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A Revolta da Caxirola – Os desdobramentos de clássico BA-VI

O futebol é repleto de tradições. Em cada contexto em que é praticado há um conjunto específico de regras, como comportamento, vestimenta, formas de comunicação e daí por diante, ou seja, possui seus próprios ritos, símbolos e artefatos. Desta forma, um dos variados exemplos que podemos citar advindos da tradição é sobre alimentação nos estádios. Pacheco et. Al. (2020) discutiram os impactos das mudanças das experiências, no período pós modernização do estádio, em relação a comida no estádio do Mineirão. De acordo com o texto, existe na memória de parte do grupo de torcedores e torcedoras estudados a opinião de que o tropeirão do Mineirão piorou (27,44%) da amostra estudada.

Para Hobsbawm (2008) as tradições são um agrupamento de comportamentos que possuem códigos próprios de práticas ritual ou simbólicas. E sua realização materializa-se por via da ligação com o passado, característica primordial para sua definição enquanto tradição. O autor indica que as tradições podem ser inventadas. Com isso, acreditamos que elas podem surgir a partir de diversas camadas sociais, inclusive podem vir a serem criadas com a finalidade de ocupar espaços demarcados, como a possibilidade de levar para determinado público consumidos (torcedoras e torcedores) alguma mercadoria. Neste sentido, a Copas do Mundo de Futebol organizada pela Federação Internacional de Futebol – FIFA é um evento que, em certa medida, torna-se propício para observamos os fenômenos ligados as tradições do futebol, ou mesmo a tentativa de criação destas. Abordaremos brevemente neste texto, um episódio em que ocorreu a tentativa de criação de uma tradição que seria implementada na Copa do Mundo realizada no Brasil e como os testes feitos no futebol nacional mudaram o curso das propostas.

A Copa de 2010 realizada na África do Sul, no continente Africano, foi um evento em que o mundo teve contato com uma parte das tradições torcedoras locais, uma das que ficou mais conhecida foi instrumentalizada por meio da vuvuzela[1]. O debate em relação à prática foi destaque em jornais pelo mundo, e este fato trouxe à tona a discussão sobre como o futebol mundial, (nos referimos aqui imprensa, jogadores, comissões técnicas, torcedores e torcedoras de outros locais e afins), encaram as tradições locais? A imprensa, em seus variados meios de comunicações, pelo mundo fez diversas argumentações sobre a prática e consequentemente os sons da Vuvuzela. PESCE e MULLER (2010) discutem como a prática foi mostrada pela imprensa mundial em diversas perspectivas, como exemplos podemos citar o jornal The New York Times que coloca em paralelo a Vuvuzela ao Samba no Brasil e o Le Monde classificando-a como o símbolo da COPA.

Vuvuzela
Fonte: Wikipédia

Em nosso prisma, estes eventos demonstram algumas características de um choque de tradições de uma prática do torcer, partindo de visões globalmente localizadas. Queremos dizer com isso que, para torcedores e torcedoras ingleses, acostumados a um torcer que remete a ficar sentado durante a partida, sem instrumentos na torcida, os sons da vuvuzela e sua existência enquanto manifestação do torcer é no mínimo “diferente”. Todavia, este ponto é o cerne da possibilidade de apropriação cultural para mercadorização de uma tradição do futebol. Pois, foi realizado a confecção e por conseguinte as vendas de vuvuzelas como produtos oficiais da COPA, inclusão em jogos eletrônicos[2] e daí por diante. O comércio da Vuvuzela foi um sucesso, basta uma rápida pesquisa para nos depararmos com notícias que indicam este fato[3].

Contextualizada nossa percepção de tradição e possibilidades de mercadorização[4] de tradições no futebol, voltamos nossos olhares para a COPA de 2014, um torneio com ares míticos, pois, a COPA voltara ao “país do futebol”, e sua final seria no lendário estádio do Maracanã etc. Desta maneira, existia em nosso país um cenário que indicava um mercado em potencial para absorver produtos relacionados a COPA, em escala mundial. Esta afirmativa estaria ligada a fatores como o recorde de vendas de produtos oficiais no evento passado, inclusive o exemplo das vuvuzelas, o local da COPA, entre outros.

