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Atotô! Eles estão entre nós: o sincretismo entre o velho Omolu e o senhor Carlinhos Violino

Fabio Zoboli, Perolina Souza 12 de setembro de 2023

Omolu é o orixá avô, uma divindade Iorubá com poderes de intervir sobre a morte e a vida. Para alguns é o mais temido entre as divindades da mitologia africana, para outros é o mais poderoso entre todos os orixás, o senhor da terra. Como filhos dele, ficamos aqui, respeitosamente, com a guia da cura e da passagem. Questão de fé, sabemos… fé que se filia ao imponderável e ao incondicional existente, na verdade, de que entre crer e torcer está a vinculação indelével da adoração.

Para compor com nossa crença no poder restaurador de Omolu, buscamos um personagem que, no panteão rubro-negro, é por muito adorado como uma entidade, Carlinhos Violino. Luís Carlos Nunes da Silva (1937-2015) entrou no Flamengo menino e saiu vovô. Como jogador e técnico, tinha o poder das passagens, da ressureição, era curador de enfermidades, capaz de fazer o time renascer. Nobre qualidade que, assim como o arquétipo de Omolu, o fazia guardião dos espíritos caídos, um curandeiro que colocava fim ao estado de doença e restaurava a vida do Flamengo.

Carlinhos Violino iniciou nas categorias de base do Botafogo, porém, na primeira oportunidade que teve, foi jogar no Flamengo, seu clube do coração. Atuou como jogador por 11 anos, de 1958 a 1969, e com 517 jogos é o oitavo jogador que mais vestiu a camisa do clube. Carlinhos faz parte de um grupo seleto de jogadores que só atuou profissionalmente com o manto rubro-negro. Por unanimidade, é considerado um dos maiores volantes da história do Flamengo.

Seu estilo tranquilo e limpo impressionava quando o assunto era roubar a bola dos adversários, já que era dono da meia cancha e jogava com sabedoria e elegância. O apelido “Violino” é oriundo da finura com que recuperava a bola dos oponentes e da classe ao tocá-la.  Consonante a isso, Carlinhos foi condecorado pela CBF com o prêmio Belfort Duarte por nunca ter sido expulso de campo. Isso mesmo, em sua história Carlinhos Violino nunca tomou um único cartão vermelho. Pelo Flamengo, como jogador, Carlinhos é parte da equipe campeã do Torneio Rio-São Paulo de 1961, e dos campeonatos cariocas de 1963 e 1965.

Flamengo 1963
Flamengo campeão de 1963. Fonte: reprodução/Revista Manchete

O Xaxará de Omolu – que se assemelha a uma vassoura feita com fibras de coqueiro – varre pestes, cura feridas e pragas. É seu instrumento de limpeza, seu cetro. Referência que se aproxima ao simbolismo do violino – instrumento de cordas mais numeroso em uma orquestra, que faz a base de um concerto em sons agudos e graves. Nesse grande conjunto de músicos, Carlinhos seria um Spalla, cargo destinado ao violinista principal, que tanto lidera o naipe de violinos, quanto executa solos em uma peça. Além de ter a função de substituir o maestro, caso ele falte.

Tal qual um concerto, quando um instrumento dá a pausa para outro entrar ou compor junto, o tempo de carreira e a atuação dos jogadores também possui seus movimentos. Quando Biguá (um dos mais lendários laterais direito da história do clube) encerrou sua sinfonia, passou suas chuteiras para Carlinhos, que, ao longo da carreira, executou seu solo em meio ao silêncio contemplativo da orquestra. Por sua vez, para dar alternância ao andamento do time, Carlinhos praticou o mesmo gesto ao final da sua trajetória como jogador. Com o fim de sua cadência, abriu espaço para o menino franzino, que herdou suas chuteiras: Zico, nosso Galinho de Quintino.

Carlinhos sempre foi funcionário do Flamengo, era um personagem respeitado, muito sábio e acometido. Assim como Omolu, estava sempre ali, silencioso, escondido por detrás de suas palhas de dendezeiro, não gostava de aparecer. De sua alma rubro-negra emanava a sabedoria do velho, um saber que tinha poder de abrandar. Por suas características e história, Carlinhos Violino era sempre chamado para “curar as feridas” deixadas por técnicos demitidos. De 1983 a 2000 foram sete[1] passagens como técnico, sempre vindo para “apaziguar epidemias” causadas por outros treinadores. Foi como treinador que Carlinhos Violino ganhou mais uma porção de títulos pelo Flamengo: três campeonatos estaduais (1991, 1999 e 2000), dois brasileiros (1987 e 1992) e a Copa Mercosul (1999).

