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“Agora é só orar?”: um modesto mapeamento sobre o que poderá acontecer com o pós-carreira de jogadores famosos

Fabio Perina 15 de setembro de 2023

Introdução

A frase acima é um conhecido “meme” recente (surgido em março de 2023) de um escândalo constrangedor e problemático (embora logo foi ressignificada como humor por diversos internautas). O que consiste na revelação de um golpe financeiro do jogador William Bigode contra Gustavo Scarpa, até então seu colega de clube no Palmeiras. Logo depois, nos meses seguintes como abril e maio, escândalos mais profundos envolvendo manipulação de resultados e suas investigações (conhecidos como “Operação Penalidade Máxima”) dominaram o noticiário esportivo sobre a dimensão fora de campo.

Esse ensaio surge a partir desses dois motes cruzados tentando aproximar vários elementos de reflexões cotidianas sobre quais vem sendo possíveis ocupações de alguns jogadores famosos (sobretudo brasileiros) ao deixarem os gramados profissionalmente. Surpreendentemente algumas novas ocupações já parecem estar sendo realizadas em paralelo enquanto ainda estão com as carreiras de atletas vigentes. E indiretamente retomar algumas reflexões que tive em dois textos anteriores (texto 1 e texto 2) sobre consciência e condição de classe dos jogadores. Discussões conceituais que irei dessa vez dispensar na maior parte desse ensaio privilegiando elementos descritivos, para depois concluí-lo explorando interfaces do futebol com a economia e sociedade brasileiras em geral. 

Desde já apresento a ressalva ser um ensaio em que tratarei bem mais de abrangência de vários elementos do que profundidade de cada um deles, inclusive evitando uma lista extensa de nomes de jogadores, mas sim buscando pelo menos um exemplo a cada tipo de ocupação para uma possível ocupação pós-carreira. Uma abordagem tão exploratória que por diversas vezes para apenas mencionar digressões que podem ser aprofundadas em próximos estudosfarei uso do termo “Obs” em parênteses. Em suma, usando uma figura de linguagem conhecida, são dois motes recentes como a “ponta do iceberg” de processos mais profundos e não tão recentes.

Desenvolvimento

Como breve menção nostálgica, de certa forma recordo de ecos do grande filme “Boleiros” (1998), no qual o pós-carreira é representado por melancolia unânime pelos ex-jogadores já idosos. De volta à realidade (vide casos trágicos recentes de mortes precoces de ex-jogadores como Gilmar Fubá e Régis Pittbull), o que tem a ver com boa parte do senso comum sobre jogadores e ex-jogadores ao longo de décadas em uma condição de desalento: aparentemente uns mais despreparados (para exercerem outras ocupações) e outros aparentemente mais abandonados… 

Ora, voltando aos dias atuais, diante do medo do esquecimento (inevitável?), será que os jogadores estão se expondo a qualquer acúmulo financeiro e qualquer notoriedade enquanto tentativas de compensação?! Vide a imensa notoriedade midiática da seleção brasileira durante a última Copa do Mundo com a geração de 2002 tão próxima da geração de 2022 possa ter a ver com esse medo do esquecimento. Assim como outra breve menção de contraponto, em parte nostálgica e em parte atual, pois felizmente na Argentina tradicionalmente ocorrem grandes festas de despedidas para seus ídolos numa rara e bem sucedida união de valores simbólicos e valores financeiros envolvidos no evento. Vide os casos recentes, no final de junho, das imensas festas de despedidas de Maxi Rodriguez no Newell’s Old Boys e de Riquelme no Boca Juniors, tendo como Messi convidado de honra em ambas. Enquanto naqueles dias por infeliz contraste o noticiário extra-campo brasileiro era dominado por declarações e revelações repugnantes de Daniel Alves e Robinho por seus crimes de estupro. Assim como quase toda semana surge a notícia de algum jogador ou ex-jogador brasileiro preso por não pagar pensão e outros crimes. (Obs: embora tampouco se trate de uma polarização simplista de demonizar aqui e romantizar lá, sendo que entre jogadores em atividade no futebol argentino também tem surgido inúmeros casos de violência de gênero e outros crimes).

