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Cadê o camisa 10 negro? Pequena reflexão sobre o racismo no futebol

A meteórica ascensão de Paul Pogba, um dos mais talentosos meias do futebol atual me traz um questionamento: onde estão os camisa 10 negros? Aliás, quando eles foram tão visíveis assim?

O futebol se consolidou como o esporte mais praticado do mundo por diversos motivos, dentre eles, agregar pessoas distintas na paixão que o fomenta, independendo de classe social, escolaridade, sexo ou origens étnicas. Em sua história, diversos jogadores negros foram destaque, sendo um deles melhor jogador de todos os tempos, mas nada disso exclui o fato de ser um esporte com marcantes traços racistas, a expressão “trações” é bem apaziguadora.

A ausência do camisa 10 negro, de ofício e não necessariamente de numeração, chama a atenção no futebol atual, tanto internacionalmente como nacionalmente. Existe um número reduzidíssimo do 10, do jogador que pensa o jogo, que o comanda, quais seriam os motivos disso? Por que o negro serve para todas as posições e não serve para ser o 10? O mesmo se aplica a treinadores, o que falaremos em outro momento. Como fora dito, procuramos por 10 de ofício, não de numeração, o que automaticamente exclui o atacante Lukaku do Everton.

Para tal reflexão são analisadas as 5 principais ligas europeias na temporada 2014/2015 e o Campeonato Brasileiro de Futebol de 2015, buscando identificar quais são os camisas 10 hoje e os últimos 10 dos principais times dessas ligas, tal como a presença de negros entre eles.

Antes, deixo claro que a frase “não existem mais 10 (clássicos) no futebol” é uma falácia, vendida por quem lucra com o futebol no Brasil. O fato de não existirem mais 10 em abundancia no futebol brasileiro, não significa que estes não existam mais, mas isso é reflexo de uma noção mercadológica que há 2 décadas procurou “fabricar” jogadores para exportação.

Temos 10 de ofício e talentosos, vamos lá: Hazard, Mahrez, Coutinho, Mata, Ozil, David Silva, Eriksen, Insigne, Pijanic, Ljajic, Perisic, Honda, Candreva, Cerci… nessas terras ainda há destaque para dois 10 que já foram o 10 de função, Di Nnatale e Totti… Gundogan, Mkhitaryan, Thiago Alcantara, Weisser, Xhaka, Çalhanoğlu, Bellarabi, Sainè, Draxler, Turan, Rakitic, Koke, Bruno Soriano, Krychowiak, Raul García, Feghouli, Di Maria, Pastore, Verrati, João Moutinho, Valbuena… isso contando as ligas em destaque, saindo ainda temos Sneijder, Xavi, Pirlo, Van der Vart, Brahimi, Bryan Ruiz, Gaitan, Klaassen, Guardado e muitos outros, portanto, não faltam 10 de função no futebol mundial.

Desta lista, quantos são negros? Pois bem, Sainè o é, podemos também considerar Brahimi, mas confesso que na lista faltaram 2, que aparecerão na análise que farei sobre os 10 negros em quantidade em cada grande Liga.

Antes da análise em si, deixo claro que o Pogba se destacaria de qualquer jeito, visto que é um talento raro, tal como Seedorf.

Na seleção francesa, durante a Copa de 2014, Pogba atuou com a camisa 19. Foto: Rogério Santana/GERJ.
Na seleção francesa, durante a Copa de 2014, Pogba atuou com a camisa 19. Foto: Rogério Santana/GERJ.

Na Inglaterra de 20 times, temos André Ayew do Swansea, tem-se também o Willian que joga de ponta no Chelsea e é mais corredor de lado do que o pensador.

Na Itália 20 equipes, além de Pogba, temos um jogador que faz a função de 10, que teve sucesso em outro momento que é Kevin Prince Boateng.

Na Espanha 20 equipes, nenhum camisa 10 negro.

Alemanha 18 equipes, temos a revelação alemã Sainè e Yunus Mali do Mainz.

