A construção cultural do torcer e a homofobia no futebol: notas para uma reflexão emergente
“Brasil está vazio na tarde de domingo, né?/ Olha o sambão, aqui é o país do futebol.”(1) Já não se questiona, há muito tempo, o futebol como tradição e seu enraizamento na cultura e identidade do povo brasileiro. Assim, direta ou indiretamente, em algum momento da vida somos tocados por esse fenômeno.
Não me lembro com certezas do meu processo de encantamento, sedução e arrebatamento ao futebol. Atleticano, sempre que me pergunto – ou me perguntam – sobre o porquê dessa vinculação time/pertencimento à minha subjetividade de torcedor, me vem à lembrança o pôster, em destaque, na parede da sala da minha avó. O pôster em questão retratava a conquista do Campeonato Brasileiro de 1971 e, com grande orgulho, muito antes do meu nascimento (1982) já recebia todo e qualquer visitante que ali chegasse como traço cultural e demarcador de um território alvinegro.
https://www.youtube.com/watch?v=EWBWugaJZ_Y
As lembranças juntam-se como peças de um quebra-cabeça e outros elementos saltam em minha história pessoal – como na de milhões de brasileiros – quando, ao me apresentar em público, por exemplo, defino em minha subjetividade traços identitários e de pertencimento, reiterando a predileção por um time de futebol sempre evidenciado (como se houvesse um protocolo ou roteiro pré-estabelecido).
Tomando o futebol como prática de lazer dos brasileiros e buscando problematizá-lo a partir de uma relação com os estudos sobre gênero, lanço mão da seguinte questão: O futebol representa mesmo uma identidade coletiva? Todos os brasileiros se identificam ou mesmo são identificados como pertencentes a esse território?
Sendo o lazer uma prática que “supõe a formação de vínculos e implica determinadas formas de relação com o espaço e equipamentos urbanos”(MAGNANI, 1996, p. 34) e reconhecendo o futebol como traço de uma condição viril, como são enquadrados os que destoam desse paradigma, vista a rejeição de homossexuais ao campo do futebol?
Parece pertinente investigar as formas de expressão do preconceito, visto que o futebol é um dos contextos mais representativos da masculinidade, embora seja um espaço de manifestação e fruição da cultura e possibilidade de diversão, ou seja, “uma atividade em que o indivíduo possa experimentar/vivenciar momentos de lazer”. (GOMES, 2004, p. 124)
As experiências escolares também reforçam a presença do futebol no cenário educativo formal. Enquanto conteúdo esportivo hegemônico para a educação de meninos e, também, de meninas, essa experiência traz elementos que coadunam com a discussão a que nos prestamos.
“Nesses noventa minutos./ De emoção e alegria./Esqueço a casa e o trabalho”. Ainda nos versos de Milton Nascimento e Fernando Brant é possível tecer uma crítica ou problematizar sobre o espaço devotado ao Futebol e à conformação de seus códigos e valores como naturalizados e, portanto, banalizados em nossas relações no dia-a-dia. Questões sociais, econômicas e de ordem política são, por vezes, arrefecidas sob a pujança do esporte nacional.
Isso se desdobra às próprias relações que futebol, gênero e sexualidade vêm assumindo, historicamente. Desconsiderando a especificidade dos conceitos, o espaço do futebol em todas as formas de sua assistência está associado a uma masculinidade dominante, hegemônica e irrefutável.
Outra questão que merece atenção é a homofobia que se sustenta dentro dos espaços territorializados pelo futebol. Mesmo que fora dos estádios ou de outros desses territórios transitórios (bares, rodas de amigos/torcedores), questões sobre respeito à diversidade, entre elas as diferenças de gênero, sejam pauta, parece que nesses territórios viris há uma grande resistência quanto à acessibilidade de um público “desviante”, ou mesmo evita-se assumir discursos de tolerância e diálogo com sujeitos ou temas que desestabilizam o status imaculado do futebol.
Assim, como Milton e Brant nos diz em seu versos, “A vida fica lá fora./ Dinheiro fica lá fora./ A cama fica lá fora./ A mesa fica lá fora./ Salário fica lá fora./ A fome fica lá fora./ A comida fica lá fora./ A vida fica lá fora./ E tudo fica lá fora.”
