103.16

A capivara do Robson

Leandro Marçal 16 de janeiro de 2018

Dei a partida no carro, um animal me encarava fixamente, feito estátua. Escolhi o álbum mais pesado do pen drive, engatei a primeira e acelerei ao som de guitarras. Olhei pelo retrovisor e a capivara me acompanhava com os olhos, talvez lamentando o destino do Robson da mesma forma que eu tentava esquecê-lo ao dar seta para trocar de faixa.

Fazia muito tempo que não nos víamos. Nos primeiros anos na escola, ele detalhava o sonho de se formar veterinário. Gatos, cachorros, passarinhos, que nada. Bom mesmo era cuidar da Têca, sua capivara. A casa pequena e com ares de interiorana às margens da estrada, esquecida no caminho entre a periferia e o centro, é o lar da sociável roedora há uns dez anos, o que me leva a crer que seus dias estão contados.

Só ela importa nesses tempos de desemprego. Mesmo que quisesse exercer a medicina veterinária, a falta de incentivo aos estudos lhe impediriam, pois sequer passou em frente a uma porta de faculdade ou fechou suas ruas numa sexta-feira de bar e cerveja.

Robson só sabia falar de bichos e bola naqueles tempos distantes. Era o craque do time. Foi o autor do gol de honra na derrota por 12 a 1 no interclasses da quinta série – fomos eliminados ali, mas diante da tragédia ele foi o único respeitado até o fim do ano letivo. Tempos depois, marcou na final e foi campeão, quando já não dividíamos cadeiras, cadernos e respostas – mudaram-no de turma para tentar convencê-lo que a quadra e as aulas de biologia não eram o suficiente para tirar notas boas em todas as matérias.

capivara
Impossível desviar do olhar e julgamento da capivara. Foto: Chantal Wagner Kornin.

Mas a vida ficou mais difícil depois de uns anos dividindo a cela cheia com gente mal encarada. Um punhado de substâncias no bolso, um processo e o suplício.

Agora, ele não sabe responder como faz para pagar as contas de luz e água. Se a Têca está sempre bem limpa e asseada, não é possível dizer o mesmo da ficha criminal a lhe barrar em tantos empregos. E ninguém quer saber de índole ou contexto. Importa é ver e acusar o molho de macarrão na camisa, a mancha na trajetória.

Ninguém o quis na gráfica, no mercado, tampouco na balada onde pretendia fazer a segurança aos fins de semana. Robson anda abatido, triste. Me comove por conhecer seu comportamento irreverente desde as apostas por refrigerante na antiga quadra do colégio.

– Se eu não fosse tão fissurado em bichos, poderia virar jogador, né? Ninguém ia olhar minha ficha, passado, só habilidades. Só o campo. Podia dar vexame, sonegar, atropelar e até matar. Ninguém ligaria. Fui burro demais.

Tentei consolar meu velho amigo e fiquei inconsolável por não poder ajudá-lo. A música não parava de tocar no carro. A poeira, amassada pelos pneus, subia pela velha estrada e deixava o clima mais quente.

Senti saudades de ver o Robson na quadra da escola e lamentei suas escolhas. Só esbocei um sorriso ao pensar na capivara de estimação. Ela é mansa, gosta que lhe passem a mão nos pelos. Me observa o tempo todo. E sabe das coisas.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. A capivara do Robson. Ludopédio, São Paulo, v. 103, n. 16, 2018.
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