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Abusos sexuais de crianças e adolescentes no Escotismo

Wagner Xavier de Camargo 10 de janeiro de 2021

Na onda dos escândalos relacionados a abusos sexuais de crianças e adolescentes, anunciados nos últimos anos, mais uma instituição de práticas educativas, de socialização e esportes entra na cena: o escotismo. Desde agosto de 2019 processos judiciais têm surgido em várias partes dos Estados Unidos contra a Boy Scouts of America (BSA), ou Escoteiros da América, por terem encoberto abusos sexuais de instrutores homens envolvendo crianças e adolescentes, ocorridos há mais de 30 anos.

Esta organização surge no início do século XX e desde suas origens defendeu valores de engajamento cívico para jovens meninos em formação, através de programas educacionais e esportivos junto à natureza. Dados interessantes de sua história mostram que o ápice de participação em seus programas foi em fins dos anos 1960, quando já acumulava cerca de 6 milhões de credenciamentos em seu quadro de associados.

Boy Scouts, Troop 10, Columbus, Ohio, 1918. Foto: Wikipédia

Ao mesmo tempo em que a BSA tentava ensinar tais meninos a serem homens (líderes destemidos, cidadãos conscientes e pessoas justas), proibia mulheres e homens gays de participarem dos programas. Particularmente, as mulheres começam a ser inseridas em 1969 e só serão totalmente bem-vindas em 2017. Assim como outras instituições sociais (como a igreja e mesmo o esporte), os Escoteiros da América nunca lidaram com questões de gênero e sexualidade – talvez seja este um ponto importante de consideração que explica o volume de abusos agora explicitados.

Noticiou-se que foram recebidas cerca de 100 mil denúncias de abuso sexual perpetradas por homens em relação a escoteiros crianças e adolescentes. Para se ter uma ideia da vultuosidade da coisa, basta lembrar que os escândalos de pedofilia da Igreja Católica em todo o mundo chegaram a 11 mil, o que mostra que no escotismo foi dez vezes maior.

A BSA agiu rápido ao compor, junto a outras entidades, um fundo de indenização público, criado para amparar vítimas dos abusos – isso também se deu em relação ao médico abusador de Larry Nasser, no caso da ginástica artística estadunidense. Porém, muito afetada pelas acusações, a entidade acabou decretando falência em fevereiro de 2020, com o propósito de proteger parte dos recursos para poder cumprir com tais exigências judiciais.

Numa visitação aos acontecimentos ao longo da última década, pode-se perceber que a BSA manteve suas atividades ocorrendo (inclusive os Jamboree, eventos internacionais de encontro de escotismo), mas de modo cambaleante entre os primeiros escândalos e algumas tentativas de revigoramento. Por um lado, em 2012, e pela primeira vez, vieram à luz os chamados “arquivos de perversão”, compilados por Janet Warren, da Universidade de Virgínia, que identificou quase 8 mil abusadores no quadro de colaboradores da BSA. Por outro, para se mostrar alinhada aos “novos tempos”, a entidade acatou em seu o programa de scouts jovens gays em 2013, o voluntariado de homens gays adultos em 2015 e a inserção de meninos trans em 2017.

O debate sobre aceitar ou não homossexuais nos quadros de jovens participantes ou de adultos voluntários já se arrastava há mais de duas décadas. Inclusive, um processo nesse sentido se desenrolou em fins dos anos 1990, na Suprema Corte dos Estados Unidos, com decisão favorável à BSA: James Dale, um ex-voluntário da organização, foi expulso do quadro após vir à público uma entrevista em que se assumiu gay. No processo que moveu contra a organização, Dale alegou preconceito ao ser dispensado por sua orientação sexual. No fim das contas, no entanto, a Corte deu ganho de causa à BSA, pois determinou que uma entidade privada poderia excluir uma pessoa que afetasse “significativamente” a capacidade de um grupo defender seus pontos de vista.

Escoteiros carregando bandeiras da Scouts for Equality na parada Capital Pride 2017. Foto: Wikipédia

É, no mínimo, inquietante pensar em como o gênero nunca foi uma instância discutida nos acampamentos, lugares que reuniam centenas de homens e meninos com vistas a estabelecer vínculos de ensino-aprendizagem, camaradagem e socialização. Talvez isso se explique justamente por serem ambientes homossociais, nos quais não implicava debater a diferença (sexual, corporal ou mesmo de desejos) já que não havia mulheres e demais gêneros no coletivo, uma vez que o regulamento não os permitia.

E, em outro nível, curiosa a constatação de como a própria sexualidade não era uma dimensão tratada entre aqueles homens, que se aglutinavam em rincões inóspitos e selvagens, entre matas e montanhas. Na verdade, as sexualidades e suas práticas não apareciam, pois permaneciam nos domínios do silêncio ou no local sobre aquilo que não se pode falar. As denúncias de hoje nos mostram que corpos se encontravam, envolviam-se em práticas sexuais, mesmo sem consentimento de uma das partes. Uma lástima este montante de meninos e adolescentes terem passado por isso em suas tenras infâncias e juventudes!

Os homens denunciadores de hoje são esses meninos molestados de ontem, alvo de adultos pedófilos, os quais manipulavam seus corpos e genitálias. Mais do que um recado à BSA, isso tudo ilustra uma necessidade de tratar a sexualidade como conteúdo educativo no escotismo, seja em rodas de conversas, em aulas expositivas ou ainda em jogos e brincadeiras coletivas. A sexualidade tem que ser pauta salutar de conversas, para que atos abusivos não ocorram (ou, na pior das hipóteses, para que diminuam em proporção).

A falência da entidade nacional estadunidense não significa que as organizações menores (e locais) interromperão suas atividades. Porém, é um duro golpe nos valores de uma entidade centenária, que muito se gabou de ter contribuído pela formação de vários líderes nacionais nos EUA, como o astronauta Neil Armstrong, ou mesmo o empresário de informática, Bill Gates. A falência não é apenas financeira, e sim moral.

O escotismo chegou ao Brasil também no início do século XX e, em que pese ter atualmente muito menos associados, partilha dos valores do movimento com a entidade estadunidense. Por isso, frente aos processos de abuso em pauta nos EUA, soltou nota de explicação sobre a formação do quadro de pessoas que trabalham em prol do escotismo, sua aderência à “Política Nacional de Proteção Infanto-Juvenil” (que previne possíveis casos de abuso e violência durante as atividades) e sua desvinculação “cultural e estrutural” entre ambas as organizações escoteiras.

Se o lema do escotismo é “Be prepared”, que no Brasil foi adaptado para “Sempre alerta”, que ele sirva para os líderes do movimento estarem mentalmente abertos às rápidas mudanças atuais, às pautas de grupos considerados minoritários e, particularmente, que se coloquem em desconstrução relativamente a valores tradicionais e ultrapassados, pois só assim talvez o escotismo tenha uma chance de permanecer como formador de pessoas dignas em construir uma sociedade mais justa e igualitária.

Agradeço a meu irmão, Rafael Camargo, pela sugestão temática desta coluna.

Para quem se interessar, seguem dois curtos documentários:

“The Rise and Fall of the Boy Scouts (WSJ)”

“Boy Scouts of America Bankruptcy Explained”


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Abusos sexuais de crianças e adolescentes no Escotismo. Ludopédio, São Paulo, v. 139, n. 13, 2021.
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