Pesquisar e atuar com o esporte na perspectiva da formação é uma oportunidade de aprender, questionar e propor transformações. O esporte educação carrega a aura do amadorismo, significando o ideal olímpico exaltado pelas inúmeras instituições do campo esportivo.

A iniciação esportiva é o momento da apresentação de uma modalidade, sendo o primeiro passo para o desenvolvimento da técnica e habilidade. Por sua vez, a prática institucionalizada em clubes e escolinhas de futebol acaba por elevar o caráter de seriedade da formação.

No caso do futebol, essas instituições começam muito cedo a observar e selecionar as novas promessas de craques da bola. O mercado do futebol estabelece níveis de oportunidades, isto é, os clubes de futebol profissional de maior prestígio da Série A do campeonato brasileiro, são referências na excelência, logo melhores opções para ampliar a chance de ser observado por empresários. Também não podemos esquecer que os jovens atletas, mesmo na iniciação, estão sendo selecionados para viagens internacionais com períodos de testes nos principais clubes de futebol da Europa.

Muito jovens brasileiros e suas famílias estão cada vez mais cedo realizado o percurso intercontinental em busca do sonho da profissionalização e do sucesso financeiro. Esse é um movimento não só de brasileiros, mas crianças do sul global, estão sendo arregimentadas para processos de iniciação e posterior formação na Europa. Assim, cada vez mais cedo os clubes europeus usam como estratégia para fugir da responsabilidade de ter que repassar certa porcentagem financeira ao clube formador nos momentos de venda e transferência quando profissional, além de reduzir drasticamente o investimento em um atleta no final de formação ou já profissionalizado.

O jornalista Juan Pablo Meneses, no livro Dente de leite S.A.: a indústria dos meninos bons de bola (2014), apresenta essa realidade que se impõe avassaladora com apoio de uma rede de empresários, técnicos e dirigentes. Tudo acontece com anuência da família que espera ter acertado na loteria ou encontrado uma pedra preciosa, ansiosos por lapidá-la para confirmar seu quilate, o passaporte para mobilidade social de todo o núcleo familiar.

Crianças escola futebol
Foto: joasouza/Depositphoto

A antecipação cada vez mais precoce do alto rendimento durante a iniciação esportiva desperta sonhos no adulto que acompanha a criança ou jovem. A atividade, que deveria visar a ludicidade e o aprendizado de regras de sociabilidade, dá espaço para um processo rigoroso com base em responsabilidade, disciplina, sacrifício e desistências, chegando a se tornar algo chato, repetitivo e exaustivo.

A sobrecarga de atividade séria atribuída aos jovens na iniciação se aproxima da rotina laboral, trabalho, que exige alta produtividade e aperfeiçoamento constante. Sua concomitância com outras tarefas diárias, entre elas, a escola, tende a ser paulatinamente deixada em segundo plano. Uma escolha inconsciente ou consciente, a medida que o infante começa a demostrar as características reconhecidas como mais aceitáveis para sua permanência na formação e futura profissionalização.

As crianças não compreendem o peso desse processo, a não ser com vislumbre de um sonho ou mimese do que os grandes astros do futebol realizam nas mais diversas competições da modalidade. No primeiro momento, são incentivadas e mobilizam o desejo de brincar de bola, mas ao adentrarem no processo institucionalizado percebem que jogar bola é muito diferente de diversão.

O modelo de alto rendimento rompe com a transição entre infância e vida adulta, acelerando o processo de passagem de uma fase para outra. Digo, com a necessidade de desenvolver as características de um profissional adulto, isto é, comportamentos e atitudes relacionadas ao exercício da profissão. Crianças na iniciação são cobradas a desenvolverem competência, rapidez de raciocínio, poder de decisão, organização, trabalho em equipe, sem contar o desenvolvimento técnico, tático e físico.

Jovens
Foto: Enrico Spaggiari

O sentimento de pesar ao fazer essa observação, está no fato de que a maioria das ações descritas até aqui não partem apenas de técnicos/professores ou empresários. Os familiares, pais e mães, entregam seus filhos como oferendas religiosas ou como devotos mancebos que devem esquecer os laços familiares para viver a ascese do discipulado, dedicando sua vida aos deuses do futebol.

Os pais, antigos devotos, antes dos filhos, fizeram promessas que não se concretizaram na benção da profissionalização e, na atualidade, procuram como que por procuração, por meio dos filhos, alcançar a dádiva negada. No futebol são chamados de “órfãos de pais vivos”, uma categoria nativa aprendida enquanto realizava pesquisa com as categorias de base de dois clubes de futebol profissional em Santa Catarina. A expressão significa que os responsáveis esquecem que o jovem é seu filho e passam a encará-lo com uma mercadoria, um produto, perdendo em muitos casos a relação afetiva em troca do gerenciamento ou empresariamento da carreira.

Este tipo de ação também é caracterizada pela presença e bajulação dos familiares durante treinos e competições. O tom agressivo, exigente e impaciente com o atleta quando comete falhas em campo ou com o treinador, suas escolhas táticas favoráveis ao sistema de rodízio dos jogadores, acaba sofrendo pressão para que determinado atleta permaneça titular sem ser substituído.

Portanto, precisamos ser mais solícitos com o período de iniciação esportiva, que não esteja reduzido ao alto rendimento e a competitividade, como seu único fim. A iniciação é o momento de descoberta, criatividade, curiosidade, aprendizado e diversão, em outras palavras, oportunidade de beleza relacionada ao esporte. Milton Nascimento, na música “Bola de meia, bola de gude”,1 faz esse pedido e lembra que quando o adulto balança, perdido na seriedade da maior idade, então, um menino é quem lhe dá a mão. 

Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem pra me dar a mão
(…)
E me fala de coisas bonitas
Que eu acredito
Que não deixarão de existir
Amizade, palavra, respeito
Caráter, bondade, alegria e amor
Pois não posso
Não devo
Não quero
Viver como toda essa gente
Insiste em viver
E não posso aceitar sossegado
Qualquer sacanagem ser coisa normal

Que as crianças e jovens possam usufruir da brincadeira de bola e a medida que o interesse e as habilidades são reconhecidas, que aconteça a inserção no alto rendimento de maneira a garantir seu desenvolvimento físico, moral e psicológico. Que isso aconteça para permitir que o menino permaneça vivo para equilíbrio da saúde mental e emocional do futuro adulto.

Nota

1 Composição: Fernando Brant / Milton Nascimento. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=G9RS2BkbqHw&ab_channel=Tr%C3%AAsClipes

Referências

MENESES, Juan Pablo. Dente de leite S.A.: a indústria dos meninos bons de bola. Barueri, SP: Amarilys, 2014.

 

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Daniel Machado da Conceição

Doutor em Educação, Mestre em Educação e Cientista Social pela UFSC. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (NEPESC/UFSC), Grupo Esporte & Sociedade.

Como citar

CONCEIçãO, Daniel Machado da. Toda vez que o adulto balança. Ludopédio, São Paulo, v. 171, n. 20, 2023.
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