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Carpegiani, o saci da gávea

Fabio Zoboli, Elder Silva Correia 28 de setembro de 2022

O Inter de Porto Alegre presenteou o futebol brasileiro e mundial com a gestação de inúmeros craques. Nesta crônica, daremos destaque a um deles: o lendário meia-armador Paulo César Carpegiani. Além de ter sido um dos maiores craques da história do futebol gaúcho, Carpegiani também figurou no Panteão da Gávea por ter sido um dos grandes ídolos do Flamengo. Para compor este escrito junto a ele, elegemos seu “conterrâneo” Saci Pererê, um personagem folclórico oriundo da mitologia ameríndia do sul do país. Aqui também vale a menção de que o Saci é a mascote[1] do time do Sport Club Internacional, que pariu Carpegiani.

Enquanto jogador, Carpegiani atuou em apenas dois clubes: no colorado gaúcho e no rubro negro carioca. Paulo César nasceu no ano de 1949, em Erechim (RS), e iniciou sua carreira futebolística no juvenil do Inter. Ali, enquanto profissional[2], se formou um dos mais belos meios-campos do futebol brasileiro, ao lado de Paulo Roberto Falcão e Caçapava. Em 1977, Carpegiani foi vendido ao Flamengo, onde outra vez compôs um mágico e lendário meio-campo com Zico e Andrade. 

Carpegiani Flamengo
Fonte: reprodução/Placar

Saci[3] Pererê tem em sua etimologia o termo pererek-a, do tupi guarani, que significa “ir aos saltos”. Saci é uma entidade da cosmologia guarani representada por um negro com duas pernas e poderes que prejudicam quem faz mal às plantas, afinal na cultura indígena ele é um protetor das matas. Porém, a caracterização de Saci se tornou miscigenada como a cultura brasileira. Desse modo, a partir da influência africana, Saci ganhou traços de Aroni (uma entidade iorubá), representada por um gnomo de uma perna só[4] que ensinava à orixá Oçanhim o poder das ervas medicinais – por isso, o uso do cachimbo. O gorro vermelho do Saci é oriundo da cultura portuguesa e era utilizado pelos lendários Trasgos[5], que possuíam poderes sobrenaturais. Também veio de lá, do outro lado do Atlântico, a ideia do mau agouro trazido pelos redemoinhos.

Paulo Cesar Carpegiani chegou ao Flamengo como um jogador experiente, contratado para comandar uma geração de jovens formada por Zico e companhia. Chegou do Inter com a fama de ser um meia cerebral e calculista. Em seu primeiro ano como jogador rubro negro, Carpegiani sofreu ao ficar de fora do jogo da final do carioca e viu o Fla perder o título estadual para o Vasco nas penalidades, após empatar em 0x0 no tempo regulamentar. O Flamengo foi derrotado na disputa de pênaltis para o rival por 4×5, após Tita desperdiçar seu tiro livre com a defesa do arqueiro cruzmaltino Mazarópi. Mas nos três cariocas seguintes só deu o Flamengo de Carpegiani (1978, 1979 e 1979 especial). Além disso, foi sob a batuta do capitão Carpegiani que o Flamengo levantou seu primeiro caneco de campeão brasileiro, em 1980.

Flamengo
Fonte: reprodução/Manchete Esportiva

Saci é conhecido por suas travessuras, adora fazer os objetos sumirem. De igual modo era Paulo César como segundo volante: o adversário vinha com a posse de bola e num estalar de dedos o travesso Carpegiani a tomava para si.  Saci também é astuto e conhecido por atrapalhar as cozinheiras, trocando recipientes de temperos, como sal por açúcar (e vice-versa) e fazendo-as queimar a comida. Quando um atacante se aproximava da “cozinha do Fla”, lá estava Carpegiani para tirar o “doce” dos seus pés, ligando contra-ataques que eram como “pimenta nos olhos da torcida adversária”.

O Saci adora incomodar os cavalos, fazendo tranças em suas crinas ou dando nós em seus rabos. Carpegiani também dava nó nos adversários com seus cortes curtos, fazia trança com a bola em seus passes longos e certeiros. Saci também gosta de atrapalhar os viajantes, desarmando os freios de suas carroças ou apagando suas lamparinas, tudo com a intenção de fazer com que se percam pelo caminho. Paulo César apagava o lampejo criativo dos adversários e os deixava perdidos quando iam a caminho da meta do Flamengo. Com Zico jogando ao seu lado, os dois desciam sem freio para cima dos adversários, ligando a bola da defesa ao ataque.

