176.8

Comunicação e memória: a relação das SAF’s com as narrativas memorialísticas dos clubes

Notas Introdutórias

Em 02 de janeiro de 1921 o Cruzeiro Esporte Clube foi fundado na cidade de Belo Horizonte sob a denominação de Società Sportiva Palestra Itália por membros da Colônia Italiana. Em 2024, o clube completou 103 anos já tendo seu departamento de futebol sob a Gestão da SAF de propriedade do ex-atleta Ronaldo Fenômeno.

Este texto tenciona explorar a relação entre Comunicação e Memória, a partir do entendimento das formas em que o aniversário do clube foi explorado midiaticamente, comparando o aniversário do clube no primeiro ano na segunda divisão (2020), ainda sob o status de Associação Esportiva; e o último aniversário do clube (2024), já sob a gestão do Marketing da SAF.

Mesmo abordando temas tão sensíveis à história, este trabalho não tem nenhuma pretensão de ser um debate historiográfico, senão mesmo uma crítica à forma como a noção de memória clubística institucional tem sido percebida pelas novas gestões do futebol, em especial as SAF´s.

A construção da Memória e da História, as Associações virando SAF’s

A história de uma instituição está intimamente ligada à memória que as pessoas possuem dela. Em um clube de futebol, isso está principalmente relacionado às lembranças que os torcedores possuem daquele time. Heróis, vilões, amigos, inimigos, entre tantas outras categorias, vão sendo formadas na memória dos aficionados de acordo com a maneira como vão sendo divulgadas as informações dos ocorridos e de como os sujeitos vão manipulando aquilo a partir da relação com suas recordações, ou de que como as narrativas se constituem como representações coletivas.

Inúmeros autores, principalmente historiadores, falam do processo de construção da história a partir da memória coletiva e individual dos sujeitos. Vainfas e Cardoso (2011) falam dessas várias perspectivas de construção histórica partindo de temáticas novas e socialmente relevantes. Thompson (1987), ao discutir a formação da Classe Operária Inglesa, retoma esse papel que a memória de pequenos grupos é relevante ao processo historiográfico, porque estes no seu cotidiano e vivência constroem sua história. Hobsbawm (2013) destaca a influência do contexto político, social e cultural na produção do conhecimento histórico.

Dosse (1992) traz que os marcos, debates e transformações que moldam a história como ciência, se alteram de acordo com o tempo em que é construída. Le Goff (2003) enfatiza como a memória coletiva e individual influencia a construção da história. Revel (2009), discute como os historiadores lidam com a memória coletiva e individual na construção de narrativas históricas, analisando as complexidades e interações entre esses dois domínios.

De Certeau (2001) fala da história como composição de narrativas sobre o passado. Já Elias, renomado sociólogo (1993), destaca a importância dos processos históricos na construção da civilização e na formação dos indivíduos dentro de uma sociedade. Por fim, Burke (2002) traz como a prática histórica e as teorias sociais moldam e influenciam a interpretação histórica.

O momento histórico atual suscita a discussão sobre memória, comunicação e construção da história, pois marca a migração dos clubes de futebol da modalidade de Associações Esportivas para Sociedades Anônimas de Futebol. De forma muito sintetizada, os clubes deixaram de ser propriedade coletiva dos torcedores, em forma de Associação de interesse esportivo e social, e se tornaram propriedade privada de uma pessoa, como o caso do ex-atleta Ronaldo Nazário, ou de um grupo econômico com fins lucrativos, mas independente disso, deixa de estar no controle dos torcedores.1

Em 18 de dezembro de 2021, depois de duas temporadas na Série B do Campeonato Brasileiro, e indo disputar mais uma no ano seguinte, o Cruzeiro SAF é adquirido pelo ex-atleta, revelado pelo clube, Ronaldo Nazário.2 Imerso em dívidas e com uma complicada situação esportiva, a adoção do novo modelo administrativo foi tratada como a solução e única “salvação” para o time. Tanto o presidente à época, Sérgio Santos Rodrigues, quanto uma série de conselheiros participaram ativamente deste processo e negociação junto ao grupo representado pelo ex-jogador. No período de votação na Associação, se mudaria de modelo e se faria a venda para o interessado do momento, torcidas organizadas fizeram pressão nos votantes com uma série de ameaças.3

Aprovada a venda, o departamento de futebol do clube passa a ser administrado pelo grupo liderado por Ronaldo Nazário, que conseguiu em seu primeiro ano devolver o time para a primeira divisão do campeonato brasileiro. Apesar de ter criado uma nova relação com a torcida, é importante destacar o que Giulianotti (2012) chama de torcedor flâneur, que seria uma relação comercial entre os torcedores e a equipe. Esse fenômeno será um pouco mais explorado nas seções seguintes.

