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“Chega de mulher!”

José Paulo Florenzano 22 de novembro de 2023

Os anos oitenta foram marcados, no Brasil, por uma profunda crise econômica, social e política. Em ao menos duas ocasiões, 1983 e 1987, registraram-se ondas de saques de depredações a supermercados e mercearias na periferia de São Paulo. A fome atingia duramente os grupos mais vulneráveis, no momento em que a sociedade brasileira encontrava-se às voltas com a combinação socialmente explosiva de desemprego e hiperinflação. A tensão pairava no ar. Uma simples discussão sobre o troco, dentro de um ônibus, era mais do que suficiente para desencadear a revolta e deixar um rastro de destruição no sistema de transporte no centro do Rio de Janeiro, como, por exemplo,  no cento do Rio de Janeiro.[1]

No plano político, enquanto os movimentos de esquerda, liderados à época pelo Partido dos Trabalhadores, ocupavam a praça da Sé, reivindicando eleições antecipadas para a presidência da República, as forças da ordem, arregimentadas pela União Democrática Ruralista, convergiam para a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, exigindo dos congressistas a defesa intransigente da propriedade privada.  A Seleção Brasileira, por sua vez, procurava cumprir o que muitos acreditavam ser a sua missão histórica. Em meio à disputa da Copa América, o técnico Carlos Alberto Silva prometia “fazer de tudo para vencer o Chile e amenizar a tensão social” que ameaçava convulsionar o país. Na véspera do jogo, em Córdoba, ele expressava o ponto de vista do futebol como ópio do poder:

Continuo achando que o futebol é fundamental para servir de paliativo ao sofrimento do povo brasileiro.[2]

Mas em vez de fornecer um lenitivo para o povo brasileiro, o jovem treinador contribuiria para derrubar ainda mais a cotação da verde e amarela com a humilhante derrota de 4 a 0 para o Chile. O futebol, como tudo o mais no país, também se achava mergulhado em uma profunda crise. De fato, não bastasse a recessão econômica e o desemprego em massa, os saques e quebra-quebras, ou, ainda, a polarização político-ideológica -, a classe dirigente  enfrentava também o desprestígio que atingia o selecionado nacional, contribuindo para esvaziar ainda mais os estádios de futebol.

Foi nesse contexto histórico que os dirigentes dos assim chamados grandes clubes se reuniram para criar o Clube dos 13, restando aos times excluídos se organizarem na Associação Brasileiro dos Clubes de Futebol. Ao mesmo tempo, porém, em que procuravam se articular para uma atuação conjunta no enfrentamento da crise, as agremiações, “grandes” e “pequenas”, lançavam mão dos mais diversos estratagemas para reduzir os prejuízos provocados pelas competições deficitárias em se se achavam inseridas. Na busca desesperada por receitas, os dirigentes, de um modo geral, se apequenavam, recorrendo à exibição apelativa dos corpos femininos para despertar no público masculino o interesse que o jogo já não era mais capaz de proporcionar.

Assim, por exemplo, no dia 9 de julho de 1987, os cerca de cinco mil torcedores do Fortaleza que, em uma quinta-feira à noite, compareceram ao jogo contra o Quixadá, foram premiados com uma “grande atração” promovida pela direção da Fiel Tricolor, a torcida organizada do clube. Naquela partida válida pelo Campeonato Cearense, os poucos torcedores presentes ao estádio Presidente Vargas vibraram quando “quatro garotas apareceram e começaram a tirar a blusa e os calções, ficando apenas de calcinha e sutiã”.[3] A certa altura do show, uma das “garotas” fez um “strip tease” que, segundo o correspondente da Folha de S. Paulo, “não estava programado”. Enquanto os espectadores iam “à loucura” com o desnudamento da “Eva Tricolor”, fotógrafos e repórteres se atropelavam para registrar lhe a performance. Satisfeitos com o “sucesso” da iniciativa, os idealizadores prometiam levá-la adiante.    

