Há algumas semanas assistimos o documentário Copa 78: o poder do futebol, de Maurício Sherman, sobre o Mundial jogado no país vizinho. Comentávamos sobre as peças de propaganda distribuídas ao redor dos campos de jogo: roupas íntimas masculinas, carros, bebidas alcoólicas e, claro, marcas de cigarros. Eram outros tempos, afinal podia-se fumar no banco de reservas – Cesar Luis Menotti, selecionador argentino, era um dos fumantes –, algo impensável nos dias de hoje, não apenas pela proibição sanitária e preocupação com a saúde, mas também porque ser fumante se tornou uma espécie de falha moral. As mulheres também consumiam cigarros, mas o futebol era muitíssimo masculino.

Felizmente as coisas mudaram, mas muito se mantém: a Copa do Mundo, assim como o futebol como um todo, ainda é excessivamente território de homens. Dificilmente dizemos, por exemplo, que o Mundial que vem sendo jogado é “masculino”, deixando a qualificação apenas para a versão feminina do evento. É certo que se trata de uma competição para eles, então, entre as quatro linhas e no banco de reservas, os futebolistas são vistos como tais, uma vez que impera no esporte a suposição da igualdade formal de chances, o que inclui a cisão binária homem-mulher. Mulheres não jogam contra homens, tampouco ambos habitam os mesmos times. Entretanto, apreciar o futebol, debate-lo, tomar parte do jogo de outras formas, também é algo pouco afeito à presença do que não é, historicamente, masculino.

No país onde a Copa se desenrola isso se coloca de maneira brutal, já que pela primeira vez se permite que mulheres, como exceção, adentrem os estádios como espectadoras, e, em seu entorno, vê-se a presença do segundo sexo[1] seja como jornalistas, preparadoras físicas, fisioterapeutas, comentaristas, narradoras e árbitras, ainda em número muito menor que o de homens. No staff que acompanha os jogadores da seleção brasileira, por exemplo, não há profissionais mulheres. Como não tem havido nas seleções que a precederam. Em 1994, na campanha do tetra, havia uma nutricionista – profissão em que a presença feminina é marcante – na delegação, mas ela deixou a função ao ser desautorizada pela equipe médica, que impôs um cardápio em substituição ao que havia prescrito. Juntou-se à hierarquia informal entre profissionais da saúde, a autoridade inquestionável do masculino no futebol.

Foto oficial da Seleção Brasileira
Foto oficial da Seleção Brasileira – Copa do Mundo Catar 2022. Foto Lucas Figueiredo/CBF

Essa não presença das mulheres repete a estrutura dos clubes brasileiros. Mesmo nas equipes femininas, poucas são as mulheres que ocupam posições que não a de jogadoras. Nesse momento depois de várias experiências com técnicos, a seleção feminina é comandada por uma mulher. Pia Sundhage dirige o time à beira do gramado, tendo como supervisora a ex-jogadora Mayara Bordin, antes dirigente do futebol masculino do Clube Athletico Paranaense. Outras exceções encontramos no Cruzeiro Esporte Clube, em que o departamento feminino é comando por Kin Saito e Barbara Fonseca, e no  Avaí Futebol Clube, treinado, em sua equipe feminina, por Carine Bosetti. Enquanto o Corinthians tem em sua equipe masculina a médica Ana Carolina Ramos e Côrte, outras possuem nutricionistas mulheres em seus plantéis. Como técnica, neste momento, a memória nos lembra apenas de Nívea Bezerra de Lima, que, inspirada em Muricy Ramalho, segundo relata, está à frente das categorias de base masculinas da Chapecoense. Exceções, sim, mas não é pouco em um país ainda muito machista, particularmente no ambiente do futebol.

A essas conquistas em solo brasileiro somam-se, neste Mundial, outras que também precisam ser comemoradas, ainda que não diretamente ligadas a atuação nas seleções. Depois de 92 anos de evento, pela primeira vez, árbitras fazem parte do grupo responsável pelo cumprimento das regras. Em algumas partidas, inclusive, já atuaram, mas, o jogo que aconteceu na última quinta-feira, dia 01 de dezembro, entre Costa Rica e Alemanha, válido pelo grupo E, teve o primeiro trio de arbitragem inteiramente feminino da história da competição. As responsáveis pelo feito foram a francesa Stéphanie Frappart, a mexicana Karen Diaz Medina e a brasileira Neuza Back. O feito histórico foi imensamente reconhecido durante a transmissão da partida, o que corresponde à grandeza do fenômeno, embora tenhamos a esperança de que será algum dia comum criticar ou elogiar a atuação da arbitragem de mulheres, como costuma ser com a de homens.

 
 
 
 
 
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Fora do campo, as brasileiras também ocupam espaços importantes, como nas transmissões dos jogos. Renata Silveira foi a primeira mulher a narrar a Copa em TV aberta, à frente da partida entre Dinamarca e Tunísia. Ela já havia sido a pioneira no grupo Globo responsável pela condução de uma partida de futebol, naquela ocasião pela Copa do Brasil. Juntou-se a ela Natália Lara, que emprestou sua voz, no dia anterior, em um canal a cabo, para País de Gales versus Estados Unidos. As duas, principalmente Renata, foram elogiadas pelo trabalho, tendo reconhecimento inclusive da audiência, embora se mantenha em aberto a discussão se é o caso de desenvolverem uma maneira própria de narrar, pois ao menos em parte, repetem as fórmulas consagradas que os locutores têm utilizado ao longo dos anos. Renata, no entanto, já parece ter encontrado algo de um caminho, narrando com menos gritos e bordões, algo comum àquele que a inspira, Galvão Bueno. Este inclusive, foi duramente criticado pela pouca atenção destinada aos comentários de Thaís Matos, no jogo da seleção brasileira, nesta última segunda-feira.

Se o mundo mudou, a luta das mulheres encontra vozes de apoio, e há avanços nesses espaços muito associados aos homens e sua atuação profissional, é preciso relembrar que ainda persiste a luta pelo reconhecimento, pela continuidade e ampliação dessa presença.  Não se pode esquecer que foi apenas em 2020 que a CBF equiparou os salários de mulheres e homens que defendem a seleção canarinho. Também é de se lembrar que o Brasileirão Série A feminino ainda não tem os patrocinadores que a tradicional competição masculina recebe; são poucas ademais, as partidas transmitidas na tv aberta – embora, neste ano, as finais tenham superado todas as estatísticas de público. O caminho está mais aberto? Está! Mas, nem por isso é mais leve. Que possamos, homens e mulheres seguir trilhando, de fato, o percurso da igualdade de direitos e de oportunidades, no esporte, no futebol.

Notas

[1] O Segundo Sexo, publicado originalmente em 1949, é a obra máxima da filósofa Simone de Beauvoir. Trata-se de uma produção de suma importância ao movimento feminista.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Danielle Torri

Professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

TORRI, Danielle; VAZ, Alexandre Fernandez. Copa do Mundo Masculina: Mulheres. Ludopédio, São Paulo, v. 162, n. 2, 2022.
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