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Camisas Negras 1923, na direção da profissionalização do futebol

José Nilton da Silva Júnior 24 de janeiro de 2024

Centenário Camisas Negras (1923-2023)

Em 2023, o Club de Regatas Vasco da Gama celebrou o centenário do seu primeiro título carioca, com seu time que ficou conhecido como Camisas Negras. Esse time e essa conquista são objetos de muitos estudos em diferentes áreas acadêmicas. A proposta desse artigo é salientar o contributo para profissionalização do futebol numa época em que o futebol era amador.  

Essa conquista  dos camisa negras, na primeira participação do scratch cruz-maltino na 1ª divisão da série A da Liga Metropolitana de Desporto Terrestre (LMTD), que já contava com Fluminense, Botafogo, Flamengo e América (considerados os grandes) e ainda, Andarahy, São Cristóvão, Bangu; trouxe algumas contribuições para transformações da realidade do futebol carioca e brasileiro.

O futebol, no início do século XX, nos primeiros clubes do Rio de Janeiro começa a ser praticado como uma força de celebração da identidade bretã (Pereira, 1981). Isso porque há uma sofisticação do perfil construído para o futebol no Rio de Janeiro. Contudo, apesar desse perfil elitista, a difusão do futebol não ficará restrita. Ainda que fosse o desejo de muitos, a essa elite da sociedade carioca da época.

Fundação do Vasco da Gama

O Club de Regatas Vasco da Gama  tem a sua fundação em 21 de agosto de 1898, por portugueses, nos primeiros anos da república brasileira, em comemoração ao IV Centenário do navegador português, Vasco da Gama, no caminho marítimo das Índias. A cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, possuía a maior colônia de imigrantes portugueses de qualquer outro lugar do mundo.

A formação de clubes de colônias de imigrantes, no Brasil, era muito comum nesse período, principalmente de ingleses, como por exemplo o São Paulo Athletic Club, o Rio Cricket; como também de italianos, como Palestra Itália e outros.  Com isso, os portugueses do Rio de Janeiro viram na formação de um clube, uma maneira de se fortalecerem no seu próprio estabelecimento no Brasil. Importante destacar que estavam um período o tanto quanto sensível para os lusitanos, pois os portugueses estavam associados a ideia de colônia e império, símbolo do atraso. Havia um certo antilusitanismo presente na jovem república brasileira.

O  início do futebol no Vasco da Gama

O ingresso do Vasco da Gama na modalidade do futebol  não é da sua fundação. O início do futebol no Vasco se deu na presidência de Raul Campos, a partir de 1915, com  aprovação da ata de criação do futebol no clube. O então presidente, junto com seu irmão Antônio Campos (que foi presidente do clube na campanha campeã dos camisas negras em 1923) marcam a história do Vasco e apontam para o advento da profissionalização do futebol.

A ideia de formar um time de futebol no clube foi motivada a partir do sucesso da excursão de um combinado de jogadores portugueses ao Brasil. A partir desse evento, Raul Campos estava decidido a ter no Vasco um grande time de futebol para rivalizar com os grandes clubes do Rio de Janeiro, do Brasil e do mundo. (João Malaia 2010).

No início do século XX, a exclusão dos trabalhadores em relação a prática de esporte, não era algo restrito ao futebol. Entretanto, apesar de todas as dificuldades, com restrições sociais, financeiras e até raciais impostas pelos clubes que surgiam na época, não garantiu o monopólio da prática do futebol. E por isso, a Liga Metropolitana de Foot-ball (1904), posteriormente a Liga Metropolitana de Sports Atléticos (1907) foram criadas na cidade do Rio de Janeiro. Essas ligas surgem para regulamentarem a prática e organizarem campeonatos dos quais fariam parte esses clubes que preenchiam esses quesitos que mantivessem a “fidalguia” do futebol.  

A expansão do futebol no Rio da Janeiro

Houve uma mudança na cidade do Rio de Janeiro, um novo marco arquitetônico, junto com as fábricas e os prédios que foram surgindo, os automóveis e os bondes de cidade, os clubes também quiseram ter as suas “arenas”, para os jogos de futebol. (João Malaia, 2010). O futebol começou, cada vez mais, a despertar o interesse dos cariocas, de diferentes regiões e condições sociais.

Esses grupos excluídos da Liga Metropolitana criaram suas próprias associações, inclusive uma Liga Suburbana de Foot-ball. Desse modo, o futebol deixou de ser claramente monopólio de poucos, se é que foi algum dia. O futebol se tornou um jogo praticado por diversos grupos, de diversos perfis sociais, e igualmente atraiu pessoas desses diferentes perfis sociais para acompanharem, até mesmo os jogos daqueles clubes dos quais não podiam ou tinham condições financeiras de fazer parte como sócios, mas davam um jeito de comparecer nas arenas ou lugares próximos (muros, lajes) para assistir esses jogos.

