Há poucas semanas estouraram no Brasil denúncias que derivaram em investigações e depois em punições, de que haveria jogadores atuando junto a grupos que dirigem resultados de apostas esportivas para gerar lucro, em jogos do Campeonato Brasileiro. Vazaram conversas de aplicativos de celular mostrando atletas que negociavam faltas, cartões, pênaltis etc., em troca de valores financeiros vultuosos. Ao cometer infração e receber um cartão amarelo, por exemplo, ou ainda atuar mais diretamente para a derrota do próprio time, o jogador receberia uma quantia já anteriormente acordada com o que foi denominado “máfia das apostas”, por sua vez investigada pela operação alcunhada de “Penalidade Máxima”. Estão envolvidos atletas de times com projeção relativamente menor, como Juventude e América Mineiro, mas também de clubes com substanciosos aportes financeiros e grandes torcidas, como Santos e Fluminense. Alguns dos futebolistas, que já fizeram acordos, deverão pagar multas e se tornaram testemunhas do processo.

Menos famosas que as apostas em cavalos ou em jogos de azar, essa maneira de ganhar, ou ainda de perder dinheiro, não é prerrogativa do Brasil. Segundo reportagem da Revista Gente – Grupo Globo[1], com a legalização das apostas esportivas, os valores negociados ao redor do mundo tiveram intenso incremento. Em 2020, ano pandêmico, o mercado financeiro dessa modalidade teve avaliação de 59 bilhões de dólares, e no Brasil alcançou sete bilhões de reais. Os valores estratosféricos parecem aumentar a cobiça por burlar o sistema e garantir dinheiro “fácil”.

Negociações dessa natureza não são novidade, nem no país e nem fora dele. São famosas por aqui as expressões “mala branca” e “mala preta”. Elas se referem a práticas também ilegais, cometidas por interessados em determinadas partidas que oferecem a jogadores, ou mesmo a integrantes da comissão técnica, valores para que superem seus adversários (mala branca) ou percam seus jogos (mala preta), favorecendo outros times na mesma competição, quase sempre para que não descendam de categoria, ou ainda que não permitam que algum “encoste” naqueles que são líderes. Há “malas”, até mesmo, para que um clube conquiste um título.

Apostas
Foto: Rafael Ribeiro/CBF

A atual crise de manipulação de resultados faz lembrar a “Máfia do Apito”, do ano de 2005. Tratava-se de um esquema em que árbitros interferiam em resultados de partidas para que apostadores lucrassem. Alguns desses profissionais, como Edilson Pereira de Carvalho, na época importante no quadro de arbitragem do país e chancelado pela FIFA, e Paulo José Danelon, recebiam cerca de R$ 10 mil reais por partida por eles fraudada.[2]

O jogo é um artefato cultural importante na constituição de vários povos e sociedades, praticado de diversos modos e maneiras, condensando experiências e rituais. Faz parte desse acúmulo cultural, e de certa forma, de sua evolução, o esporte, que por sua vez universaliza o jogo, o deixa mais globalizado, mas também mais normatizado. Por meio de regras este pode ser realizado, compreendido e disputado nos mais diversos cantos.

No esporte há a tentativa, quase sempre infrutífera, de deixar as coisas mais equitativas e controláveis, já que justiça não é necessariamente uma qualidade do jogo. Uma boa-mão no poker não garante a vitória na próxima partida. O time mais forte no futebol, embora possa estar mais propício a vencer, dada as condições que o favorecem, pode sucumbir frente a um quadro pequeno e inexpressivo. Muitas vezes, nesses casos, afirmamos que houve injustiça. É um erro dizer isso. Houve apenas jogo!

O esporte tenta criar cada vez mais regramentos que possam controlar o que ainda resta, em seu interior, de jogo, de imponderável. Há normas, por exemplo, que tentam objetivar o que é subjetivo, como a marcação de falta quando se interpreta mão na bola ou bola na mão, em partidas de futsal. Ou ainda, em outro espectro, um dos maiores exemplos no controle daquilo que poderia estar no imprevisível das partidas: o VAR, utilizado no futebol e, de forma semelhante, empregado em outros esportes, como vôlei, tênis. O intuito é dominar aquilo que estaria impossibilitado pelo olho humano. Finalmente, o VAR acaba sendo mais uma interpretação que, com a câmera lenta e o congelamento da imagem, pode alterar a percepção – e a interpretação – dos lances jogados no campo.  Talvez, não sejam efetivamente as jogadas e resultados que se deseje dominar, antes sim, se recoloque compulsivamente a necessidade de controle, de que o esporte não abre mão.

A procura pela gerência ganha um colorido mais enfático quando os resultados são manipulados, como nos exemplos citados acima, já que só existe jogo na presença do imprevisível. A compra de resultados, quando jogadores, propositalmente, provocam cartões, faltas, gols etc., revela que o jogo morre antes mesmo que a partida inicie. Mas há algo mais que também mata, ao menos tendencialmente, o que está por ser jogado, e que encontra seu ponto mais alto na desonestidade da produção de resultados. Assim como em outros aspectos da vida, no jogo governam incerteza e indeterminação. Há algo de bom nisso e até mesmo libertador. Que o futebol então, seja limpo e, tão importante quanto isso, possa preservar, mesmo no interior da moldura do esporte, algo mais de jogo.

Notas

[1] O mercado de apostas esportivas | Gente | Uma conexão Globo

[2] Máfia do Apito: Relembre esse escândalo do futebol (fatosdesconhecidos.com.br)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Danielle Torri

Professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

TORRI, Danielle; VAZ, Alexandre Fernandez. Jogo, apostas, futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 168, n. 17, 2023.
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