Na França, podemos pensar automaticamente que teremos diversos camisas 10 negros, por ser a liga mais “enegrecida” de todas as citas por conta das migrações recentes e um miscigenação marcante, mas na prática temos Lassana Diarra do Olympique Marseille, Gilles Susu do Angers e Saidi Ntibazonkiza do Caen. Destaca-se aqui o Olympique Marseille que tem em Lass seu 10 atual e que, antes dele Andre Ayew que é filho de outro 10 negro, Abedi Pelé.

Para tratar tal assunto, uma análise do futebol brasileiro também é necessária, afinal aqui é o país da “democracia racial”. Carlos Alberto do Figueirense e Andrezinho no Vasco da Gama, tendo como base o Campeonato brasileiro de 2015, são os únicos 10 negros.

Com base nesses números, são 98 camisas 10 (de função) titulares nas ligas indicadas, visto que na Alemanha temos 18 clubes, chegamos a um número assustador de 9 camisas 10 que são titulares de suas equipes, o que corresponde a 9,1%. Isso mesmo, nem 10%. Isso considerando Boateng que nem titular é.

Mas antes de qualquer conclusão apressada, pergunto, qual foi o ultimo camisa 10 negro dos grandes clubes?

Comecemos de forma invertida, fiquemos no Brasil. Primeiramente o Vasco da Gama, por questões históricas bem óbvias, comecemos pelo Vasco, antes de Andrezinho, atual 10 de ofício, recordamos Wagner no início da década de 2000 e antes disso, em tempos longínquos já, o craque Dener. No botafogo de Futebol e Regatas (curto esse nome), tivemos Seedorf, que é um caso paradoxal, visto que é penúltimo 10 negro de Milan, Inter de Milão e Madrid (os últimos é bem verdade não tiveram sucesso, Boateng e Lass) e de Ajax, antes dele, no time carioca não me lembro de outro. No Fluminense, que tem marcas históricas inversas ao do Vasco da Gama, assustadoramente, encontrei o Assis em meados da década de 1980. No Flamengo, time popular, me lembro do Nélio.

No Santos, o ultimo camisa 10 de ofício, neste caso não de número, foi o Zé Roberto em sua passagem, na qual foram você da libertadores da América. No São Paulo, excluindo o Julio Baptista que segundo meus critérios não era 10 de fato, não encontro nenhum. No Corinthians, time também popular, temos o Willian hoje Chelsea, que na época era um autêntico 10. No palmeiras, não me lembro.

Grêmio, considerando que quando o Zé Roberto passou por lá recentemente, já era volante e no Inter, também não me lembro. Cruzeiro e Atlético Mineiro, também não.

E nos grandes times das grandes ligas citadas?

Na Inglaterra, me vem a mente o Jay Jay Ococha, talvez por conta da admiração, mas para além do craque nigeriano,

Na Itália, temos o caso do Pogba, atual 10 da Juventus, além de recentemente Seedorf ter vestido a 10 dos dois times de Milão. Outro caso é do meia brasileiro Luciano que fora o camisa de do Chievo Verona por alguns anos.

Na Alemanha, para além dos casos citados, lembro-me do Zé Roberto, no ano do regresso.

Na Espanha, no Madrid, Lass sem muito sucesso e Seedorf. Nos outros grandes espanhóis, não tenho lembrança, considerando que Robinho não fora 10 de ofício em Madrid.

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Seedorf que foi o camisa 10 do Botafogo. Foto: André Gomes de Melo/GERJ.

Na Liga Francesa, para além dos casos citados, me vem a mente o camisa 10 Jay Jay Okocha no ainda não milionário Paris Saint Germain, mas com certeza temos mais casos, mas não se trata de uma liga que acompanho tão de perto quanto as outras citadas. Temos o caso do Olympique Marselha, com Lass, Ayew e seu pai, maior ídolo deste time.

Mas ainda podemos fazer outra pergunta necessária, qual o maior ídolo de um clube que seja negro? Pelé e Eusébio, sim, e os outros? Abedi Pelé e talvez Leônidas da Silva, que hoje não mais é o maior ídolo do São Paulo, mas é um grande ídolo.