Riquelme
Fonte: divulgação/Boca Juniors

Ao ter em mente esses casos graves, também não deixo de fazer uma breve, porém inquieta, reflexão até mesmo para casos tidos como exemplares. Pois ao refletir sobre carreiras esportivas em paralelo com outras ocupações, é inevitável não fazer ao menos uma breve menção às contratações recentes de imenso impacto de CR7 na Arábia Saudita e Messi nos EUA. O que torna muito sugestivo que a partir de então passaram a ser muito mais empresários, celebridades e até em certa medida “diplomatas” (vide divulgação dos países sedes dos megaeventos da FIFA que estão por vir) do que propriamente jogadores como habitual. Sendo esses os dois gênios que mais dominaram o alto rendimento nos anos 2010, principalmente nos clássicos Real Madri x Barcelona, dificilmente se imagina um destino distinto para ambos para os anos 2020 à partir de agora. Afinal, essas contratações milionárias não seriam possíveis se não tivessem sido atletas exemplares e cidadãos podemos assim dizer “politicamente corretos”. Pois sempre evitaram questionar o sistema de poder, no esporte e no entretenimento (aliás, cada vez mais indistinguíveis…) ao qual se beneficiam individualmente. 

O que deixa um questionamento desconfortante: ora, distinto da “boleiragem” brasileira eternamente mimada e passando vexames diariamente descritos, se nós torcedores mais politizados reivindicamos uma autonomia individual do atleta, mas para depois fazerem o quê com ela?! Para serem meros “empreendedores” do próprio sucesso e imagem e submetidos aos interesses de empresários e federações, dessa forma, dividindo a classe dos jogadores, ao invés de mobilizá-la?! Será que de agora em diante as inúmeras ocupações de ex-jogadores se limitariam a esses dois grandes campos: na melhor das hipóteses “empreendedores” e na pior das hipóteses “bajuladores”?! E mais desconfortante ainda pensar que se esses dois gênios com tantos méritos e privilégios ao longo de suas carreiras sequer se manifestam pela classe, imagine então outros mais novos com muito talento, muitas conquistas, porém ainda bem menos desses recursos que lhes dessem alguma segurança nessa “jogada” arriscada…

Após essas breves reflexões na “cúpula” do futebol global, é preciso para trazê-las de volta ao “chão de fábrica” do futebol brasileiro sobre esse permanente incômodo. Vide a premissa no senso comum dominante dentro da “massa” dos jogadores que sabe que o insucesso profissional de vários membros da classe ocorre por causa de algum empresário, porém não perdem a oportunidade de cogitarem a possibilidade de se ocuparem no pós-carreira enquanto empresários. A partir de agora novamente como ressalva nesse parágrafo deixarei apenas um exemplo notório dentre tantos mais possíveis para cada uma das diversas ocupações possíveis desse esboço de mapeamento. Seja diante de outros jogadores ou até mesmo em uma novidade de “outro patamar” comprando clubes (como o caso evidente de Ronaldo). Ora, sem entrar em uma lista imensa de exemplos nesse modesto mapeamento, nas últimas décadas algumas das ocupações mais notórias a ex-jogadores no pós-carreira foram (e ainda são) como professor de “escolinha” (como no filme citado “Boleiros”), treinador (como Rogério Ceni), comentarista esportivo (como Pedrinho) ou até se distanciando mais do esporte através de publicidade (como o lateral Marcelo) ou como candidato político (como Romário). Opções mais convencionais para um pós-carreira que seguem existindo, dividindo espaço com ocupações mais recentes como gestores e dirigentes (como Juninho Paulista ou Edu Gaspar). (Obs: curioso que as novas ocupações como políticos ou dirigentes parecem coincidir com discursos vagos nos dois ambientes em que se clama por um fato novo da vinda de algum “outsider” diante de uma opinião pública cansada de “mais do mesmo”). E até mesmo casos aleatórios de novas carreiras esportivas, como já foram casos no “showbol” (como Viola) e mais recente no futevôlei (com Fábio Luciano) e até no fitness (como Conca). Para esses últimos certamente há uma busca de permanecerem com notoriedade midiática, ainda que apenas em suas redes sociais e para públicos mais específicos. Como também são os esforços de estarem rodeados não apenas por seus “staffs”, mas por um número cada vez maior de protagonistas do entretenimento como gamers, youtubers e funkeiros ao buscarem se adaptar a essa comunicação digital de exposição de imagem permanente e de suposta proximidade com sua audiência de adolescentes e jovens adultos. O que deixa uma percepção entre famosos e internautas estarem cada vez mais indistinguíveis. Assim como também indistinguíveis as novas ocupações em parte no setor do esporte e em parte no setor do entretenimento. Certamente isso causa nos famosos uma percepção de afastar provisoriamente o medo de serem um dia esquecidos…

