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“Cenas lamentáveis” e outras bobagens: como discurso jornalístico ajuda a perpetuar violência no futebol

Larissa Bezerra 17 de fevereiro de 2024

A expressão “cenas lamentáveis” já virou até meme. Mesmo assim, jornalistas continuam a repeti-la exaustivamente ao falar de violência no futebol. Não bastasse a pobreza de vocabulário para tratar de um assunto tão sério, o debate nunca evolui, quase nunca vai além de dizer que é algo lamentável.

Em 2023, houve casos de violência no futebol em diversos estados do país. Apenas até julho, 8 mortes foram registradas (ALVES, 2023). Nas últimas três décadas, quase 400 pessoas morreram. Algumas, inclusive, dentro dos próprios estádios (BAND, 2023). Será que isso não é grave o suficiente para merecer um debate mais significativo?

Quando há algum tipo de debate, vai somente por uma linha: a necessidade de aumentar a repressão. Ora, há décadas é essa a “solução” encontrada pelas autoridades responsáveis para conter a violência no futebol. Quando irão questionar por que isso não tem funcionado?

Mas, embora o assunto não esteja na lista de prioridades dos jornalistas esportivos, há outro local em que a temática é muito discutida: a academia. Mas onde estão os pesquisadores nas reportagens sobre violência no futebol? Para falar de economia, economistas são chamados, para falar de saúde, médicos são chamados, mas para falar sobre esse contexto esportivo, no máximo, autoridades policiais falando sobre reprimir e jornalistas confiando na própria experiência, tratando como um assunto muito simples. 

Mas por que discutiriam isso no contexto esportivo se “isso não faz parte do futebol”, não é? Esse é um outro recurso utilizado na linguagem da cobertura esportiva. Talvez para jogar para a editoria de polícia e se livrar do debate? Não sei. Mas dizer que não faz parte do esporte, simplesmente retira toda a responsabilidade dos agentes esportivos. Quer dizer, então, que os clubes não precisam fazer parte da solução? Que a confederação e as federações não precisam pensar sobre violência? Que os jogadores podem fingir que isso não existe? Que as torcidas não devem ser incluídas no debate? E mais: que a mídia esportiva pode, simplesmente, ignorar?

Sim, o jornalismo esportivo é um ator importante nesse contexto. Ou deveria ser, pelo menos, parando de noticiar de maneira rasa e equivocada, e sabendo responsabilizar as forças de segurança que, muitas vezes, também contribuem para que os problemas aconteçam. 

O mais simples é jogar a culpa nas torcidas organizadas por todos os problemas existentes e esquecer, como aponta Gomes (2020), que essa é uma interpretação superficial. Sem contar que violência no futebol não é só confronto físico entre torcedores. Racismo, homofobia, machismo, violência policial, tratamento dado ao torcedor, horários inadequados das partidas, corrupção e exclusão social também são formas de violência manifestadas no futebol (PALHARES E SWCHARTZ, 2015). Quando isso tudo é discutido? 

Violência no futebol
Violência no futebol. Foto: terovesalainen/Depositphoto.

Além disso, como defende Numerato (2018), a violência de torcedores é um pretexto para que se use ferramentas de controle e repressão. Nesse novo modelo de gentrificação dos estádios, de profunda mercantilização do torcer, a disciplinarização e consumo passivo do futebol é que são incentivados (LOPES; CORDEIRO, 2016).

Na esteira dessas discussões, não se deve falar em violência no futebol com explicações simplistas. Gallegos (2017) defende que é necessário evitar leituras reducionistas ou denúncias apocalípticas, e abordar o problema com postura crítica, indo além do nível empírico-descritivo dos fatos. Porém, a realidade é justamente ao contrário: a temática tem sido posta em discursos jornalísticos e políticos com interpretações de tom estigmatizador, dizendo ser necessária a exclusão de certos indivíduos dos estádios e da sociedade (ALABARCES, 1998).

Assim como todos os outros problemas do futebol, a violência não pode deixar de ser examinada junto ao contexto social. Afinal, como escreveu Roberto DaMatta (1986), o esporte faz parte da sociedade e é impossível compreender uma atividade sem a totalidade na qual está inserida. E para Alabarces (1998), o problema remete à persistência de uma prática de formas mais complexas e menos reconhecíveis da política repressiva de ditaduras, que mostra o agravamento de uma forma máxima de violência social que é a exclusão, a expulsão do mercado de trabalho, a privação de saúde e de educação. Portanto, simplificar a solução com a opressão indica “o racismo e a discriminação de um discurso jornalístico que esconde a falta de respostas no lugar comum” (ALABARCES, 1998, p. 10). Visão compartilhada também por Pinheiro (2020), para quem deve ser levada em consideração a complexidade desses agrupamentos, de cultura juvenil e sociabilidades construídas no espaço urbano.

Contudo, em um contexto em que jornalismo esportivo caminha para ser “engraçadinho”, ser tratado apenas como entretenimento e buscar cliques com fofocas e manchetes mal construídas, não sei se há esperança de que esse discurso seja, de fato, revisto. Mas enquanto não for, os jornalistas estão contribuindo para que o problema permaneça. Espera-se que a cobertura tenha menos expressões como “cenas lamentáveis” e mais debates capazes de construir novas realidades.


Referências Bibliográficas

ALABARCES, Pablo. ¿De qué hablamos cuando hablamos de deporte? Nueva Sociedad, Buenos Aires, n. 154, p. 74-86, 1998.

ALVES, Murilo César. Futebol brasileiro chega à oitava morte em conflitos entre torcedores em 2023. Terra, 10 de julho de 2023. Disponível em: https://www.terra.com.br/esportes/futebol/futebol-brasileiro-chega-a-oitava-morte-em-conflitos-entre-torcedores-em-2023,9d85bf9dfb3ef18654d48189b4748097cevdrs7e.html. Acesso em: 14 dez. 2023.

DAMATTA, Roberto et al. Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982.

GOMES, Vitor. A militância político-torcedora no campo futebolístico brasileiro. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Ciências Sociais, Goiânia, 2020.

LOPES, Felipe Tavares Paes; CORDEIRO, Mariana Prioli. Futebol, massa e poder: reflexões sobre a ‘teoria do contágio’. Revista Psicologia Política, São Paulo, v. 15, p. 479-495, 2015.

NUMERATO, Dino. Football fans, activism and social change. Londres: Routledge, 2018.

PALHARES, Marcelo Fadori Soares; SCHWARTZ, Gisele Maria. Não é só a torcida organizada: o que os torcedores organizados têm a dizer sobre a violência no futebol? São Paulo: Editora UNESP, 2015.

PINHEIRO, Caio Lucas Morais. As ondas que (se) movem (n)o mar das torcidas: das charangas à guinada antifascista na Ultras resistência Coral (1950-2020). Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil, 2020.

VIOLÊNCIA no futebol: levantamento revela 384 mortes nas últimas 3 décadas. BAND, 24 de julho de 2023. Disponível em: https://www.band.uol.com.br/radio-bandeirantes/noticias/violencia-no-futebol-levantamento-revela-384-mortes-nas-ultimas-3-decadas-16618961. Acesso em: 14 dez. 2023.

 

Este texto foi originalmente publicado no Blog Comunicação, Esporte e Cultura.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Larissa Bezerra

Jornalista, professora, especialista em Jornalismo Esportivo e mestre em Sociedade e Desenvolvimento, pesquisando torcidas de futebol no Brasil.

Como citar

BEZERRA, Larissa. “Cenas lamentáveis” e outras bobagens: como discurso jornalístico ajuda a perpetuar violência no futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 176, n. 17, 2024.
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