Em 1981, após outra lesão grave no mesmo joelho, que já tinha sido operado em 1975, Carpegiani literalmente virou um “Saci” para o campo de jogo. Seu problema no menisco o obrigou a aposentar-se com apenas 31 anos de idade. Nesse momento, ele passou a integrar a comissão técnica com o então técnico Dino Sani, que meses depois foi demitido, o que fez de Carpegiani treinador interino, sendo oficializado posteriormente pela presidência do clube. Tudo isso aconteceu em julho de 1981[6], e daí por diante o torcedor rubro negro já sabe de todo o enredo: campeão da libertadores, em novembro, campeão carioca e mundial, em dezembro.  Em 1982, ainda sob o comando de Paulo Cesar Carpegiani, o Flamengo venceu o campeonato brasileiro em cima de seu antigo freguês de Porto Alegre, o Grêmio.

Como treinador, Carpegiani herdou duas outras habilidades de Saci: o poder de mover o vento e a farmacopeia. Reza a lenda que Saci move o vento para seguir com ele dentro de seus moinhos, assim como também possui habilidade e técnica do manuseio e do preparo das plantas para delas usar seus poderes – seja para o bem ou para o mal. Nas mãos do técnico Carpegiani, o Flamengo era uma espécie de ciclone e, em 1981, derrubou todos os adversários que passaram em sua frente. Carpegiani era um técnico estudioso, um “fitoterápico” que sabia armar seu time para defender o Flamengo dos ataques dos adversários, com antídotos letais para abater seus oponentes.

Carpegiani
Fonte: reprodução

Segundo o enredo mítico, para capturar o Saci-Pererê deve-se lançar uma peneira dentro do redemoinho de vento. Em seguida, a recomendação é lhe tirar o gorro para que perca seus poderes mágicos e seja colocado dentro de uma garrafa com tampa. Saci foi gestado dentro de um bambu por 7 anos e viveu 77 anos de travessuras. Após sua morte, se transformou em um cogumelo venenoso e em uma lenda viva do folclore brasileiro. 

No Rio Grande do Sul, uma parte da torcida colorada é contra o uso do Saci como símbolo do Inter, pois acham imoral apresentar a uma criança torcedora uma mascote que fuma cachimbo – pensam até em substituir o pito por uma cuia de chimarrão. Aos moralistas, desejamos que nunca consigam capturar a magia de Saci. Que ele entre dentro de suas garrafas térmicas e ao ser derramado em forma de água, na cuia de seu mate, passe ileso pela peneira de sua bomba e que vocês o bebam todo. E ao bebê-lo sejam enfeitiçados pelos sortilégios de uma lenda. Que o Saci possa continuar a pitar seu airoso cachimbo.

Ao místico e folclórico Carpegiani desejamos muito mais que 77 anos de vida. Ademais, nossa gratidão pelas vezes que você fez nossa torcida “sair aos pulos”, felizes com a conquista de títulos. Enquanto vivo, você é cogumelo alucinógeno da nação.

Carpegiani em 2018
Carpegiani como treinador do Flamengo em 2018. Fonte: Wikipédia

Notas

[1] O Saci foi escolhido para ser a mascote do Inter, em 1950, por retratar um menino alegre que burlava seus adversários com travessuras.

[2] Pelo Internacional, Paulo César Carpegiani foi hexacampeão gaúcho (1970, 1971, 1972, 1973, 1974, 1975 e 1976) e bicampeão brasileiro (1975 e 1976).

[3] A lenda do Saci era oral até 1917, quando o escritor brasileiro Monteiro Lobato, via jornal “O Estado de São Paulo”, realizou um inquérito popular que incentivava os leitores a enviarem suas versões do mito de Saci. Pautado nas respostas, lançou o livro “Sacy-pererê: resultado de um inquérito”, em 1918. Em 1921, o escritor lançou o Saci como um dos personagens do “Sítio do pica-pau-amarelo”.

[4] Outra versão da lenda diz que Saci perdeu uma das pernas jogando capoeira na África.

[5] O termo Trasgo vem do latim transgredī, que significa “aquele que transgride, que burla com a lei”. Os Trasgos são personagens encantados do folclore português, de baixa estatura e pele negra que se vestem com blusa e gorro vermelho pontudo. Os trasgos normalmente são mancos de uma perna e têm um buraco na mão esquerda (mão furada). De personalidade travessa, se apresentam sempre inquietos e brincalhões.

[6] Em setembro de 1981, Carpegiani voltou a atuar como jogador com a camisa do Flamengo, em partida alusiva à sua despedida. O adeus do jogador aos gramados foi celebrado em uma partida contra o Boca Juniors da Argentina. Com a 10 do Boca nessa noite figurou Diego Armando Maradona, que 5 anos depois se tornaria Deus. Nessa noite, com 2 de Zico, o Flamengo venceu o Boca e se despediu de Carpegiani jogador.

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Fabio Zoboli

Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe - UFS. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e política".

Elder Silva Correia

Mestre em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e Política" da Universidade Federal de Sergipe - UFS.

Como citar

ZOBOLI, Fabio; CORREIA, Elder Silva. Carpegiani, o saci da gávea. Ludopédio, São Paulo, v. 159, n. 30, 2022.
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