Boleiros
Fonte: reprodução

Indo agora para uma parte mais específica do mapeamento do ensaio, ao lembrar o mote inicial sobre golpe financeiro e manipulação esportiva é preciso mencionar um novo cenário no futebol brasileiro nas várias dimensões de sua estrutura. Através do novo protagonismo da publicidade das casas de apostas: desde jogadores e ex-jogadores a até patrocínios nas camisas de diversos clubes. Diante de um tema tão complexo quanto impactante enquanto as investigações mencionadas no início do texto vinham à tona, o deixarei apenas como pano de fundo nesse ensaio sem maiores condições de aprofundá-lo diante de farto material jornalístico recente que comprovaram o envolvimento de vários jogadores de vários clubes. O fato novo a partir de agora é que levanto a hipótese dele articular as várias dimensões da estrutura do futebol brasileiro. Desde os jogadores famosos na publicidade aos jogadores menos famosos que se envolveram no escândalo. Um tema por si só muito relevante e complexo da atribuição de responsabilidades, nos quais descobrimos que no setor público foram cerca de quatro anos de franca expansão dessa atividade sem a mínima regulamentação por lei complementar, conforme agora recentemente os ministérios de Fazenda e Esporte precisaram às pressas elaborar Medida Provisória.

Além disso, o escândalo das apostas fomenta uma hipótese que busquei levar a rodas de conversas do dia-a-dia de ser uma rara e insólita combinação entre oportunismo e ingenuidade da maioria dos jogadores. Seja por acharem que tudo podiam fazer ou seja por sequer cogitarem que isso pudesse ser crime, vide alegarem não haver uma vítima evidente. (Obs: o que reatualiza uma discussão já de décadas o profundo paradoxo em federações esportivas levantarem campanhas de “fair play” em defesa dos valores do esporte, porém desconectados das condições objetivas de jogadores, assim como treinadores e dirigentes, em competitividade cada vez mais acirrada na qual a tendência é se buscar apenas soluções individuais). 

Em outras palavras, a “gameficação” da vida é fortemente atrelada a sua individualização e pelo visto a sua dissociação da realidade. Sacrificando uma improvável autonomia de traçarem seus próprios caminhos e ao invés disso irem pelos caminhos mais cômodos de simplesmente seguirem o que seus colegas de clubes e os famosos de sua profissão vem fazendo. (Obs: obviamente que as posições político-ideológicas e religiosas entre eles serem cada vez mais homogêneas são fortes evidências adicionais disso). Nisso também recordo do mote do título dessa crônica do caso Bigode-Scarpa como “prévia” provocativa (evidente que sem conexões causais objetivas) a um escândalo muito maior que se revelou recentemente diante desses elementos semelhantes qualitativamente, apesar de distintos nas proporções quantitativamente. Vejamos a seguir uma breve síntese do cenário macroeconômico atual para além do futebol:

“A pilhagem “pelo alto” se moveu na economia de extorsão financeira, enquanto a usurpação avançou pela intensificação e precarização do trabalho, cada vez mais sem direitos a moer o que ainda resta da “classe média assalariada”. No “andar de baixo”, a exploração avançou deslocando o roteiro possível no passado da ascensão social movida pela conversão do antigo trabalhador rural em empregado assalariado formal para a sociabilidade do mercado digital. Assim, a luta pelo acesso ao moderno consumo encontrou na esfera da circulação potencializada pelas redes sociais as possibilidades do exercício do trabalho cada vez mais fora do emprego protegido.”