A discussão que aqui se inicia busca problematizar as relações já tencionadas entre o futebol/torcer, como práticas radicadas do masculino, e a emergência de grupos “desviantes” que conclamam os seus direitos de acesso ao lazer no futebol, ocupando, também, os espaços reservados aos apaixonados pelo esporte bretão.
A divulgação nas redes sociais, desde o inicio de 2013, de grupos de torcedores intitulados “Torcidas livres de preconceito”, sob a adjetivação de termos que denotam referência à teoria Queer e apelidos depreciativos aos clubes – como Galo Queer e Bambi Tricolor – evidenciam os tabus acerca da temática homofobia no futebol.
A figura apresentada a seguir ilustra uma cena típica nos estádios de futebol, onde o modelo que chamamos de hegemônico é construída não apenas na valorização desse modo de subjetivação, mas também pela desqualificação de outras possibilidades de gênero e de sexualidade. Assim, torna-se mais masculino na medida que se questiona a masculinidade do outro.
![Figura 1: Reprodução ITV Football - Twitter. Bih9jjQCcAAhvkr.jpg-large](https://www.ludopedio.org.br/v2/content/uploads/Bih9jjQCcAAhvkr.jpg-large.jpg)
A provocação entre torcidas rivais busca, na desconstrução da masculinidade alheia, macular a sexualidade do outro, desconsiderando as próprias diferenças conceituais entre identidade de gênero e sexualidade. É necessário demonstrar que “não são propriamente as características sexuais, mas é a forma como essas características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou pensa sobre elas que vai construir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histórico.” (LOURO 2014, p. 25)
Se Foucault (1988) foi capaz de traçar uma história da sexualidade, isso aconteceu pelo fato de compreendê-la como uma “invenção social”, ou seja, por entender que ela se constitui a partir de múltiplos discursos sobre sexo: discursos que regulam, que normalizam, que instauram saberes, que produzem “verdades”.
Segundo reportagem do site UOL (2), o cartaz em questão faz referência aos ‘Gunners’ (apelido do Arsenal), chamando-os de ‘gays’, e ao meia Mesutözil, que é caricaturado na imagem em um desenho bastante sugestivo, uma mensagem direta e absolutamente coerente com o paradigma heteronormativo que alimenta o torcer no futebol. Os autores também desenharam um canhão (símbolo presente no distintivo do Arsenal) apontado para as nádegas de Mesut. Todos esses elementos compõem uma mensagem claramente homofóbica.
![Arsenal LGBTQ Fans Group - Gaygowoners (reprodução) gaygooners](https://www.ludopedio.org.br/v2/content/uploads/gaygooners.png)
Nessa ilustração (Fig. 1), assumindo a lógica do futebol como espaço heteronormativo, desqualificar a torcida adversária retirando-lhe os atributos do masculino parece estar naturalizado à cultura do torcer, em que comentários homofóbicos, que põem em xeque o predicado macho, assumem a categoria de xingamento, palavrão, condição desviante/anormal, defeituosa.
Notas:
(1) Fragmento da música Aqui é o país do futebol, escrita pela dupla do Clube da Esquina, Milton Nascimento e Fernando Brant, e que ganhou fama na voz de Wilson Simonal. Disponível em www.vagalume.com.br. Acessado em 25 de junho de 2015.
(2) Disponível em: <http://esporte.uol.com.br/futebol/ultimas-noticias/2014/03/13/bayern-pode-ser-punido-com-r200-mil-apos-cartaz-homofobico-de-torcedores.htm>
Referências:
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. ed.7. Rio de Janeiro: Graal,1988.
GOMES, Christianne Luce. Lazer – Concepções. In: ______. (Org). Dicionário crítico do lazer. Belo Horizonte: Autêntica. 2004.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 16 edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
MAGNANI, Jose G. Quando o campo é a cidade: fazendo Antropologia na metrópole. In: MAGNANI, Jose G.; TORRES, Lilian de Luca (org.). Na metrópole: textos de antropologia urbana. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 1996.