A tentativa de excluir o trabalhador do futebol

Desde o início, o Club de Regatas Vasco da Gama não fez questão de ter jogadores identificados com os players dos grandes clubes cariocas, mas buscou entre os vários jogadores disponíveis nos subúrbios da cidade. Homens pobres, trabalhadores “braçais”, com baixos salários, desempregados, que seriam os jogadores do time do Vasco. Isso não significou que os outros clubes não pudessem ter um ou outro jogador negro ou de baixa condição social; uma vez que queriam ser competitivos, queriam ganhar, mas era sempre um dilema. No entanto, essa foi a base dos jogadores do Vasco da Gama, com intuito de competir e ganhar, não se importando com o aspecto socio racial dos seus jogadores.  

Depois de aprovado pela Liga Metropolitana, o Vasco iniciou sua participação na 3ª Divisão do Campeonato Carioca. Importante entender que a Liga havia criado a 2ª e 3ª divisões para manter os times “pobres” da cidade. Consequentemente, desse modo manteria os grandes clubes separados de clubes de negros e brancos pobres.

O futebol amador contra a profissionalização 

Apesar da exclusão e desejo de que o futebol permanecesse dentro dos domínios de grupos sociais específicos. Os clubes cariocas aos poucos compreenderam que deveriam atrair sócios e torcedores para arrecadação para sua manutenção. E para isso, era cada vez mais necessário que houvesse bons jogos, boas disputas, melhores campeonatos e que estivessem preparados para serem campeões.

O futebol era amador, ninguém podia receber para jogar futebol. Não obstante, cresceu cada vez mais a busca por jogadores para reforçar suas respectivas equipes. E esse amadorismo é reforçado com a proposta da chamada Lei do Amadorismo de 1916. Essa lei de 1916 especificava as profissões indesejadas para poder jogar futebol pelos clubes, e estava direcionada a exclusão de profissionais das camadas sociais mais baixas, com menos ou sem escolaridade. Essa questão acabou ficando em aberto, mas houve mudanças das regas da agora então, em 1917, Liga Metropolitana de Desporto Terrestre (LMDT), no entanto deixando clara o fato de não permitir analfabetos entre os jogadores.

Camisas negras
Time titular Camisas Negras na 14ª rodada do campeonato de 1923, no dia 19 de agosto, jogo contra o Bangu. Vasco 2×2 Bangu. O time já havia sido campeão antecipado na semana anterior. Fonte: reprodução

A composição do Camisas Negras, campeões de 1923

Em 1919, sob a presidência de Francisco Marques da Silva, sem se importar com a cor da pele ou com a condição social dos jogadores do seu primeiro quadro, o Vasco contratou, de uma vez, seis jogadores dos melhores times dos subúrbios cariocas. A imprensa chama o Vasco em 1919 de “scratch da Liga Suburbana” (João Malaia, 2010). Entre esses jogadores estava o goleiro Nelson da Conceição, que fez parte do time campeão Camisas Negras de 1923.

O Vasco da Gama deu condições para que seus jogadores pudessem se dedicar a jogar futebol. Pagando diretamente a maioria desses jogadores pela prática do futebol. Ou seja, após trazer para o Vasco pessoas disponíveis, sem distinção social ou racial, para formação da sua equipe ainda na 2ª divisão, observando apenas a qualidade desses jogadores. Com isso os dirigentes vascaínos formaram com o tempo um time de futebol bastante competitivo.

O elenco de jogadores “profissionais” do Vasco da Gama, que se dedicava exclusivamente ao futebol, vendia desse modo sua força de trabalho aos dirigentes e sócios vascaínos, que pagavam “salários”, em média, melhores do que os que eram pagos a trabalhadores braçais na cidade. Em suma, o Vasco da Gama começou a praticar uma relação de trabalha com alguns dos seus jogadores, ainda quando o futebol era amador. E essa equipe do Vasco da Gama já em 1922 despertou o fascínio da população carioca da época. Essa parte da população que se identificava com esses jogadores negros, brancos pobres e analfabetos, muito mais do que com advogados, médicos, engenheiros ou estudantes universitários.  E quando esse time ascendeu a série A, elite do futebol carioca, em 1923, para disputar o título carioca entre os times da elite, significou a identificação por parte dessa parcela da sociedade.

