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Como traduzir em palavras uma Patada Atômica?

Max Filipe Nigro Rocha 21 de maio de 2018

Resenha do livro “Rivellino”[1], de Maurício Noriega, Editora Contexto, São Paulo, SP, 2015.

Roberto Rivellino (3)
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O competente jornalista esportivo Maurício Noriega – já entrevistado pelo Ludopédio – publicou em 2015 pela Editora Contexto[2] a biografia de nada mais, nada menos, Roberto Rivellino.

Noriega opta por fazer um percurso cronológico tradicional que parte da infância até o estágio atual da vida do craque. O início da narrativa tem como pano de fundo uma São Paulo bucólica nos anos 1940, mais especificamente na região entre o Brooklin e Santo Amaro, zona sul da capital paulista.

A construção do cenário em que surgirá o grande jogador se assemelha às estruturas narrativas já consolidadas a respeito das origens dos grandes jogadores do futebol brasileiro. A liberdade, o improviso e o descompromisso de jogar bola na infância, aliados ao papel da rua e dos campos de várzea são apresentados como responsáveis pelo refinamento das habilidades do jogador

No entanto, não bastam! Para ser craque segundo essa linha de pensamento é necessário o dom natural – manifestado desde a mais tenra infância e reconhecido por aqueles que o cercam. O depoimento de Abílio Rivellino vai em direção a essa perspectiva ao alegar que desde pequeno o irmão famoso apresentava características que seriam um presente divino e desde então permaneceram inalteradas.

Parece que Deus olhou para Roberto e falou: ‘Você vai ser craque de bola’. […] Temos foto dele com 3, 4 anos chutando a bola. O jeito de bater na bola é igual ao de quando tinha 25 anos. Basta pegar as fotos e conferir. (NORIEGA, Maurício. Rivellino, Editora Contexto, São Paulo, SP, 2015, p. 28/9.)

De uma forma geral, o desenvolvimento da obra assume ares de revelação desse talento divino diante dos percalços da vida humana. A entrada de Rivelino no Corinthians apelidado de “Faz-me rir” devido ao longo jejum de títulos não impede seu destaque no time de aspirantes e até mesmo o aprendizado e aprimoramento de seu famoso drible, o elástico, por influência de Sérgio Echigo[3].

Assim, sua carreira é descrita como uma constante ascendente rumo ao estrelato. Ponto máximo atingido na Copa de 1970, na qual recebe o seu famoso apelido de Patada Atômica e é apresentado ao mundo do futebol.

No entanto, a consagração do tricampeonato parece não restringir a manifestação da essência do futebol brasileiro. Ao usar os padrões de espetacularização do futebol no século XXI, a memória produzida sobre a conquista de 1970 a partir da história de Rivellino sugere uma autenticidade brasileira nos gramados que acabou se esvaindo com o tempo – o ápice de uma identidade coletiva que, por inúmeros fatores, se encontra esgarçada atualmente.

Sem cobertura extensiva da imprensa, com direito à catarse coletiva da equipe e desmaio de Rivellino ao final da partida contra a Itália, a conquista de 1970 como a congregação máxima entre as categorias de futebol-arte e futebol-força. Segundo o autor, devidamente amparado pelos depoimentos de personalidades futebolísticas incontestáveis como Tostão e Pelé, Rivellino unia a fantasia e a eficiência, a técnica e a tática, se transformando assim em um jogador responsável por unir a tradição futebolística brasileira com a modernidade que começava a se espraiar pelos gramados.

No entanto, craques não ganham campeonatos sozinhos. Daí a dura trajetória de Riva no Corinthians, uma vez que as sucessivas derrotas causariam uma pressão sobre o jogador que acabou gerando sua saída para o Fluminense carioca. O maior jogador do alvinegro paulista de todos os tempos deixava o clube sem nenhum título. Magoado, essa questão parece ter sido resolvida apenas em 2014, quando seu busto é inaugurado no Parque São Jorge. Mas a ingratidão da torcida na década de 1970 não afetou a sua condição de mais um louco para o bando, segundo o jogador.

Já os ares cariocas fizeram bem ao então melhor jogador do país – Pelé já havia se aposentado – e a Máquina Tricolor, apelido do Fluminense à época, começava a deslanchar. Não sem percalços é verdade, mas seria a primeira vez que Riva ergueria a taça por um clube, o Campeonato Carioca de 1975.

Rivellino ainda teria uma breve passagem pelo futebol das Arábias e disputaria a Copa de 1978, mas já se iniciava uma nova carreira para o jogador, a de comentarista esportivo. Embora a narrativa de Noriega não separe os relatos e interpretações do craque e a sua própria análise, apresenta o importante processo de construção da Bandeirantes como um canal televisivo dedicado aos esportes, aspecto da história do futebol brasileiro que ainda precisa ser melhor estudado.

Ao lado de Luciano do Valle, Rivellino participa tanto do Show do Esporte, do Apito Final e das partidas da Seleção de Masters, na qual pode matar as saudades de seu tempo de jogador.

Repleto de depoimentos por todo o livro, com personalidades como Maradona, Beckenbauer, Zidane e Platini, o futebol moderno parece se curvar diante de Rivellino, imagem que é construída à semelhança do Rei Pelé. Se Pelé, de acordo com os depoimentos apresentados, está acima de toda e qualquer condição humana, Rivellino seria a expressão humana, terrena e possível da genialidade manifestada nos gramados.

Embora não se constitua em um gênero literário específico, é importante ressaltar que as biografias de jogadores de futebol tendem a construir uma imagem apologética de seus biografados. A narrativa parece apenas revelar a expressão de um dom já possuído pelos craques desde o nascimento, que passa pelo reconhecimento de um talento prematuro, por alguns percalços que permitem construir a perspectiva da superação, pela consagração do jogador em questão e, ao final, o reconhecimento de seus pares e da sociedade como um todo, momento no qual passa a compor o Panteão dos Deuses do Futebol.

De leitura fluida e agradável, apresentando momentos particulares da vida de Rivellino, a obra de Maurício Noriega nos leva a indagar sobre as questões que ainda permanecem no imaginário coletivo dos brasileiros. Sejam elas a suposta superioridade dos craques nacionais, a mística da cultura nacional desenvolvida ao redor dos campos de várzea, ou até mesmo a perspectiva fatalista ao comparar o futebol de décadas atrás com aquele que é praticado nos dias de hoje, o que parece nos perseguir enquanto brasileiros é um saudosismo atávico a respeito do passado futebolístico recente e um constante pavor diante do risco da perda definitiva de nossos protagonismo e superioridade mundial no futebol.


[1] Veja o livro na Amazon.

[2] O livro foi gentilmente cedido pela Editora Contexto com a finalidade de ser resenhado nesse espaço.

[3]

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Max Filipe Nigro Rocha

É graduado e mestre em História pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realiza pesquisa de doutorado sobre futebol e política pela USP. Editor do site Ludopédio (www.ludopedio.com.br)e pesquisador do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Estudos Sobre Futebol e Modalidades Lúdicas) que integra pesquisadores da USP, Unicamp, Unesp e Unifesp.

Como citar

ROCHA, Max Filipe Nigro. Como traduzir em palavras uma Patada Atômica?. Ludopédio, São Paulo, v. 107, n. 21, 2018.
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