168.30

Árbitro por um dia: as finais do Campeonato Interclasses

Gabriel Moreira Monteiro Bocchi 30 de junho de 2023

26 de junho de 2023, segunda-feira, 09h30 da manhã. Aplicava uma prova de “recuperação” durante o último dia letivo do 1° semestre na escola em que trabalho, quando fui procurado por dois estudantes da 3° série do ensino médio. Eles traziam um convite dos mais ingratos: “você pode ser árbitro nas finais do Interclasses?”. Relutei, mas aceitei, e neste texto analiso sensações inéditas ao vivenciar jogos de futebol numa perspectiva que nunca antes havia experimentado, e, claro, discuto por que o convite foi “ingrato”.

Em todas as escolas em que atuei como professor, em meus oitos anos como docente, há um acontecimento de grande importância no calendário escolar anual: o Campeonato Interclasses. Em escolas de classe média/média alta, camisetas e uniformes são especialmente produzidos para o torneio, os treinos das equipes se tornam verdadeiras atividades extracurriculares, troféus e medalhas são providenciados. Trata-se de um evento mobilizador e intensificador de amizades, paixões e rivalidades do dia a dia escolar.

Talvez este Campeonato seja o grande evento do que Arlei Damo (2006, p. 47/48) classifica como “matriz escolar” das práticas futebolísticas. Embora o autor não se debruce sobre o Interclasses, é possível pensá-lo à luz de situações escolares e esportivas que “podem ser consideradas atos educativos, sejam eles atinentes ao domínio das técnicas corporais, das sensibilidades estéticas ou dos controles/descontroles emocionais”.

Ao trazer consigo elementos pedagógicos e educativos, somados a emulações do “futebol espetacularizado” – “a matriz espetacularizada do futebol é a que conduz a tensão e o conflito aos níveis mais elevados” (Damo, 2006, p. 44) – que é consumido por muitos estudantes e praticado em suas categorias de base por alguns, as finais do Campeonato Interclasses não são meras atividades no tempo do recreio.

A escola em que ocorreu tal situação, sediada dentro de um clube poliesportivo e social na capital paulista, reservou o ginásio principal do clube para a final do futebol feminino (2ª série vs. 1ª série) e masculino (9° ano vs. 3ª série). De um lado arquibancada, piso de madeira envernizada, traves conforme os padrões oficiais da modalidade, bola da Nike, times com uniformes próprios e industrializados, troféu, medalhas e sentimentos adolescentes. De outro, um par de finos pedaços plásticos nas cores amarela e vermelha, um apito plástico (vermelho como o cartão que expulsa) acoplado a um chaveiro com três chaves e um professor de Sociologia despreparado a operar tais ferramentas, convidado para tal por seu vínculo acadêmico e afetivo com o esporte.

O primeiro jogo foi a final do feminino, e, tal qual ocorre para além dos muros escolares, e para dentro da realidade futebolística mais ampla no Brasil, não houve grande mobilização de torcidas. Jogo leve e tranquilo, com poucas situações que requisitassem a atenção máxima do árbitro iniciante. 0x0 e pênaltis. Uma série de três cobranças para cada equipe, 3×3 (ou 2×2?) no placar, e três séries de cobranças alternadas.

A este instante a presença de torcedores-estudantes no ginásio era grande, e o nível de tensão dos pênaltis fez com que a grade – de altura baixa, a dividir local de ver e jogar o jogo, do local de ver e torcer o jogo – não tivesse mais função. Por duas vezes tentei conter a invasão da quadra, e foram apenas duas: a beleza da cena, o encontro de estudantes divergentes em sala de aula, partilhando um objetivo e energias em comum, com sorrisos nos rostos, era um espetáculo. 

Sem anotar os gols, e tomado pela tensão, perdi a conta do placar, sendo esta ação em si desnecessária, pois de domínio público daquela massa de jovens barulhentos amontoados na quadra: todos ali sabiam o placar, menos eu. Focava-me em observar se a bola estava no local correto, se as goleiras não se adiantaram às cobranças, se a bola entrara de fato, enfim, pratiquei um micro olhar sobre os gestos e movimentos mais básicos do futebol como nunca o fizera!

Escola futebol

1ª série campeã do Campeonato Interclasses de Futebol Feminino! Era a hora da final do masculino, e, junto com esta categoria específica de futebol, entraram na quadra também as masculinidades que lhe são peculiares. 

