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Ao Rio, o direito de correr para o MARacanã

Rafael Willian Clemente 10 de maio de 2023

Eram romarias que duravam horas seguidas rumo ao Colosso do Maracanã”. (Jornal dos Sports)

Esse não é um texto acadêmico, por mais que haja nele esporádicas inserções teóricas. É, de antemão, um escrito apaixonado. Nascido do olhar “romântico” de um torcedor e não de um estudioso.1 Escrito na seara da desconfiança quando se depara com o “mercado” agindo, e se sobrepondo, às relações espontâneas constituídas da vivência no fluxo contínuo da vida social. Dito isso, vamos aos fatos.

Engalfinham-se a dupla Flamengo-Fluminense e o Clube de Regatas Vasco da Gama (CRVG) num processo judicial que versa do direito de mandar jogos no Estádio Jornalista Mario Filho, popularmente conhecido como Maracanã. As diretorias rubro-negra e tricolor detêm em conjunto a administração do estádio, que após a Copa do Mundo de futebol de 2014, em processos licitatórios – muitos deles desinteressantes tanto do ponto de vista dos negócios privados quanto para a administração pública – passou a tais clubes.

Em meados desse abril de 2023 a sétima renovação do TPU (Termo de Permissão de Uso) venceu e em termos do bom senso e da transparência na gestão dos bens públicos, uma nova licitação poderia ser realizada. Digo “poderia”, pois, o Governo do Estado permite renovação automática do termo. O que leva a dupla Fla-Flu à sétima renovação de uso, sem grandes esforços extras. Entra então, o cruzmaltino no páreo, impetrando mandado de segurança no TJRJ (Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro) solicitando abertura do processo licitatório para participação no pleito. Desviaremos desse torturante caminho burocrático do debate jurídico. Mas vale narrar em breve ressalva os argumentos expostos.

Alegam os mandatários das instituições Fla e Flu que o CRVG não possuirá condições materiais para manter o estádio minimamente funcionando. O que em termos práticos quer dizer que em cada jogo haveria de estarem presentes nas arquibancadas do New Maracanã 22 mil cruzmaltinos, aproximadamente, para que financeiramente não seja deficitária a utilização do aparelho desportivo.

O Vasco da Gama possui o estádio de São Januário, com capacidade máxima para os quase 22 mil torcedores. Descontados o ano de 2020, onde a restrição de público por conta da pandemia do Coronavírus derrubou as estatísticas de circulação em eventos, Vasco e Fluminense oscilaram entre o segundo e o terceiro lugar na média de público. O gigante da Colina disputara a série B, enquanto o tricolor ascendia em boas campanhas nos campeonatos de maior vitrine nacional e sul-americanos. O Clube de Regatas do Flamengo, um dos clubes de maior torcida no Brasil, realizou nos últimos anos uma campanha exponencial. Percorrendo, nem sempre de forma vitoriosa, os mesmos campeonatos sul-americanos e mundial. O isolamento na liderança de público em estádios era fragrante e esperado. Aliás, o que enche estádio é time com nível competitivo; seja disputando títulos ou escapando de rebaixamentos.

Maracanã
Fonte: Wikipédia

Historicamente o CRVG teria condições de arcar com os custos operacionais e em termos do tempo presente o clube passa pelo processo de exploração financeira de sua “marca” (sic) pela 777 Partners,2 o que aparentemente possibilitará ao clube um maior capital monetário de gastos e investimentos. Contudo, este também é um dos argumentos da dupla que hoje gerencia o Maracanã. Em nota, ambos afirmaram que o CRVG e sua SAF (Sociedade Anônima de Futebol), visam tão somente a exploração financeira do estádio, ao contrário dos dois. “Instituições filantrópicas que não visam a exorbitante busca por lucros, mas a satisfação de seus torcedores”.

Explanado o imbróglio, desvio-me novamente de mais uma situação burocrática-jurídica do administrativismo e das interpretações diretivas do caso e adentro nas minhas questões: não seria a participação um direito constituído do torcedor enquanto indivíduo em sociedade? Ou seja, vascaínos, tricolores, rubro-negros, botafoguenses, banguenses, alvi rubros, tricolores suburbanos e etc. não teriam o direito de frequentar o espaço da paixão uns com os outros e com seus adversários em dias de jogos de suas agremiações sem a imposição do business? Não seria o direito à vida social e as sociabilidades históricas, superiores às necessidades e argumentos mercadológicos? Não é o estádio do Maracanã – mesmo sob a nova forma de “arena” esportiva – um direito do cidadão carioca, fluminense, brasileiro, estrangeiro?

São muitas as questões. Para todas, uma simples resposta à complexidade da vida urbana. Sim! O estádio que outrora viveu como “o maior do mundo” é tão pertencente a qualquer um que deseja frequentá-lo quanto àqueles que legitimamente – ou melhor, juridicamente – detêm a exploração de seus espaços.

