141.45

A racionalidade da “zica” em meio a racionalização do desempenho

As modalidades esportivas exigem dos atletas alto desempenho e a melhora constante dos resultados. Uma racionalização produz os corpos e os equipamentos, visando aprimorar a performance coletiva e individual. No futebol, a evolução tecnológica pode ser identificada em múltiplas ações que envolvem a preparação, execução e recuperação dos atletas, afetando a estética do jogo. No entanto, a racionalidade permite que outros elementos possam impactar no jogo, compondo o encantamento, o pensamento mágico que também justifica bons e maus resultados.

A expressão “zica”, uma gíria que denota azar, falta de sorte e infortúnio, aparece ligada ao baixo desempenho, com resultados inexpressivos ou ineficientes. O esporte como representação do progresso, desenvolvimento da técnica, convive com a racionalização e não exclui a presença das crenças, bruxarias e valores encantados que servem para justificar aquilo que não pode ser contemplado nas estatísticas, o imponderável.

As situações que escapam ao planejamento e à organização meticulosa, necessitam ser superadas através de mandingas, orações, feitiços, rituais e superstições. Expressões de religiosidade que sempre estiveram presentes no futebol, no nome de alguns clubes, mascotes, personalidades religiosas (padre, pastor e/ou pai de santo), espaços nas dependências dos estádios e centros de treinamento com capelas ou altares. Estes últimos, são lugares para penitências, promessas e pagamento das bençãos recebidas, entre elas: recuperação de lesão, melhora no rendimento pessoal ou coletivo, conquista de título e classificação para alguma competição.

Pai Vavá Boleiros
Pai Vavá, personagem do filme Boleiros. Foto: Divulgação

Uma prática que independe da instituição ou crença religiosa, no futebol, pode ser percebida com notoriedade é o uso do sal grosso. Uma cerimônia ou ritual que representa a racionalidade que sintetiza a força do encanto, seus mitos e tabus.

O cloreto de sódio, sal, faz parte da história humana e dos seres vivos. Em ambientes salinos surgiram os primeiros seres unicelulares. Ambos elementos químicos são necessários para vida animal como nutrientes. Os humanos usam como tempero e conservante. Seus benefícios na fisiologia do corpo relacionam-se ao papel que o cloreto de sódio tem no desempenho e funcionamento de órgãos como rins, coração, pulmões etc. O sal em sua versão menos refinada, com grãos maiores, estrutura em forma de cristal, é reconhecido popularmente como sal grosso.

Suas propriedades mágicas, estão relacionadas à capacidade de quebrar inveja, mau olhado, tirar azar, realizar descarrego e desmanchar qualquer energia, seja ela, negativa ou mesmo positiva (fato que muitos desconhecem). As pessoas utilizam o banho de sal grosso como um momento para limpeza da negatividade, da “zica”. Um purificador visto como muito potente, utilizado em inúmeras culturas, independente da religiosidade.

Seu poder é reconhecido na expressão banho de sal grosso, desejado para eliminar energias negativas que possam prejudicar a execução de tarefas individuais ou coletivas. Seu uso no esporte é comum. No Japão os campeões de sumô jogam sal grosso no espaço de luta para exaltar a lealdade, no futebol brasileiro, situações inusitadas são sempre evidenciadas. Em 2020, o preparador físico do Cruzeiro Esporte Clube/MG jogou sal grosso no gramado antes de um jogo da Série B; um torcedor do Club de Regatas Vasco da Gama/RJ colocou nas traves e alguns do Santos Futebol Clube/SP realizaram o mesmo ato nas rodadas finais do campeonato paulista e começo do Brasileirão Série A. Inúmeros outros clubes, mesmo após dedicarem muito tempo e esforço a técnicas que buscam potencializar o desempenho, utilizam de mandingas para reequilibrar ou vencer as disputas, neutralizando energias ou controlando o sobrenatural.

Preparador físico Cruzeiro
Preparador físico do Cruzeiro jogou sal grosso no gramado do Mineirão antes da partida contra o Brasil de Pelotas pela Série B. Foto: Reprodução SporTV

Não importa o tamanho ou representatividade do clube, estádios como Morumbi, Beira-Rio, São Januário, Mineirão, Engenhão, Maracanã etc., em algum momento foram contemplados com o ritual de descarrego. Na segunda partida final da Copa do Brasil 2020, realizada no dia 07 de março do presente ano, foi mais um momento para registrar o sal grosso e sua relação com o futebol. Os torcedores da Sociedade Esportiva Palmeiras/SP o espalharam no portão do centro de treinamento, com o objetivo de realizar o descarrego no momento em que os atletas, dentro do ônibus, se deslocassem para o estádio Allianz Parque.

O uso do sal grosso é tão comum no futebol que foi sugerido para alguns clubes incluírem seu nome na relação de reforços, que deve ser publicada no Boletim Informativo Diário (BID) da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Sua possível capacidade de afastar a má fase, lhe dá o direito de ser considerado um jogador que disputa uma partida invisível contra a negatividade.

O imponderável, que atormenta a racionalidade, pode ou não contribuir no resultado. A intenção não é questionar se é válido ou não o uso do sal grosso. A religiosidade faz parte da vida social e está impregnada no futebol, ela pode ser representada de muitas maneiras, não importa se jogando sal grosso, beijando uma imagem, usando determinada peça de roupa ou fazendo uma oração antes da bola rolar. A crença, o pensamento mágico, caminha em paralelo com a racionalização do esporte.

Se o efeito do sal grosso é positivo, não podemos confirmar, mas para quem acredita, a resposta é afirmativa. Em que pese os avanços técnicos na preparação e execução da prática do futebol, continuaremos a ver uma chuva de sal grosso para equilibrar o desempenho das equipes. Essa é uma discussão que motiva uma boa conversa, se tiver o tempero e carne na brasa fica ainda melhor. Nesse ponto, concordo com o jogador Rafael Sóbis,[1] não sabemos se a superstição tem efeito para melhorar a eficiência no futebol, mas que o tempero deixa o churrasco saboroso, isso é incontestável.

 

Notas

[1] Cruzeiro: Sóbis explica golaço do meio-campo e brinca com sal grosso no Mineirão: ‘Só serve pra churrasco’. Acesso em: 20 de Fev. 2021.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Daniel Machado da Conceição

Doutor em Educação, Mestre em Educação e Cientista Social pela UFSC. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (NEPESC/UFSC), Grupo Esporte & Sociedade.

Como citar

CONCEIçãO, Daniel Machado da. A racionalidade da “zica” em meio a racionalização do desempenho. Ludopédio, São Paulo, v. 141, n. 45, 2021.
Leia também: