº 7 baixada em 1965 buscava fechar as brechas jurídicas verificadas no Decreto-Lei 3.199, de 14 de abril de 1941, cujo texto não especificava as modalidades proibidas: “às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza”. Cf. Giovana Capucim e Silva, op. cit., p.75.

[13] Cf. “O futebol depois da louça lavada”, Caderno B, Jornal do Brasil, 29 de janeiro de 1976.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. A praia do futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 175, n. 19, 2024.
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