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Reflexões sobre a atuação da segurança no Rio de Janeiro em eventos esportivos

Ao observar a atuação da segurança privada e do Batalhão Especializado de Policiamento em Estádios (BEPE), da Polícia Militar do Rio de Janeiro, e as consequências da explícita ação violenta, no jogo do dia 21 de novembro de 2023, entre Brasil e Argentina, no Maracanã, me questionei sobre a relevância empírica da pesquisa desenvolvida sobre a atuação institucional na segurança do ambiente esportivo. Escrevo quase em tom de desabafo, para além de todos os questionamentos e inquietações pessoais, esse é um tema que possui relevância social e, por isso, me dedico na produção desse texto.

Em pesquisa de campo, especificamente no BEPE, pude experienciar que o esquema de segurança de eventos internacionais ocorridos no Rio de Janeiro se dá de modo distinto dos eventos nacionais. Este foi o caso da Copa América de 2019, que pude acompanhar no período em que realizei a etnografia, com maior influência das instituições internacionais como a FIFA e CONMEBOL. No entanto, não invalida a autoridade local de se posicionar em relação à segurança dos torcedores, principalmente em um jogo com classificação de risco de “bandeira vermelha”. Quando me refiro sobre autoridade local incluo a CBF, que enquanto mandante possuía a responsabilidade pela segurança do evento (contratando a segurança privada e solicitando a atuação da Polícia Militar) e o BEPE, o batalhão de polícia que emprega seu efetivo e apoios para atuarem no evento, no perímetro interno e externo ao estádio.

Em nota, a Polícia Militar afirmou que a CBF inicialmente havia destinado o setor sul para a torcida visitante e que somente na reunião prévia, do dia 16 de novembro de 2023, teve conhecimento da ampliação da venda no setor para torcedores argentinos e brasileiros, não havendo setor exclusivo para visitantes[1]. Em contrapartida, a CBF informa em nota que na reunião mencionada contou com a presença de diversas instituições. Também afirma que no dia 20  foi apresentado o plano operacional da partida à Polícia Militar, à segurança privada e a outras instituições presentes que não apresentaram ressalvas[2]. Todavia, houve uma instituição que apontou a problemática da ausência de um setor específico para a torcida visitante, mas a instituição não foi ouvida pelas autoridades. A Associação Nacional de Torcidas Organizadas (ANATORG) alertou sobre a questão e organizou com representantes brasileiros e argentinos uma reunião, para estabelecer acordos de mediação e alinhamento para o jogo[3].

Retornando ao caso da CBF e da Polícia Militar, ambas as instituições se afastaram da responsabilidade em relação às cenas de agressão. A Polícia Militar afirmou em nota que o BEPE atuou “(…) dentro do protocolo operacional da Corporação, adotando a técnica de uso progressivo da força para evitar danos maiores, tendo como objetivo estabilizar o cenário e encaminhar os responsáveis para a Polícia Civil e órgãos competentes do Poder Judiciário.”. Apesar dessa fala e parte dos torcedores justificarem a agressões policiais por conta do racismo argentino[4], a polícia agiu de modo desproporcional com os torcedores e provocou uma tensão ainda maior. Inclusive, o desconforto entre os jogadores argentinos.

Sobre a justificativa da agressão policial por parte de alguns torcedores brasileiros é preciso destacar dois pontos: I) no ambiente esportivo há caso de racismo envolvendo alguns países sul-americanos e as punições devem ser individualizadas; II) a ação dos policiais não foi pautada no antirracismo, só para fins de exemplificação, o Rio de Janeiro é o terceiro estado com maior taxa de letalidade policial e 83,1% do total de mortes por letalidade policial no Brasil são de pessoas negras[5].

Tal ação reverberou algumas observações que apareceram anteriormente na trajetória de pesquisa. Irei enumerá-las para fins didáticos:

1- A primeira é sobre o emprego de forças públicas de segurança no interior de eventos privados. Por mais que haja a presença do Juizado Especial do Torcedor e dos Grandes Eventos (JETGE) em shows, por exemplo, não há atuação de um efetivo de mais de 500 policiais em um evento realizado em estádio com administração privada e com ingressos caros, que grande parte da população não possui condições de frequentar.