Vuvuzela
Diversas vuvuzelas sendo sopradas durante o jogo do Mundial de 2010. Fonte: Wikipédia

O sucesso da Vuvuzela coloca uma nova possibilidade nas preparações que envolviam a realização da Copa de 2014. A criação de um novo instrumento musical pelas mãos de Carlinhos Brown[5]: a Caxirola. Por sua vez, a produção do instrumento teve como uma das preocupações o uso de material ecológico para fabricação, em larga escala e com caráter comercial. Além disto, houve a preocupação com a sonoridade, para que esta respeitasse os limites sonoros mínimos para as experiências torcedoras nos estádios e níveis televisivos (reclamação existente da Vuvuzela). Segundo reportagem publicada pelo site do Grupo Globo, o G1, Carlinhos Brown afirmou: “A Caxirola respeita os limites sonoros. Ela reproduz sons da natureza, do mar, por isso trabalhamos com os melhores engenheiros acústicos para que o som fosse gostoso, agradável”[6]. Com estes atributos, a Caxirola foi licenciada pela FIFA e chancelada pelo extinto Ministério do Esporte[7]. Neste cenário, podemos apontar que surgiu um instrumento para a Copa, todavia, a formação da tradição não é instantânea. Cabe assim, discutir acerca das complexidades e contradições existentes na modificação/inovação no torcer.

Caxirola
Carlinhos Brown e as caxirolas. Fonte: Wikipédia/Roberto Stuckert Filho/PR.

A estreia da Caxirola foi marcada para um dos maiores clássicos do futebol brasileiro, Bahia x Vitória (BA-VI), cabe destacar que esta partida foi um evento teste[8] da FIFA para a Copa. O jogo aconteceu em 28 de abril de 2013 na Arena Fonte Nova, em partida válida pela última rodada do campeonato Baiano, Carlinhos Brown esteve presente e apresentou o instrumento aos torcedores e torcedoras presentes no estádio[9].

Antes da partida começar, é possível ver um torcedor exclamando: “Aqui é a Caxirola, o som da Copa”[10]. O clássico foi vencido pelo Vitória por 2 x 1, e justamente após o segundo gol do Vitória, a torcida adversária começou a atirar as Caxirolas em campo. Este fato paralisou por alguns minutos a partida que só fora reiniciada com a retirada dos instrumentos do gramado.

Após a partida o então técnico do Bahia, Joel Santana, relatou “O instrumento que foi feito é até bacana, tem um som legal, até a torcida adversária estava sacudindo melhor do que a nossa. Mas melhor do que atirar é entregar a uma criança. Isso não é bom. Vai ser um prejuízo para nós muito grande. O Brasil inteiro está vendo isso, aliás não só o Brasil, o mundo está vendo e isso não é bom para nós”[11].

Caxirola
Fonte: reprodução

Em nosso prisma é notório que os sentimentos aguçados durante um clássico podem ser maiores que em uma partida comum, a expressão de revolta naquele momento se materializou na revolta das Caxirolas (jogadas no campo). Um dos traços que podem ser inseridos ao relembramos este episódio é que o instrumento não fazia parte da tradição do torcer daqueles espectadores. Desta forma, o protesto foi realizado pelo ato insurgente de arremessar as Caxirolas no gramado. Além disto, reside aqui o fato do instrumento, naquele contexto, não ter valor simbólico para os torcedores e torcedoras presentes, ou seja, tinha valor apenas de um objeto/instrumento comum. Era a estreia da Caxirola, não havia memória nem coletiva tampouco individual sobre seu uso entre as torcidas. A tentativa de invenção de uma tradição havia falhado, em partes. Este evento fez com que a FIFA discutisse e proibisse o uso da Caxirola durante os jogos da Copa das Confederações de 2013 e posteriormente na Copa do Mundo de 2014.

Acreditamos que as tradições no futebol podem ser inventadas de todos os setores que o compõem, como a torcida, os jogadores, a impressa, os gestores e daí por diante. Independentemente da localização de seu surgimento é necessário tempo para que as tradições adquiram valores simbólicos, criando raízes para se configurar como tal. Umas duram por dias, anos, décadas etc. e outras desaparecem, como no caso da Caxirola ou o leitor e a leitora já se deparou com este instrumento nos estádios, bares, casas ou quaisquer outros locais que assista futebol?