Por entre as palhas de Omolu, muitas lendas são contadas… Alguns acreditam que seu manto[2] servia para proteger as chagas de sua pele. Outros botam fé na versão de que suas palhas tinham função de resguardá-lo da exposição pública de sua beleza solar, revelada pela ventania de Iansã quando lhe chama para dançar no Xirê dos orixás, fazendo com que das feridas do seu corpo, causadas pela varíola, saltassem pipocas[3] que preencheram todo o palácio de Xangô de branco. Como recompensa, Omolu concede a Iansã o poder do domínio sob o reino dos mortos.

Trazidos como escravos, os nossos ancestrais africanos não podiam cultuar os orixás, diante da catequese dos padres portugueses. Para seguir professando sua fé, os negros sincretizaram Omolu às imagens de São Roque e São Lázaro. Para os católicos, São Roque é o protetor das pragas e doenças, e também o cuidador e tutor dos cães. Por sua vez, São Lázaro é o santo ligado à proteção dos enfermos e desamparados, seus devotos buscam conforto nele para curar chagas e feridas de pele. Ele também é protetor dos cachorros, afinal esses eram os que lambiam suas feridas. Assim, Omolu é também visto como o orixá que é guardião dos cães. A fidelidade de Carlinhos Violino pode ser assim também equiparada a de um cão valente e majestoso, que jamais deixou de estar do lado do Flamengo.

Carlinhos Flamengo
Fonte: divulgação

De suas passagens como técnico, vale destaque a conquista dos dois títulos nacionais. Até o ano de 1987, Carlinhos era sempre um técnico “tampão”, uma espécie de plantonista de pronto-socorro que dá os primeiros cuidados aos feridos, tentando mantê-los vivos. Violino assumia como interino, por uma dezena de jogos, até a chegada de outro treinador. Porém, durante o campeonato brasileiro de 1987, Carlinhos assume o comando do estrelado Mengão, que tinha os já consagrados Zico, Leandro e Andrade. Nesse ano, Carlinhos fez a passagem de alguns jogadores: é dele a transição dos jovens Zinho e Leonardo e a afirmação do craque Bebeto (que se consagrou naquele ano). À exemplo de Omolu, de transição e passagem, Violino sabia muito. Em 1992, o técnico Carlinhos comandou um bando de meninos, com exceção do “vovô-garoto” Junior. O Flamengo nem de longe era favorito no certame, mas com os poderes de dois velhos (o técnico violinista e o maestro Junior), o Flamengo fez o Botafogo sentir na pele a praga de ser vice-campeão. Como treinador foram 313[4] jogos à beira do gramado, comandando o Flamengo com a mesma classe de quando jogava.

Em 2011, Carlinhos Violino teve sua trajetória no clube reconhecida, por meio da exposição de seu busto talhado em bronze. Assim, nosso personagem segue eternizado na Gávea, com uma homenagem que ficou para sempre. Na nossa imaginação mística, com sua passagem ao mundo dos mortos, aos 77 anos, o senhor Carlinhos encontra com o velho Omolu, em 22 de junho de 2015, em uma nova possibilidade de existência.

Só um propósito de vida, que tem a fé como fonte, é capaz de fazer não desistir dos caídos e desamparados. Foi assim com a acolhida de Iemanjá a Omolu, que lhe oferta simbolicamente um manto e a beleza das pérolas, para fazer dele um homem curado, saudável e também abundante de riqueza. É assim que Omolu se constituiu simbolicamente, enquanto entidade, acolhendo seus filhos e dando conforto aos seus fiéis. E foi assim que Carlinhos Violino, com o seu trabalho dedicado, seu compromisso e sua delicadeza, por tantas vezes “curou” o Flamengo, deu socorro às suas chagas, foi responsável por ritos de passagem e concedeu fortuna em forma de títulos.

Carlinhos Flamengo
Fonte: reprodução twitter @Flamengo

Notas

[1] Sete é também o número que representa bons presságios para os filhos de Omolu.

[2] É o manto que Iemanjá fez para ele quando o acolheu do abandono de sua mãe, que o desamparou por conta da varíola.

[3] Por tais motivos, a Omolu são ofertadas pipocas nos seus dias de festa. A segunda-feira é o dia da semana em que se celebra Omolu, e o dia 16 de agosto é a sua data festiva no ano. O “banho de pipoca” é também ritualística ligada a Omolu, que tem como finalidade limpar o corpo de energias negativas. A pipoca representa a transformação e mudança, afinal ela se faz da transmutação do milho.

[4] Se somar o quantitativo de partidas como jogador e como técnico, Carlinhos Violino atuou pelo Flamengo em 830 jogos.

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Fabio Zoboli

Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe - UFS. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e política".

Perolina Souza Teles

É professora da rede pública de ensino do estado de Sergipe. Atualmente é doutoranda em educação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e membra do "Grupo de pesquisa Corpo e política/UFS".

Como citar

ZOBOLI, Fabio; SOUZA, Perolina. Atotô! Eles estão entre nós: o sincretismo entre o velho Omolu e o senhor Carlinhos Violino. Ludopédio, São Paulo, v. 171, n. 12, 2023.
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