Chama atenção, analisando em retrospecto o “strip tease” no Presidente Vargas, a naturalidade com a qual a reportagem da Folha de S. Paulo retratava o episódio sexista, isto é, como uma simples “atração” exótica, ocorrida em um cenário distante dos centros esportivos mais desenvolvidos do país. Em síntese, uma simples nota de curiosidade para entreter o eventual leitor da seção de esportes. Algo, poder-se-ia supor, completamente fora das cogitações dos assim chamados grandes clubes, os quais buscavam enfrentar a queda de público  nos estádios ou a perda de audiência na televisão com ações modernizadoras, adotadas por uma nova classe dirigente que ansiava tomar o poder na CBF.

Clube dos 13
Fonte: reprodução

A criação do Clube dos 13, como se sabe, teve como elemento deflagrador o anúncio do presidente da CBF, Octávio Pinto Guimarães, de que a entidade estava “quebrada”, isto é, sem recursos para organizador a edição de 1987 do Campeonato Brasileiro.[4] De acordo com Márcio Braga, presidente do Flamengo, o  Clube dos 13 chegava para desencadear um “processo revolucionário” no futebol brasileiro, de modo a romper com as velhas práticas clientelísticas – vigentes no período da ditadura militar -, e reorganizar em bases racionais e meritocráticas a competição nacional,  reduzindo o número de participantes, elevando o nível dos espetáculos, aplicando o mecanismo do ascenso e descenso.[5]

O presidente do Clube dos 13, e também presidente do São Paulo, Carlos Miguel Aidar, ao mesmo tempo em que liderava o “processo revolucionário” da nova associação, medindo forças com a CBF, cuidava de elevar as receitas da agremiação que ele dirigia, colocando em prática estratégias de marketing para atrair mais torcedores ao Morumbi. Desse modo, no clássico contra o Palmeiras pelo Campeonato Paulista, no domingo, 19 de julho de 1987, foram programados três atrações especiais, a saber: uma fanfarra escolar para executar a nona sinfonia de Beethoven; uma competição de atletismo disputada por atletas ligados em boa parte ao quadro esportivo do próprio clube; e a exibição de quinze finalistas de um concurso de beleza, “promovido por uma boate”, que “deveriam se apresentar no gramado de biquini”. [6]     

A execução da nona sinfonia de Beethoven representava um imenso desafio para a banda escolar. Não admira que, de acordo com a reportagem, ela tenha sido executada “sem sucesso”. Já no que diz respeito às finalistas do concurso de Miss Zona Sul, devido ao frio que atingia a cidade de São Paulo, “apareceram” somente seis concorrentes ao Morumbi.[7] Quanto aos atletas que disputaram a corrida de 1 km, não consta que tenham despertado a atenção do púbico de cerca de trinta mil espectadores, de resto, muito irritado com a baixa qualidade do espetáculo futebolístico, a ponto de as duas torcidas rivais se juntaram em uma vaia conjunta de oito minutos direcionadas aos dois times em campo na etapa final de um clássico de zero a zero reduzido à condição de uma “pelada”.

Ao que tudo indica, as mulheres não estavam contempladas no “processo revolucionário” liderado pelo Clube dos 13. A adoção de novas práticas políticas na organização e gestão do espetáculo profissional não excluía a permanência das velhas práticas sexistas que pretendiam fixar a mulher como mero objeto erótico, a ser exibido no campo de futebol para atrair e entreter o público masculino.

De fato, não é preciso muito esforço para localizar exemplos da objetificação do corpo feminino nos espetáculos futebolísticos. A decisão do Campeonato Carioca de 1971, por exemplo, disputado entre Botafogo e Fluminense, foi precedida pelo desfile no gramado das candidatas a Miss Brasil. Armando Nogueira, cronista que à época assinava uma prestigiada coluna esportiva no Jornal do Brasil, registrava a reação do setor mais popular do Maracanã à inciativa promocional do jogo. “Mas, as moças demoravam demais no campo – e nada de começar a partida. Na geral, um crioulo [sic], já cheio com o desfile interminável, gritou, irritado”:

Chega de mulher! Eu vim aqui foi prá ver perna de homem![8]  

Compreenda-se: o que incomodava o cronista não era a objetificação do corpo feminino no universo do futebol, mas, sim, o atraso que a exibição das candidatas ao cobiçado título de Miss Brasil provocava no cronograma da decisão do Campeonato Carioca. O relato anedótico de Armando Nogueira, formulado em uma linguagem sexista, não desprovida de conotações raciais, permite-nos, no entanto, tecer uma breve reflexão a respeito do lugar, do valor e do significado da nudez feminina no universo do futebol. Senão, vejamos.