Como premissas gerais, indo agora da etapa descritiva para a analítica do texto, ele poderia ganhar um novo título em algo como “a parte que te cabe nesse latifúndio”. O que ironicamente retoma discussões no cotidiano do futebol sobre vendermos nossos jovens talentos cada vez mais cedo enquanto uma necessidade objetiva do capital ao invés de se tornarem craques lapidados e consagrados. Pois não me parece exagerado tratar em paralelismo no âmbito nacional nos últimos anos entre a conjuntura do futebol enquanto breve demonstração e aplicação da conjuntura política e econômica. Na primeira, ampla adesão de vários clubes de várias proporções às SAF’s para tentar pagar as dívidas e as tentativas recentes de criação de uma Liga para tentar potencializar as receitas. Na segunda, reforma trabalhista e previdenciária, “teto de gastos” e “passar a boiada” simultaneamente contra o meio ambiente, os movimentos populares, os direitos sociais, e os orçamentos que viabilizem políticas públicas. Em outras palavras, do micro ao macro, se as ocupações de jogadores no pós-carreira mudaram de tendência do esporte para o entretenimento, os golpes financeiros também mudaram das “pirâmides” entre pessoas face a face a formas mais digitalizadas como golpes pelo pix, criptomoedas e, claro, apostas esportivas. O que ironicamente reformula uma velha frase da sabedoria popular que “todo dia um otário e um malandro saem de casa e o golpe ocorre quando se encontram…”, pois agora sequer ambos precisam sair de casa. Além de se inserirem em um contexto maior de novos comportamentos não-delitivos de se obter dinheiro fácil apenas pelas assim ditas “habilidades corporais” como TikTok e OnlyFans.

Conclusão

Por fim, também levanto a hipótese de articular as várias dimensões da estrutura da economia e da sociedade brasileiras. O fragmento citado acima é apenas um esboço de síntese de um mapeamento tratado em diversos textos bem recentes e bem acessíveis pelo economista Márcio Pochmann. Nos quais o autor não trata especificamente do jogador de futebol, porém me parece muito preciso transferir para cá seu termo de “desclassados”. No sentido de ser uma dissolução de referências estatais e coletivas enquanto reguladoras das relações sociais. O autor costuma tratar de processos profundos e interligados, vigentes nas últimas décadas e aprofundados nos últimos anos, através de conceitos da Economia Política de re-primarização, des-industrialização e financeirização. Ou seja, atrofia do setor secundário junto da hipertrofia dos setores primário e terciário. Bem como seu impacto nas várias posições da estrutura social. Acrescento que no futebol se manifesta desde o topo até a base, ou seja, desde a tendência recente de patrocínios desses dois setores nas camisas da maioria dos clubes das Séries A e B até os recentes casos de jogadores envolvidos em crimes de manipulação de resultados e até estupros.

Sobre os patrocínios, principalmente nas regiões Sul e Centro-Oeste onde mais se concentram o setor agro com seu poder econômico e até mesmo poder político-eleitoral. O que remete a altas taxas de lucros extrativistas e especulativas às custas de um mercado de trabalho com mais desemprego, mais informalidade e mais soluções estritamente individuais do tipo “empreendedoras” (inclusive “coachs” e “influencers”). Em termos mais irônicos (e trágicos) do autor, é a tendência de transformar o Brasil em um imenso “fazendão” e “cassino”. Assim como Pochmann trabalha em outros textos com uma figura ainda mais trágica de “novo sistema jagunço”, ou seja, um modelo econômico predatório protegido por relações sociais com diferentes combinações de fundamentalismo religioso e criminalidade que se massificam dentro das classes populares. 

Dessa forma, através desses elementos mais amplos, busquei esboçar conexões exploratórias para se pensar esse tão problemático tema da consciência e condição de classe dos jogadores em condições atuais, tendo em seus escândalos midiáticos a face mais visível de elementos bem menos visíveis que acabam naturalizados. Nesse tema complexo que costuma ser tratado em sua dimensão subjetiva do começo ao fim da abordagem, tentei acrescentar elementos da dimensão objetiva. Como uma conhecida frase de movimentos populares: “a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam”.

 
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. “Agora é só orar?”: um modesto mapeamento sobre o que poderá acontecer com o pós-carreira de jogadores famosos. Ludopédio, São Paulo, v. 171, n. 15, 2023.
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