A identificação do torcedor com os camisas negras

Não que seja algo exclusivo do Vasco, a identificação do seu torcedor com o clube. No entanto, o fato é que a escolha pelo Vasco da Gama, passava por uma identificação social. Muitos trabalhadores, pobres  e analfabetos se viam naqueles jogadores, tinham a mesma origem. O futebol se mostrou importante, desde o início, para as identidades sociais, raciais, de gênero e etárias, guardada as devidas periodicidades. Essa questão hoje, já não surpreende mais ninguém: a relevância social do futebol. Como disse o  cronista Nelson Rodrigues “em futebol o pior cego é o que só vê a bola”.  

A torcida vascaína nesse período era bem maior do que dos outros clubes, inclusive dos grandes e mais antigos clubes. Por causa dessa identificação com o time, um grande público superlotava, todas as vezes que o Vasco jogava. O estádio do Fluminense, mesmo depois de ampliado, já era pequeno em 1923. Cada vez mais o jogos atraiam torcedores. E o jogos do Vasco atraiam muito mais.

E para os portugueses,  o objetivo  era de formar um time campeão. A partir daí daria a esses imigrantes  e seus descendentes, comerciantes, donos de comércio de “secos e molhados”, maior destaque dentro da sociedade carioca.

Óbvio que foram muitas as tentativas da Liga para impedir ao Vasco da Gama de conquistar o campeonato. Até mesmo uma “Liga contra o analfabetismo” começou a atuar para retirar o registro da Liga, de jogadores que fossem considerados analfabetos. 

Camisas Negras 1923

Esse time do Vasco em 1923, conhecido como Camisas Negras, disputou os primeiros clássicos cariocas do cruz-maltino. Venceu todos os considerados grandes no primeiro turno do campeonato. Dos quatorze jogos: foram onze vitórias, dois empates e apenas uma derrota no returno. Foram campeões com uma rodada de antecedência no dia 12 de agosto de 1923. E essa é a história desse primeiro título carioca do Vasco da Gama.

Mais do que um título, no qual o Camisas Negras foi declarado o melhor time da cidade do Rio de Janeiro. Essa conquista representou a vitória do futebol praticado por pessoas das camadas mais baixas de maneira profissional contra uma elite que queria se manter hegemônica, controladora e determinadora de quem poderia praticar o futebol. E tudo isso conquistado por um time que estreava na 1ª Divisão. Tal feito não deixou de acenar para profissionalização da prática do futebol, Revolucionou o que se tornaria esse esporte mais adiante(João Malaia, 2010).  Não obstante, essa profissionalização do futebol só se deu oficialmente a partir de 1933.

Alguns autores chamam de revolução vascaína, o triunfo da colônia portuguesa, com jogadores das camadas mais baixas, com negros e analfabetos. Também é uma etapa significativa para a profissionalização do futebol. Contudo, não fosse o desejo de alguns na época, mas esse processo cruz-maltino já apontava para um caminho sem volta na direção da profissionalização do futebol. 

Próximos capítulos

Há outros capítulos dessa história, após a conquista dos Camisas Negras em 1923. A criação de uma nova liga em 1924, Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA). A recusa do Vasco da Gama em fazer parte dessa nova liga por não querer “abrir mão” de alguns de seus jogadores que haviam conquistado esse título de 1923. A existência de dois campeões cariocas em 1924 e outros desdobramentos dessa história.

Nas palavras do cronista Mario Filho, defensor do profissionalismo no futebol, a conquista do Vasco em 1923, engrandecendo-se, engrandeceu o esporte brasileiro. A história do cruz-maltino foi um exemplo que serve para todos os clubes. Tanto aos grandes clubes, para que se tornassem maiores. Quanto para os pequenos, para que se tornassem grandes.

Referências Bibliográficas

ASSAF, Roberto & MARTINS, Clóvis. Campeonato Carioca: 96 anos de história (1902 1997). Rio de Janeiro, Irradiação Cultural, 1997.

DAMO, Arlei Sander. O espetáculo das identidades e alteridades – as lutas pelo reconhecimento no espectro do clubismo brasileiro. CAMPOS, Flavio de; ALFONSI, Daniela. Futebol objeto das Ciências Humanas. São Paulo: LEYA, 2014.

FRANCO JUNIOR, Hilário. A Dança dos Deuses: futebol, cultura, sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

SANTOS, João Manuel Casquinha Malaia. Revolução Vascaína: A profissionalização do futebol e a inserção sócio-econômica de negros e portugueses na cidade do Rio de Janeiro (1915-1934). 2010. 489 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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José Nilton Júnior

Bacharel em História - UFRJMestre em História Social - PPGHIS-UFRJDoutorando em História Política - PPGH -UERJProfessor de História, escritor e palestranteColaborador de projetos  Club de Regatas Vasco da GamaColaborador Observatório da Discriminação Racial no Futebol 

Como citar

SILVA JúNIOR, José Nilton da. Camisas Negras 1923, na direção da profissionalização do futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 175, n. 24, 2024.
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