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Aprendi a odiar o time dos amigos mais fanáticos

Leandro Marçal 3 de outubro de 2017

O tempo vai passando e aquele lado torcedor fanático, de olhar todas as tabelas e as contratações e os rivais e as análises e os prognósticos vai ficando para trás. Uma adolescência até saudosa, mas guardada num passado sem volta. Não há mais tanto sofrimento, angústia ou alegria vinda de forma gratuita dos campos.

Aí surge aquele colega do trabalho, a namorada, o amigo de infância, o tiozão nas redes sociais. Todos com um fanatismo de irritar a estátua de Drummond na orla carioca, morrendo de vergonha com as fotos bizarras nas quais sequer pode mudar de pose.

Eles pouco entendem e abusam das falácias para jogar na nossa cara que seu time é o melhor. Em suas bocas, estaduais viram universais, derrotas possuem justificativas das grandes conquistas de 50 anos atrás de quem ainda vai ser campeão de tudo em um futuro que nunca chega.

Esses tipos são irritantes. Nem é preciso jogar água para cada um desses Gremlins se multiplicar num tempo estranho, de comemorar gols em perfis de Facebook.

Criei rivais sem relação alguma com meu time, meu Estado e minha história. Fui regando um ódio semeado a cada comentário de alguém desse grupo maldito. Esqueço minha sanidade mental a cada jogo dos representantes dessa gente estranha e fanática. Torço contra eles com o fundo da minha alma e todas as minhas forças.

Profissionais da imprensa esportiva já disseram terem passado a torcer mais por pessoas queridas do que pelo time de coração e infância. Desconfio que o mesmo aconteceu comigo na vida adulta. Eu mesmo: aprendi a odiar os times de muita gente chata que me atormenta a cada segunda-feira pós-rodada.

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Torcedores na arquibancada. Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.

É quase uma excitação de fazer corar velhinhas puritanas quando cumprimento um desses seres odiosos no dia seguinte a uma derrota vexatória ou eliminação transmitida na noite anterior em trezentos canais diferentes. Pergunto se está tudo bem e com um cinismo de dar inveja aos candidatos à presidência.

Finjo demência nas insuportáveis vezes em que o time deles vence. Fico na minha e cumprimento de forma protocolar, sem dar brecha para que cada um dos 5.400 segundos sem acréscimos ou prorrogação vire um monólogo interminável.

Surge um ressentimento embrulhando meu estômago e passo a duvidar do caráter de todos que não economizam nas montagens, áudios e piadas prontas. Levam seu time mais a sério do que tudo aquilo que é realmente sério. Eu, sempre sério, fico mais sério diante desses insuportáveis e levo mais a sério torcer contra seus times, pois o meu nem sempre levo tão a sério assim.

Pode ser que surja algum fantasma da adolescência, escondido no pó dos guias de todos os campeonatos possíveis da década de 2000, guardados numa dessas caixas de papelão em cima do meu guarda-roupas. Ele me atormenta e sopra nos meus ouvidos.

– Nunca vai se livrar de mim, rapaz. O mala do escritório vai falar todos os dias sobre seu time. Vai tentar demonstrar superioridade por meio de seu time. Você vai se sentir um governante da ditadura civil-militar usando o futebol para rebaixar quem discorda de você da forma mais vil possível. Muahahahahahahaha – me amaldiçoa com risadas maléficas de filmes de terror.

Não aguento mais. Se acreditasse em mandingas, faria alguma contra os times dessa gente chata e odiosa, tão fanática que não para de me encher o saco, me fazendo torcer fervorosamente contra seus times. Para eles nunca mais ganharem nada e eu não topar com sorrisos amarelados de entorpecimento, botaria seus times na boca do sapo, na encruzilhada, espetaria bonequinhos de pano.

Daqui a algum tempo, não vai sobrar ninguém por quem eu possa torcer, de tanto tormento e um fantasma me perseguindo. Preciso me exorcizar.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. Aprendi a odiar o time dos amigos mais fanáticos. Ludopédio, São Paulo, v. 100, n. 3, 2017.
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