Há alguns anos, em uma segunda-feira, o então colunista da Rede Brasil Sul de Telecomunicações, a RBS (TV), Cacau Menezes, fez um comentário sobre o Super Bowl, a partida que conclui o campeonato de football nos Estados Unidos da América, ocorrido no dia anterior.  Trata-se de um gigantesco evento de entretenimento, que costuma contar com grandes estrelas musicais, como Madonna e Beyonce, concentrando as atenções nas telas de televisão em todo o mundo. O momento apoteótico, assim como o torneio que o antecede, foi imortalizado no filme Um Domingo Qualquer (1999), de Oliver Stone, protagonizado por Al Pacino. O colunista afirmou: o brasileiro entende tanto de futebol americano quanto as mulheres no Brasil entendem de futebol. Foi criticado aqui e ali, mas se fez ouvidos moucos. Hoje talvez fosse ainda mais desaprovado, dada a presença maior que o feminino tem encontrado no soccer, com torcedoras, jogadoras, narradoras, etc. Ainda timidamente, mas muito mais presentes que pouco tempo atrás.

A participação mais acanhada das mulheres é fruto da forma como se dá a socialização do futebol no Brasil. É comum assistirmos, não futebol americano, mas, nossos times do coração, correrem atrás da bola nos campos ou pela TV, nos mesmos domingos, mas também em dias da semana, e é corriqueiro vermos pais acompanhados pelos filhos, meninos que levados aos estádios aprendem a compartilhar certa masculinidade, uma iniciação ao universo visto como dos homens.

Menos comum, infelizmente, é vermos os pais levarem suas filhas para os jogos, criarem o gosto pelo futebol, aprenderem seus estilos, regras etc. A presença de uma menina com seu pai, no domingo retrasado, no Beira-rio, poderia ser comemorada, mas a ação do torcedor do Internacional de Porto Alegre fez tudo regredir. Ele invadiu o gramado com ela nos braços e em seguida agrediu um jogador da sua equipe, que fora derrotada na semifinal do campeonato gaúcho, e logo após também um cinegrafista. A menina, nos seus aparentes dois anos ou menos, se mostrava apavorada, aparecendo nas imagens aos prantos. A cena tomou a atenção das mais diversas mídias e comentaristas esportivos, políticos etc. Não era para menos. Podendo estar nas arquibancadas, longe da briga que se desenrolava entre os jogadores, o pai resolve invadir o campo, para depois afirmar que o fez pela segurança da menina. Parece piada de mau-gosto.

Já algum tempo a infância, esse conceito e condição modernos, tornou-se espaço de cuidado e atenção, mas nem sempre foi assim. Com Hannah Arendt aprendemos que a natalidade, a chegada de novas crianças para o mundo, delega-nos a responsabilidade de transmitir a cultura elaborada a elas. Como artefato produzido pelo coletivo, o futebol pode e deve ser apresentado a elas. Crianças, meninas e meninos podem chegar ao conhecimento e à experiência com esse esporte de maneira responsável, organizada, prazerosa.

Para piorar, algumas críticas que se somaram às imagens do episódio, colocaram a culpa em quem não a tinha, com as perguntas típicas da sociedade patriarcal em que vivemos: e a mãe, onde está? Como deixou o pai leva-la ao estádio? Como se isso fosse um crime e o cuidado e socialização, especialmente de uma garota, fosse tarefa essencialmente feminina. Não é apenas das mulheres, tampouco se dirige apenas para aquelas crianças que nos são mais próximas. Ter amor pelo mundo significa zelar pela infância de todas as crianças, ao se preservar as tradições que nos são caras. Entre elas o futebol.

Um aspecto fundamental do esporte diz respeito a conviver com a derrota. Como afirmam os discursos românticos sobre o tema, “crescer com as perdas”. Embora pareça um discurso clichê é, na verdade, parte inseparável da competição. Mas, o pai inconformado com o resultado, os próprios atletas que se sentiram ofendidos com a comemoração – provocação – de um adversário, os torcedores que invadiram o gramado para agredir os jogadores do seu próprio time, mostram que tal ensinamento tem falhado. Aliás, se o futebol é expressão dessa sociedade em que vivemos, que nos lembremos da história recente do país, de nosso último pleito para presidente e da dificuldade de parte da população em aceitar o candidato vencedor. Ainda não compreendemos que “perder é do jogo”.

Assim, é esperar um pouco demais que pais e mães, garotas e garotos convivam de forma madura com a derrota. Nas dezenas, centenas de escolinhas espalhadas pelo país, professores repetem, talvez, sem pensar muito, que o importante é competir e que perder é parte da experiência de praticar um esporte. Nesta semana, enquanto escrevíamos este texto, uma colega nos relatava que precisou conversar com o pai de um de seus “atletas” na escolinha de futebol em que trabalha, de um time da série B do Brasileirão. Ela contou que um menino de quatro anos, a cada vez que toca na bola, olha para o pai no alambrado e ensaia um choro depois dos gritos do progenitor. Algo também encontrado nas competições para crianças e jovens, em que pais, não raro, invadem quadras, insultam a arbitragem, as crianças adversárias e os outros pais, em um ciclo sem fim de ensinamentos desastrados. “O discurso educa, mas o exemplo arrasta”, não afirma um provérbio popular?

Torcida Internacional
Jogador do Internacional, Pedro Henrique (28) no estádio Beira-Rio junto de sua torcida. Foto: Ricardo Duarte/Internacional.

Seria o caso iniciar essa transmissão cultural para nossas crianças com mais honestidade, já que nela depositamos nossas esperanças. Discutir, sim, o peso de uma derrota ou vitória no esporte de maneira realmente educativa. Reconhecer que em uma sociedade extremamente competitiva como a em que vivemos, a vitória é vista como essencial, de maneira a poder claramente discutir o que implica em nossas vidas. Quem sabe então poderíamos aprender com as derrotas e, ao mesmo tempo, colocar em questão os elementos opressivos da obsessão por vencer.

Neste fim de semana vários campeonatos estaduais serão encerrados. O Brasileirão se avizinha. Esperancemos que torcedores, pais e mães, possam apreciar as partidas de futebol ao lado dos seus filhos e filhas, de maneira segura e divertida. Desfrutar esteticamente do futebol e também torcer por seus times do coração. E, mais que tudo, poder voltar para suas casas e poder conversar, tranquilamente, sobre vitórias e derrotas.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Danielle Torri

Professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez; TORRI, Danielle. Meninas e meninos aprendendo (?) a fruir o futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 166, n. 8, 2023.
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