Ronaldo Cruzeiro
Foto: Gustavo Aleixo/Cruzeiro/Divulgação

Aniversário de 2020 x Aniversário de 2024 (Descrições)

Em 02 de janeiro de 2020, o Cruzeiro completava 99 anos, e seu primeiro ano disputando a Série B do Campeonato Brasileiro. Em uma comemoração contida, até pelo momento delicado de recém rebaixamento, o clube lançou um vídeo de dois minutos com narração de Alberto Rodrigues, o narrador dos jogos do time na maior rádio do Estado de Minas Gerais, a Itatiaia.4 Uma produção até complexa, com vários elementos e bem profissional do ponto de vista audiovisual, mesmo em um momento financeiro e político conturbado, o que demonstrou ali uma preocupação com a data e os torcedores.

O vídeo mistura um tom meio fúnebre inicialmente, passando uma tristeza e imagens com cores mais abatidas, muito difuso e embaçado. Todas as imagens são sobressaídas com cores como o champanhe e roxo, passando uma sensação de lembranças de um tempo que foram felizes e já não são mais. Isso também encoberto por efeitos que lembram os televisores antigos. São muitas imagens da torcida no decorrer do vídeo.

O narrador sempre remete a questão das estrelas, constelações, inclusive com uma imagem do Cruzeiro do Sul, que dá nome ao clube. Fala da constelação de craques do time, citando três nomes específicos, que provavelmente são os maiores jogadores da história do Cruzeiro: Tostão, Dirceu Lopes e Wilson Piazza. Depois remete à “constelação” de nove milhões de apaixonados (torcedores) pelo time, sempre focando neste aspecto coletivo, tradicional e histórico do time.

O vídeo tem um roteiro de falar desse momento triste que passa toda torcida, mas sempre remetendo a um passado de glórias, que já foram de muitas alegrias. Inclusive usa o termo “meu brilho de outrora” ao relacionar momentos anteriores e os atuais que ali decorriam. Fala de “imperfeições”, mas relacionando com a “fonte” do que seria essa história, essa memória coletiva de glórias. Falando “de uma luz azul” que ajudou na construção deste clube. Fala que daqui “100, 200 anos” o clube ainda estará ali. Por fim, o vídeo termina com “O meu nome é Cruzeiro, e o Cruzeiro somos todos nós”.

Passando o tempo, o Cruzeiro retorna para a Série A em 2022, jogando novamente o campeonato em 2023, ficando para a temporada de 2024 na mesma situação com muita dificuldade, se salvando de uma nova queda faltando poucas rodadas para o fim do torneio.

No aniversário do Clube em 02 de janeiro de 2024, a situação é um pouco diferente dos dois anos anteriores sob a gestão de Ronaldo (2022 – 2023), sendo um na Série B e o outro recém promovido a primeira divisão. Com um pouco mais de tranquilidade pela situação, a SAF Cruzeiro constrói suas postagens nas redes sociais para comemorar o aniversário, e claro, construir a memória dos torcedores e elaboração da história do clube. Lembrando que neste momento, a equipe possui mais condições e não está com recursos tão escassos para produzir peças audiovisuais tratando sobre uma data tão importante.

O dia começa com um post, que são quatro fotos de momentos do Clube, uma delas contendo Ronaldo, e com o número “103” em destaque.5 A legenda também é este número, um emoticon de bolo e um de Raposa. No decorrer do dia são postados quatro vídeos com mensagens de alguns torcedores, individualmente, em depoimentos coletados em alguns pontos da cidade.6 Houve um post com uma foto da mascote infantil do clube, a Raposinha.7 Destacando que todos com legendas muito simples.

Os dois posts que mais chamam a atenção, um pela baixíssima qualidade de produção e outro por um elemento um pouco “destoado”, sendo dos parabéns enviados por “ídolos” e um com times marcantes de cada década. No vídeo com os “ídolos”,8 ex-jogadores do Clube enviam mensagem de parabéns para o time, mas que estes mesmos gravaram, sem uma estrutura profissional de audiovisual por trás, tendo até alguns jogadores com passagens com pouco destaque pela equipe. A postagem em formato de carrossel, reunindo times marcantes de cada década,9 apresenta na imagem dos anos 90 uma foto do ex-atleta Ronaldo Fenômeno, sendo que este realizou poucos jogos pelo Cruzeiro e não ganhou nenhum torneio relevante. A seguir, finalizamos o texto trazendo questões acerca da construção da história e da memória que circundam estes eventos expostos.