Um jogo mais rápido, provocado e provocador, com mais intensidade nos choques entre corpos, com mais falas agressivas, em suma, mais confusão para o professor-árbitro. Se no jogo das meninas apliquei apenas um cartão amarelo (pela reincidência de uma estudante-jogadora em colocar a mão na bola, não por uma “ação racional” weberiana, mas sim por uma “ação meramente reativa”), na partida masculina foram três os cartões amarelos aplicados – e rompo com o esboço de formalismo deste texto para dizer que três ficou barato!

O jogo estava 2×1 para a 3ª série, metade da etapa final dentre duas com dez minutos cada, quando ocorreu o lance capital e, perdão pela redundância que aqui se faz necessária, ingrato da partida.

A esta altura do jogo sentia-me seguro em relação à marcação de faltas, a soprar o apito com fôlego e força, confiava que meu olhar julgador sobre os encontros corporais encontrava-se já “treinado”, confiava que o “professor-árbitro” invertera-se num “árbitro-professor”. 

Foi por isso que soprei com tanta força o apito ao ver um aluno da 3ª série travar a perna de um do 9º ano com força desproporcional, pé de um na canela de outro na entrada da área. Apontei a falta e já me preparava para exibir o pedaço de plástico amarelo ao atleta que cometeu a infração quando a bola seguiu seu movimento e foi chutada por outro aluno do 9º ano para dentro do gol. Assoprei o apito novamente e apontei a mão direita ao centro da quadra. 

Confusão.

Foi gol ou foi falta? Poderia desconsiderar a marcação da falta e considerar “vantagem” para a equipe que sofreu a falta e marcou o gol? O aluno atingido rolava na quadra com expressão de legítima dor, afagando a própria perna, sem comemorar o tento de sua equipe. Foi gol ou foi falta?

Recorri a um dos alunos que lá no começo do texto me fez o convite para apitar as partidas. Praticante do futebol e conhecedor das regras, me auxiliou por todo o tempo com as marcações nos jogos, mas, envolto afetivamente nas emoções daquela partida acirrada, disse que a decisão deveria ser minha.

Professores, coordenadores e alunos (ali unificados como torcedores de diferentes idades) chamavam minha atenção para um aluno, à beira da quadra, que filmou o lance em seu celular: com as mãos desenhavam quadrados no ar e gritavam “Olha o VAR! Olha o VAR!”. Jogadores da equipe que sofreu o gol diziam que “pararam de jogar” ao ouvir a marcação da falta, jogadores da equipe que marcou o gol diziam que não houve apito marcando a falta. As torcidas das duas equipes, alunos de diferentes séries, num ato raro no universo escolar, uniram-se em um só objetivo, um só canto: ofender o juiz com coros de baixo calão. Tensões e conflitos da “matriz espetacularizada” em simbiose com a “matriz escolar”, e uma séria decisão precisava ser tomada: foi gol ou foi falta?

Me recordei, ou “inventei uma memória” (Josuá, 2022), sobre não haver vantagem no Futsal e sobre não poder validar um gol após ter apitado a falta. E optei por manter a marcação da falta, anulando o gol marcado.

Confusão.

Retomada a partida, alguns lances depois a 3ª série marcou seu terceiro gol, dissipando tensões e motivações. Um quarto gol – um golaço, diga-se de passagem – quando já me preparava para encerrar o jogo. 3ª série campeã do Campeonato Interclasses Masculino. 

O apito final, entretanto, não me tirou da posição de árbitro, talvez até, em razão dos acontecimentos, tenha a fixado em mim para parte dos estudantes-torcedores. Enquanto tentava sair da quadra, sendo cercado a todo instante, um estudante da 3ª série me abordou: “Professor, você tá ferrado quando for dar aula para essa turma!”. Estou mesmo: Interclasses é coisa séria.

Referências bibliográficas

DAMO, Arlei S. Do dom à profissão: a formação de futebolistas no Brasil e na França. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Ed., Anpocs, 2007.

JOSUÁ, Sofia. Entendendo erros de atribuição e sugestibilidade da memória. Trabalho de Síntese (2ª série E. M.), São Paulo, 2022.

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Como citar

BOCCHI, Gabriel Moreira Monteiro. Árbitro por um dia: as finais do Campeonato Interclasses. Ludopédio, São Paulo, v. 168, n. 30, 2023.
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