2- A segunda é sobre a importância da atenção ao uso do armamento de menor potencial ofensivo. O armamento não pode ser chamado de não letal, pois apesar de não ser arma de fogo, dependendo da maneira como é utilizada possui capacidade de matar (Musumeci, 2021). No Maracanã houve casos de utilização do cassetete para bater na cabeça de torcedores, contrariando todas as instruções apresentadas nos cursos, que inclusive pude acompanhar as instruções do Xº Curso de Policiamento em Praças Desportivas (CPPD). É necessário relembrar que em setembro deste ano, um torcedor do São Paulo foi morto a partir de um tiro de um equipamento de “menor potencial ofensivo”[6].

3- A terceira observação se dá na distribuição do policiamento no interior do estádio. Durante o período de trabalho de campo com o BEPE, os planos de ação não designavam policiais para os setores mais elitizados, como camarotes e Maracanã Mais[7].

4- A última reflexão e, não menos importante, é a desconsideração dos diferentes atores e organizações sociais que lutam pelos direitos dos torcedores. É necessário haver uma escuta atenta e uma constante colaboração dos representantes da sociedade civil, juntamente com as instituições promotoras dos eventos esportivos.

A partir do ocorrido no dia 21 de novembro de 2023, as reflexões acima despertam alguns questionamentos, tais como: É legítimo o emprego de tantos policiais em um evento privado? As forças policiais que atuam com multidões seguem as recomendações de utilização do armamento menos letal? A distribuição de policiais no interior do estádio é baseada no critério do número de torcedores por setor ou há filtros sociais na atuação? Os direitos dos torcedores vêm sendo respeitados e seus representantes estão sendo considerados? Ainda não tenho resposta para todas as reflexões, mas acredito que são importantes para pensarmos coletivamente em um ambiente mais seguro nos estádios brasileiros.

Esses questionamentos são referentes à atuação da segurança nos estádios em um evento internacional, considerando o contexto do Rio de Janeiro. Compreendo que algumas situações não refletem com exatidão o contexto de cada estado brasileiro, mas podem ser utilizadas para refletirmos sobre a relação entre violência e segurança nos estádios de todo o Brasil.

Referências bibliográficas

MUSUMECI, Leonarda. Armas menos letais, uso da força policial e militarização da segurança. 2021. 366 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.

PACHECO, Dennis; Marques, David. A heterogeneidade territorial da letalidade policial no Brasil. In: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, p. 62-67, 2023. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf>. Acesso em: 01 de dez. de 2023.

SOUSA, Raquel de O. Batalhão Especializado de Policiamento em Estádios: conhecendo melhor este núcleo especializado da Polícia Militar do Rio de Janeiro. 2021. 346 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.


[1] Nota disponível em: <https://sepm.rj.gov.br/2023/11/policia-militar-emite-nota-sobre-incidente-antes-do-jogo-brasil-x-argentina/>. Acesso em: 01 de dez. de 2023.

[2] Nota disponível em: <https://www.cbf.com.br/a-cbf/informes/index/nota-oficial-brasil-x-argentina>. Acesso em: 01 de dez. de 2023.

[3] Nota disponível em: <https://www.instagram.com/p/Cz5AmuwMsAu/?igshid=ODhhZWM5NmIwOQ==>. Acesso em: 01 de dez. de 2023.

[4] Sobre o debate acerca do racismo argentino e a xenofobia brasileira: <https://twitter.com/cabrera_niqo/status/1728062024213582190>. Acesso em: 01 de dez. de 2023.

[5] Referência sobre letalidade policial no Brasil: Pacheco; Marques, 2023.

[6] “Polícia Civil confirma que torcedor do São Paulo morreu após ser atingido por munição da PM”. Disponível em: <https://www.terra.com.br/esportes/futebol/policia-civil-confirma-que-torcedor-do-sao-paulo-morreu-apos-ser-atingido-por-municao-da-pm,6663d7abbe49c8dfb4c4bc98393a05d8dpq170nj.html>. Acesso em: 01 de dez. de 2023.

[7] Para saber mais sobre o assunto: Cap. 6 Mudanças e suas reações. Sousa, 2021.

 

Este texto foi originalmente publicado no Blog Comunicação, Esporte e Cultura.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Raquel Sousa

Pesquisadora do futebol carioca.

Como citar

SOUSA, Raquel. Reflexões sobre a atuação da segurança no Rio de Janeiro em eventos esportivos. Ludopédio, São Paulo, v. 175, n. 14, 2024.
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