Notas

[1] Instrumento musical que se assemelha à uma corneta.

[2] Ver notícia em https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/tecnologia/2010/03/23/interna_tecnologia,181555/nova-edicao-do-fifa-world-cup-traz-ate-a-vuvuzela.shtml

[3] Fábrica que produz Vuvuzela agora recusa pedidos, disponível em https://www.abras.com.br/clipping/geral/14269/fabrica-de-vuvuzelas-agora-recusa-pedidos. ‘Made in China’, vuvuzela atrai interesse mundial e aquece mercado asiático, disponível em https://copadomundo.uol.com.br/2010/ultimas-noticias/2010/06/18/made-in-china-vuvuzela-atrai-interesse-mundial-e-aquece-mercado-asiatico.jhtm e outras.

[4] Discussões a respeito do conceito de mercadorização do futebol podem ser encontradas em “Mercadorização do futebol na era da globalização” de Luiz Demétrio Janz Laibida (2013), “Democracia torcedora versus Vantagens consumistas: uma análise da associação clubística em tempos de futebol-negócio” de Irlan Simões da Cruz Santos e Anderson David Gomes dos Santos (2018), entre outros.

[5] Grande artista nacional, sua biografia está disponível em http://www.carlinhosbrown.com.br/bio/

[6] Matéria disponível em https://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2013/04/em-exposicao-no-planalto-carlinhos-brown-ensina-tocar-caxirola.html

[7] O projeto da Caxirola fez parte de um processo público com a finalidade de selecionar projetos para Copa de 2014, foram 199 inscritos e 99 selecionados. Reportagem sobre a chancela disponível em https://www.mercadoeeventos.com.br/feiras-e-eventos/copa-de-2014-96-projetos-sao-escolhidos-para-promover-pais/

[8] Eventos testes são jogos realizados nos estádios que serão utilizados para a COPA, ocorrem períodos antes do início dos torneios para correção de ações que ainda não estejam dentro do “padrão FIFA”. 

[9] O instrumento havia sido distribuído antes da partida para ambas as torcidas.

[10] Vídeo disponível em https://globoplay.globo.com/v/2543381/

[11] Matéria disponível em http://globoesporte.globo.com/ba/noticia/2013/04/revolta-da-caxirola-indignacao-e-falta-de-educacao-causam-vexame.html

Referências

HOBSBAWM, Eric. e Ranger, Terence. A invenção das tradições. RJ: Paz e Terra, 1990

PESCE, Andressa dos Santos; MULLER, Karla M. A vuvuzela é a África: um estudo de caso do símbolo da Copa do Mundo 2010. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação: XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Caxias do Sul, ed. 2 a 6 de setembro de 2010, 2010. Disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2010/resumos/R5-3155-1.pdf. Acesso em: 7 set. 2022.

PACHECO, Leonardo Turchi; DANTAS, Marina de Mattos; SOUZA, Adriano Lopes de; SILVA, Silvio Ricardo da. Comida de estádio: reflexões sobre o “tropeirão” e a sociabilidade no “novo Mineirão”. Movimento. Porto Alegre, v. 26, p. e26052, 2020.

Sites

www.carlinhosbrown.com.br/bio/

www.correiobraziliense.com.br

www.globoesporte.globo.com/ba

www.g1.globo.com

www.mercadoeeventos.com.br

www.copadomundo.uol.com.br

 

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Danilo da Silva Ramos

Secretário do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer - PPGIEL da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional - EEFFTO da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG desde 2017 e mestrando deste mesmo programa (turma 2020). Concluiu o ensino médio no Colégio Estadual Américo Pimenta (2006). Possui graduação em Licenciatura em História pelo Centro Universitário Geraldo di Biase - UGB (2011), Membro dos Grupos de Pesquisa: História do Lazer (HISLA), Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Raça/Etnia e Sexualidade (NEPGRES) e Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT).

Como citar

RAMOS, Danilo da Silva; , . A Revolta da Caxirola – Os desdobramentos de clássico BA-VI. Ludopédio, São Paulo, v. 160, n. 17, 2022.
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