Tenho que perguntar, por que o Didi não é um grande ídolo do futebol brasileiro? Essa pergunta tentarei responder em outro momento, mas fico espantado como um dos maiores futebobistas do futebol brasileiro foi esquecido, muitos que me leem aqui nem mesmo sabem de quem estou falando, ou reproduzem “ahhh o folha seca”, não meu amigo, trata-se de um dos maiores jogadores que o mundo já viu, sendo considerado o melhor jogador da Copa do Mundo de 1958, sim aquela que Pelé e Garrincha destroem.

O futebol é racista por conta de uma sociedade racista ou ele enquanto objeto cultural faz parte da construção de uma sociedade racista?

As questões levantadas aqui são complicadas, o futebol é um formador de caráter, o meu mesmo foi em parte (grande) formado pelo futebol. Cresci com pouca instrução escolar que refletisse sobre racismos e preconceitos, mas o futebol sempre me mostrou que grandes ídolos não tem cor, nacionalidade, estatura, tipo físico, orientação religiosa ou ideológica, são ídolos. Hoje, com mecanismos teóricos de reflexão, desconsidero ídolos jogadores babacas e com orientações ideológicas agressivas e intolerantes, mas o futebol me ajudou a ver um mundo de igualdade possível entre as pessoas.

Tudo isso envolve questões teóricas, econômicas, estéticas e questões simbólicas que podem ser tratadas por um historiador profissional, serão abordados em um momento propício, mas por hora fica essa iniciativa de reflexão. Poucos negros com a 10, o pensante, não existe por conta não do protagonismo, mas porque entender o negro como alguém que pense menos ou não pense é a base fundamental do racismo, em novelas e filmes por exemplo, é mais fácil ver o negro protagonista que vence por conta do acaso, da natureza ou do coração, do que vermos o vilão pensante, cheio de planos. Outro motivo é estritamente estético, como viram, não coloquei aqui jogadores “mestiços” (palavra horrenda e carregada de preconceito), como Djalminha, Ronaldinho Gaúcho e Rivaldo, que são aceitáveis na mídia e sociedade, quem conhece futebol e viu os nomes citados entendeu qual é a apropriação estética aplicada para se permitir ou não o 10 negro. As questões econômicas estão atreladas as anteriores, visto que o jogador negro vende menos, dentre os 10 jogadores que mais vendem camisas hoje, temos o Yaya Tourè, apenas. Sobre o símbolo de termos o 10 organizador de jogo é óbvia, lembrando que para alguns historiadores, as disputas de domínio na sociedade se fazem justamente nas questões simbólicas e, o 10, a camisa 10 e o jogador que pensa um jogo complexo com posições distintas, é de uma força simbólica avassaladora.

Dizem que o futebol reflete o mundo, mas não, é bem mais que isso, o futebol participa da construção do mundo. Por isso pergunto, cadê o camisa 10 negro?

Vida longa ao fantástico camisa 10 Paul Pogba.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Makchwell Coimbra Narcizo

Doutor em História pela UFU, Graduado e Mestre em História pela UFG. Atualmente professor no IF Goiano - Campus Trindade. Desenvolve Estágio Pós-Doutoral na PUC Goiás. Membro do GEPAF (Grupo de Estudos e Pesquisa Aplicados ao Futebol - UFG). Coordenador do GT Direitas, História e Memória ANPUH-GO. Autor dos livros: A negação da Shoah e a História (2019); A extrema direita francesa em reconstrução - Marine Le Pen e a desdemonização do Front National [2011-2017] (2020) dentre outros... isso nas horas vagas, já que na maior parte do tempo está ocupado com o futebol... assistindo, falando, cornetando, pensando, refletindo, jogando (sic), se encantando e se decepcionando...

Como citar

NARCIZO, Makchwell Coimbra. Cadê o camisa 10 negro? Pequena reflexão sobre o racismo no futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 92, n. 13, 2017.
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