Não sejamos ingênuos, nem tampouco injustos. A moeda nos é necessária. A vida que vivemos é a vida do grande capital e é assim que operam o poder financeiro, seu braço em política e consequentemente suas definições de território e espaço – público e privado.3 O poder do dinheiro opera na lógica do lucro e da mercantilização dos objetos, dos corpos, das mentes, das relações sociais. Já nos advertiram Marx & Engels, “tudo o que é sólido se desmancha no ar” (Marx, 1998, p.43). A disputa entre as direções administrativas representantes das instituições centenárias do futebol carioca representam os interesses financeiros dessas mesmas instituições.4

O futebol – o esporte – é tão mercadoria quanto uma peça de vestuário.5 Logo, a eles, é interessante maximizar e otimizar seus ganhos mandando seus jogos onde melhor remuneração pelo evento lhes for ofertada. Estejam presentes nas arquibancadas quem possa pagar por mensalidades em programas de sócio torcedor ou as quantias consideráveis em ingressos avulsos para um número exclusivo e excludente de partidas de futebol. Porém, não compreendem, compreendem mal, não querem compreender ou “dão de ombros” para a questão que o futebol é muito mais que um jogo. Nele estão inseridas questões de gênero, representação, identidade, participação, descontração, alienação, política, de vida, enfim. Estejam os excluídos presentes em seu “não espaço” eles ressignificarão sua presença-ausência; e o “não-lugar” será um espaço vívido, não de negócios, mas de sociabilidades e sociações. A privação do espetáculo reverbera em outros campos, muitos deles repugnados pelos cartolas mandatários do futebol – a violência é um exemplo.6

Será bom para o futebol, para vascaínos, rubro-negros, tricolores e toda sorte dos amantes do ludopédio que todos os clubes tenham direito de pisar no solo sagrado de grama encravado no bairro do Maracanã, onde se avizinham o morro de Mangueira e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a UERJ. As chuteiras do scratch cruzmaltino, tanto quanto de banguenses merecem maltratar as gramas do Maraca para cuidar bem da “bola que corre mais que os homens”.7 Toda a sorte de almas torcedores devem ter seu direito preservado de sorrir e chorar por entre as apertadas cadeiras azuis e amarelas do New Maracanã. Os pés descalços e cansados, os ilustrados “pisantes” de executivos, não importando sua classe ou de onde vêm dessa cidade partida, devem, como desagravo pelo o que o poder fez com antigo Maracanã, pular no concreto, subir e descer as rampas cantando e chorando seus fracassos e glórias e irão assim ressignificar o espaço onde nunca descansa à sombra, uma chuteira qualquer que se quererá imortal.

O título é uma simples homenagem à historiadora Gisella de Araújo Moura (O Rio corre para o Maracanã. Rio de Janeiro: FGV, 1998). Referência nos estudos sobre o estádio do Maracanã na Copa de 1950.

Notas

1 Em termos metodológicos, quiçá didáticos, é impossível separarmo-nos em dois personagens. As relações interiores que distinguem a paixão por um objeto de estudo e sua análise multifocal e acadêmica é um processo construído no pré-pós e durante a pesquisa. Que vai se aprimorando a partir da própria interação no campo. Não é aqui nosso foco discutir uma metodologia científica. Porém, nos serve a ressalva, para de modo pertinente, apresentar o que somos e a que viemos nesse breve texto.

2 Empresa de investimentos com portfólio operacional também na área de esportes; atuando de maneira a fortalecer parceiros em “seu potencial de ganhos por meio de desenvolvimento de talentos e produtos, patrocínios, merchandising, publicidade, estratégia de distribuição, NFTs, abordagem Web3, monetização de dados, esportes de fantasia e gamers. ” (tradução nossa).

3 Melo (2022, p.23) trata a compreensão de território num lugar “constituído como fruto das relações políticas conflituosas que se articulam com embates culturais e econômicos”. Portanto, uma questão de disputas, permeia da compreensão sociológica do conceito à prática histórica das relações sociais nele impressa e imposta.

4 Enquanto esse texto era revisado as administrações de Flamengo e Vasco chegavam a um acordo sobre a utilização do estádio do Maracanã para os clássicos entre os dois clubes. Renda e público presente serão divididos em ambos os jogos de ida e volta no Campeonato Brasileiro deste ano.

5Voltamos a Marx (2008) que muito didaticamente explicou o funcionamento da mercadoria no Capital, a partir do valoramento têxtil das confecções.

6 Basta mencionar que diante o imbróglio envolvendo os clubes, torcedores organizados de Vasco e Fluminense trocaram ameaças na web/redes sociais, valendo uma nota oficial das agremiações visando amenizar os ânimos.

7 A frase em evidência é uma breve homenagem ao antropólogo Roberto DaMatta. Um dos pioneiros na antropologia do futebol no Brasil, dono de uma obra conceituada nos estudos sobre o cotidiano popular urbano; entre elas o livro “A bola corre mais que os homens”. (Rocco, 2006)

Referências

MARX, Karl. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 1998.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro 1. Vol. 1. 26.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

MELO, Victor Andrade de. Cidade expandida. Estudos sobre o esporte nos subúrbios cariocas. 7 Letras: Rio de Janeiro, 2022.

MOURA, Gisella de Araújo. O Rio corre para o Maracanã. FGV: Rio de Janeiro, 1998.

SIMMEL, Georg. Sociabilidade: um exemplo da sociologia pura ou formal. In: MORAIS FILHO, Evaristo de. São Paulo: Ática, 1993.

SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito. In Revista Mana, nº 11, vol. 2. p. 577 a 591, Rio de Janeiro, 2005.

Web

777 Partners. Disponível em < :https://www.777part.com/vertical/sports-media-and-entertainment. > Acesso em: 2 maio 2023.

Jornais

ENTENDA ponto a ponto a disputa entre Flamengo, Fluminense e Vasco pelo Maracanã. O Globo, Rio de Janeiro, 25 abr. 2023. Disponível em: < https://oglobo.globo.com/esportes/noticia/2023/04/entenda-ponto-a-ponto-o-imbroglio-entre-flamengo-fluminense-e-vasco-pelo-maracana.ghtml >. Acesso em: 2 maio 2023.

FOI assim que nasceram as maiores rendas do mundo. Jornal dos Sports, Rio de Janeiro. Ano 1950, n. 6412, 19 jul. 1950.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

CLEMENTE, Rafael Willian. Ao Rio, o direito de correr para o MARacanã. Ludopédio, São Paulo, v. 167, n. 11, 2023.
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