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Baculejo, racismo institucional, violência policial

João Pessoa, 30 de julho de 2023. Domingo de futebol na capital paraibana, dia em que o Botafogo-PB enfrentaria o Manaus-AM pela 15ª rodada da Série C do Campeonato Brasileiro de Futebol. Eram os momentos decisivos daquela primeira fase, o Belo à época jogava pela classificação para o quadrangular de acesso e o clube amazonense lutava contra o rebaixamento.

Jogo importante, pois. De muita expectativa e interesse para ambos os lados. E que mobilizava os torcedores do time da casa desde muito cedo. Para se ter uma ideia, a partida estava marcada para sete da noite, mas desde o início da tarde já era possível perceber uma intensa movimentação dos botafoguenses pelos diferentes bairros da cidade.

Apesar de todo esse preâmbulo, contudo, esse texto aqui não pretende falar especificamente de futebol, de Série C, da partida que terminaria com vitória do Belo por 2 a 0. Ainda que fosse importante contextualizar o cenário que estava posto naquele dia, pois, pretendo tratar aqui sobre algo o que chamei em minha tese de doutorado em antropologia social, defendida recentemente, de preconceito institucional das forças estatais de segurança contra torcedores organizados.

Mais do que isso, contra torcedores organizados que são majoritariamente negros, pobres, periféricos.

Bem, por causa da pesquisa em curso, muitos dos meus dados etnográficos estavam provisoriamente embargados. Passada a defesa, portanto, já liberado a publicizar alguns desses dados, quero antes de tudo apresentar uma foto que para mim é uma das mais emblemáticas sobre toda essa violência institucional da qual pretendo analisar aqui:

A foto foi tirada por mim, exatamente no pré-jogo daquele 30 de julho de 2023.

TJB
Torcedores da TJB passam por revista coletiva da Polícia Militar da Paraíba. Foto: Phelipe Caldas

Pesquisando a Torcida Jovem do Botafogo-PB, a torcida organizada mais antiga da Paraíba, e que é formada majoritariamente pela população periférica de João Pessoa, eu estava naquele dia na P1, uma praça localizada no bairro de Cristo Redentor e que fica a cerca de 800 metros de distância do Estádio Almeidão, local da partida.

Eram cerca de cem torcedores, eu no meio, fazendo festa, cantando, bebendo e brindando, vivendo a expectativa pela vitória e a ansiedade pela classificação. Não havia briga, não se tratava de um jogo quente em que encontros com torcidas rivais são possíveis, não havia nenhum tipo de confusão ou animosidade.

Ainda assim, por volta das 16h, quando as performances torcedoras iam se tornando mais entusiasmadas, três viaturas da Polícia Militar da Paraíba se aproximaram e estacionaram no meio da rua, 12 policiais desceram dos veículos e se aproximaram acintosamente daquele grupo de torcedores.

A ação foi repressiva, violenta, ameaçadora. Todos os torcedores levados para a calçada do lado oposto da via, de costas para a rua, em posição de baculejo. Pernas abertas, cabeças eretas para frente, mãos na cabeça.

Um a um seria revistado naquele dia. Todos, menos um. Eu! O único que, aos olhos dos policiais, fugia do perfil que eles problematicamente classificam como sendo de um suposto “torcedor de risco” (Tsoukala, 2014).

É uma cena que chega a ser constrangedora. Além de absolutamente violenta, constrangedora. Que me fazia quase pedir para também eu ser revistado. A despeito disso, contudo, fui deixado de lado, sem ser incomodado nem mesmo quando comecei a tirar algumas fotos. Como a que ilustra o texto que se segue, por exemplo.

Trata-se de uma cena que, de toda forma, escancara o fato de que a revista policial aleatória e sem ser baseada em fundada suspeita, algo que é considerado ilícito pelo Código de Processo Penal, não só é uma realidade, como é uma realidade baseada em estereótipos, sinais diacríticos (Almeida, 2004), preconceitos de toda ordem, racismos.

O baculejo tem cor, tem classe social, tem forma de se vestir, tem bairro de origem.

Não foram poucas as vezes que eu passei por aquela situação.

Estar ao lado de vários torcedores organizados e, de repente, ser apartado do grupo por policiais. Que revistam os torcedores organizados negros e de periferia e me deixam de lado. Naquele dia, contudo, a dimensão do episódio tornava tudo ainda mais escancarado.

É uma outra forma de se perceber o racismo. Não falo sentir, óbvio, mas perceber. Perceber o racismo a partir de tudo aquilo o que o seu companheiro de arquibancada sofre, mas que você não sofre.

E que, numa perspectiva mais metodológica, demonstra de forma muito didática a máxima que autores como Firth (1998) e Strathern (2014) alardeiam de que, numa pesquisa etnográfica, o pesquisador estranho ao grupo nunca se tornará “um deles”.

Não importa quantos anos se dedique à pesquisa, o quanto se integre ao grupo, viva as mesmas vivências, conquiste a confiança dos interlocutores, seja aceito pela coletividade. Não importa nada. Haverá sempre episódios alheios ao pesquisador que vão marcar muito fortemente as diferenças.

Às vezes, tais diferenças serão negociadas ou delimitadas entre pesquisador e interlocutores. Às vezes, será imposta à revelia dos dois lados por policiais racistas que decidem de forma escancaradamente aleatória quem será e quem não será revistado.

Referências

ALMEIDA, Miguel Vale de. O Manifesto do Corpo. Manifesto, n. 5, pp. 17-35, 2004.

FIRTH, Raymond. Nós, os Tikopias: um estudo sociológico do parentesco na Polinésia primitiva. Trad. Mary Amazonas Leite de Barros e Geraldo Gerson de Souza São Paulo: Edusp, 1998.

STRATHERN, Ann Marilyn. O Efeito Etnográfico e Outros Ensaios: Marilyn Strathern. Trad. Iracema Dulley, Jamille Pinheiro e Luísa Valentini. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

TSOUKALA, Anastassia. “Administrar a Violência nos Estádios da Europa: quais racionalidades?”. In: HOLLANDA, Bernardo Buarque de; REIS, Heloísa Helena Baldy dos (orgs.). Hooliganismo e Copa de 2014. Rio de Janeiro: 7Letras, pp. 21-35, 2014.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Phelipe Caldas

Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos, mestre em Antropologia pela Universidade Federal da Paraíba, graduado em Comunicação Social - Jornalismo pela UFPB. É escritor e cronista, com quatro livros já publicados. Integra o Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e de Sociabilidade (LELuS/UFSCar) e o Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnografias Urbanas (Guetu/UFPB). É membro-fundador da Rede Nordestina de Estudos em Mídia e Esporte (ReNEme).

Como citar

CALDAS, Phelipe. Baculejo, racismo institucional, violência policial. Ludopédio, São Paulo, v. 176, n. 7, 2024.
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