Considerações

Podemos considerar que quem faz a guarda e conservação da história do Clube é Associação; a SAF lucra e rentabiliza sobre a tradição construída por trabalho tão duro de atletas, dirigentes e torcedores. A Sociedade Anônima faz um trabalho de se apropriar das cores (existem casos em que as cores foram modificadas), símbolos e títulos da antiga associação, e a partir dali construir sua “própria história” (ou uma “outra história) como se representasse outra equipe, ou outro momento que seria “melhor”.

O neoliberalismo tem com premissa básica, e reproduz isso nas instituições e organizações, de retirar dali a subjetividade e a historicidade que as pessoas e elas próprias tem, como uma forma de uniformizar e facilitar o pleno controle e funcionamento. Quando um clube como o Cruzeiro abandona questões que remetem a vários atletas, ou mesmo da instituição em si, trata com desdém o aniversário do time, remetendo e foca no proprietário, como o grande símbolo, a comunicação feita tenta promover uma nova memória nos torcedores, e iniciar uma reelaboração da história para atender outros fins e interesses.

Até quando remete ao “Torcedor”, se faz na visão deste como indivíduo, como aquele que consome, um verdadeiro flâneur de Giulianotti (2012). Não é uma Torcida no coletivo, onde dentro desta o sujeito torcedor entenderia a si mesmo em contato com a coletividade; é a ideia do atomismo, do sujeito individual em somatório construindo o geral, a torcida. Isso, como se fosse possível no futebol, construir todas estas instituições sem o(s) coletivo(s) que a moldaram.

Portanto, é toda uma comunicação sendo construída para instalar e gerar nos torcedores um tipo determinado de memória, que a partir desta se construa uma história que privilegie e atenda ao interesse de alguém, que muitas das vezes vai contra os próprios interesses dos torcedores, notadamente dos chamados “torcedores tradicionais”.

Notas

Referências

BURKE, Peter. História e teoria social. Unesp, 2002.

DE CERTEAU, Michel. A escrita da história. Forense Universitária, 2011.

DOSSE, François. A história em migalhasAnnales, p. 56, 1992.

ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador 2: formação do Estado e civilização. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 1993.

GIULIANOTTI, Richard. Fanáticos, seguidores, fãs e flâneurs: uma taxonomia de identidades do torcedor no futebolRecorde: Revista de História do Esporte, v. 5, n. 1, 2012.

HOBSBAWM, Eric. Sobre história. Editora Companhia das Letras, 2013.

LE GOFF, Jacques et al. História e memória. 2003.

REVEL, J. Proposições: ensaios de história e historiografia. Tradução de Claudia O’Connor dos Reis. Rio de Janeiro: Eduerj, 2009, 268p.

THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987.

VAINFAS, Ronaldo; CARDOSO, Ciro. Novos domínios da História. Elsevier Brasil, 2011.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Júnio Matheus da Silva Cruz

Mestrando em Desenvolvimento Social na UNIMONTES. Graduado em Economia, Administração e Gestão Pública. Observatório do Futebol e do Torcer da Unimontes e Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT) da UFMG.Um Pesquisador com vergonha na cara porque sabe que um Cientista que nunca gastou a calça na arquibancada de um Estádio, não tem condições de avaliar o Povo Brasileiro.

Georgino Jorge Souza Neto

Mestre e Doutor em Lazer pela UFMG. Professor da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). Membro do Grupo de Estudos Sobre Futebol e Torcidas/GEFuT-UFMG. Membro do Laboratório de Estudo, Pesquisa e Extensão do Lazer/LUDENS-UNIMONTES. Membro do Observatório do Futebol e do Torcer/UNIMONTES. Torcedor do Galo...

Como citar

CRUZ, Júnio Matheus da Silva; SOUZA NETO, Georgino Jorge de. Comunicação e memória: a relação das SAF’s com as narrativas memorialísticas dos clubes. Ludopédio, São Paulo, v. 176, n. 8, 2024.
Leia também:
  • 178.28

    Projetos sociais e práticas culturais no circuito varzeano

    Alberto Luiz dos Santos, Enrico Spaggiari, Aira F. Bonfim
  • 178.27

    Torcida organizada e os 60 anos do Golpe Civil-Militar: politização, neutralidade ou omissão?

    Elias Cósta de Oliveira
  • 178.25

    Jogo 3: Galo 3 x 2 Peñarol

    Gustavo Cerqueira Guimarães