No período da proibição do futebol das mulheres, 1941-1979, a “nudez” se revelava nos “trajes sumários” utilizados pela atleta, cuja presença no gramado de jogo, segundo os dirigentes do Conselho Nacional de Desportos, constituía-se em um atentado aos bons costumes, algo que colocava em risco o caráter educativo do esporte.[9] Razões de ordem moral, portanto, eram invocadas à época para justificar a proibição que, como se sabe, também se apoiava em enunciados (pseudo)científicos.

Uma vez, porém, eliminada a interdição, o desnudamento da mulher no decorrer da década de oitante emergia na visão da classe dirigente – tanto da velha quanto da nova – como um recurso legítimo de marketing esportivo, adotado com o propósito de elevar a presença de público  nos estádios e, consequentemente, aumentar a receita dos clubes. Razões de ordem comercial, portanto, justificavam agora a “nudez” da mulher, exibida em campo na condição de modelo, atriz ou atleta.  

A crônica de Armando Nogueira inscrevia e julgava a nudez feminina em uma outra ordem de ideias, distinta dos casos anteriormente retratados de moralidade pública e  de interesses comerciais. Para os torcedores genuínos – representados no caso em questão pelos torcedores anônimos da geral do Maracanã – as mulheres não passavam de um estorvo ao espetáculo que iria se desenrolar dentro das quatro linhas. Sob esse prisma – o das razões de ordem futebolística -, pouco importava se elas se encontravam vestidas de calção e chuteira ou desnudas de calcinha e sutiã. O verdadeiro, autêntico e desejado espetáculo comportava somente “perna de homem”.    

Em suma, considerada da perspectiva da dominação masculina, a “nudez” do corpo feminino já foi denunciada como escândalo moral; explorada como recurso econômico; criticada como estorvo esportivo. Por razões diversas, e por meio de inúmeras contradições, talvez ela nunca tenha deixado de assombrar uma ordem simbólica estruturada com base e em torno do enunciado de que “futebol foi, é e sempre será para homem”.  


Notas

[1] Cf. “Alta na tarifa convulsiona o Rio”, Folha de S. Paulo, 1 de julho de 1987.

[2] Cf. “Silva pretende salvar a ´Pátria’ contra o Chile”, Luciano Borges, Folha de S. Paulo, 2 de julho de 1987. 

[3] Cf. “Torcida do Fortaleza delira com ‘strip tease’ no Estádio”, do correspondente em Fortaleza, Folha de S. Paulo, 11 de julho de 1987.

[4] “Octávio diz que CBF está ‘quebrada’; Brasileiro 87 pode ser regionalizado”. Folha de S. Paulo, 8 de julho de 1987.

[5] Cf. “CBF articula Campeonato Nacional com treze clubes”, Folha de S. Paulo, 14 de julho de 1987. Ver também sobre o tema: Silva, Breno Carlos da. “O pior cego é aquele que só vê a bola: os cartolas da CBF e a confusão público-privado no Brasil”. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. UNESP-Araraquara, 2023.

[6] Cf. “São Paulo e Palmeiras levam vaia de 8 minutos”, Folha de S. Paulo, 20 de julho de 1987.

[7] A edição de O Estado de S. Paulo, de 21 de julho de 1987, traz o registro fotográfico do evento, acompanhado da seguinte legenda: “Muller e as candidatas a Miss Zona Sul, antes de um jogo fraco e sem gols.”

[8] Armando Nogueira, Coluna: “Na Grande Área”, Jornal do Brasil, 3 de julho de 1971.

[9] Silva, Giovana Capucim e. “Mulheres impedidas: a proibição do futebol feminino na imprensa de São Paulo”, Rio de Janeiro, Editora Multifoco, 2017.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. “Chega de mulher!”. Ludopédio, São Paulo, v. 173, n. 22, 2023.
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