98.15

A comédia dos pênaltis

Leandro Marçal 14 de agosto de 2017

– Corre e liga a TV: vai começar a disputa de pênaltis entre San Lorenzo e Emelec!

Precisava urgentemente interromper todo aquele trabalho atrasado, a leitura para a próxima aula e ligar no canal esportivo. Briguei com o controle remoto e dei dois tapas em suas costas, na crença ilusória de que as pilhas dormem e preciso acordá-las quando os botões pedem para mudar de canal e não são prontamente atendidos.

Não havia nervosismo ou angústia, eu não tinha nada a ver com aquilo. O aviso por mensagem era daqueles para agradecer uma vida inteira.

Ver cobranças de pênaltis entre times com os quais não temos relação alguma é maravilhoso. É olhar pelo buraco da fechadura futebolística. Não há expectativa, ansiedade, angústia, torcida. Eu mal sabia os resultados da partida no tempo normal, mas tudo é zerado na sequência de penalidades máximas.

Tive medo que a buzina tocando na porta de casa fosse o transporte sem escalas rumo ao inferno com o próprio demo de piloto. Não aguentei de satisfação ao ver um garotinho chorando nas arquibancadas quando alguém de seu time errou.

– Rapaz, isso é o esporte: ganhar e perder, perder e ganhar – dizia aos risos, pois sou daquele tipo estranho de pessoas que falam com a televisão em voz alta e responde aos “boa noite” ao fim de telejornais.

A crueldade humana escondida no porão da alma vem à tona nesses momentos. Dois galos na rinha, um rato correndo sem sair do lugar numa roda gigante (para ele) e minha observação atenta e dissimulada. A mesma observação para dois times sei lá de onde colocando a sobrevivência em jogo ao ajeitar a bola a 11 metros do gol. Devo ser cruel demais.

O riso é solto e válido, pois acompanhar os pênaltis de times sem relação comigo é como assistir a um filme de comédia, em que até a morte é motivo de chacota e piada.

Porque os pênaltis são assim: feitos para errar. Alguém vai errar, precisa errar para apagar as luzes do estádio e ir embora, pois no outro dia todo mundo acorda cedo para ir ao trabalho. E vai haver humor naquilo tudo – para quem está do lado de fora, é claro.

A pressão de todo mundo olhando para o batedor e sua responsabilidade de “é só acertar aquele gol gigantesco”, enquanto há quem roa unhas enlouquecidamente. E eu aqui, no meu canto, só curtindo o sofrimento alheio.

Não sei se é loteria, nervosismo, injustiça ou tudo isso junto. Mas ver o medo nos olhos de quem carrega o peso do mundo entre o meio de campo e a marca da cal é um lazer. Tento ser tão humano que acabo ficando mais ainda ao me deliciar com o sofrimento nesse momento tão importante e sem chances de ser adiado.

Disputa de pênaltis entre San Lorenzo e Emelec. Foto: San Lorenzo.
Disputa de pênaltis entre San Lorenzo e Emelec. Foto: San Lorenzo.

Deviam ser assim as grandes decisões do mundo: nada de segundo turno, coxinhas e mortadelas decidirão o futuro do país com engravatados batendo pênaltis enquanto o quarto árbitro segura suas malas recheadas de dólares. Talvez fosse difícil encontrar um juiz neutro e haveria empresários batendo os penais em todos os times, mas tudo bem. Não é melhor do que a democracia, mas esta já bate na trave há algum tempo.

O casal não sabe se fica na Netflix ou vai ao barzinho com os amigos? Que resolvam nos pênaltis! As luvas de goleiro seriam itens obrigatórios no criado-mudo e os quintais não se resumiriam a guardar carros ou ser banheiro de cachorros.

Se é verdade que a gente se diverte com a desgraça alheia, os pênaltis são a melhor representação da alma fofoqueira. Ninguém pode ser melhor do que eu. Pois mesmo que meu time folgue forçadamente nessa noite de meio de semana, minha alegria se dá quando a bola vai lá no alto, para fora do estádio. Só de olhar na cara de nervoso do batedor, os palpites de mim contra eu mesmo se ele vai errar ou não viram uma constante.

Fácil falar quando não é seu time jogando a vida. Fossem os representantes de minhas cores lá, rezaria para todos os santos de todas as religiões, mudaria de canal para aquele que dá sorte, trocaria de lugar no sofá e não admitiria nenhum latido dos cachorros ou atitude diferente do meu ritual de sempre. Também gritaria para o goleiro na vã esperança de que uma telepatia lhe desse uma dica. Seriam minutos de uma fé ilusória.

O menino argentino parou de chorar na arquibancada quando seu time avançou à próxima fase. Precisava voltar aos trabalhos e estudos com o computador já aberto outra vez. Minhas contas no fim do mês não me permitem chutá-las para fora, mesmo que eu não acerte sempre.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. A comédia dos pênaltis. Ludopédio, São Paulo, v. 98, n. 15, 2017.
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