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David Kopay: o ‘ícone gay’ do futebol americano

Wagner Xavier de Camargo 30 de junho de 2019

No mês em que se comemora o “Orgulho Gay”, internacional e amplamente reconhecido como da causa LGBTI+ (de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros, intersexo e demais), penso que seja importante falar de representatividade em termos de identidades sexuais e de gênero também no mundo esportivo. É graças à conhecida “Revolta de Stonewall”, ocorrida num pitoresco bar nova-iorquino de gays, lésbicas e afins há cerca de 50 anos, que foi possível transformar preconceitos, ideias discriminatórias e concepções erroneamente concebidas sobre pessoas, suas identidades e práticas sexuais/eróticas, tanto nos Estados Unidos, como em todo o mundo Ocidental.

O bar Stonewall Inn, em setembro de 1969. A placa na janela diz: “Nós, homossexuais, advogamos, com nossa comunidade, a manutenção da conduta pacífica e calma nas ruas do Village—Mattachine.”

Na terra do “tio Sam” e lugar de origem do futebol de bola ovalada, um jogador se tornou um “ícone gay” da modalidade, ainda nos anos 1970: David Kopay, um excepcional running back [1], que no auge da carreira e com 33 anos, deixou o “armário da sexualidade” nos idos de 1975, após nove temporadas bem jogadas na NFL (Liga Nacional de Futebol Americano) e o anúncio precoce de sua aposentadoria. Mais tarde, tal jogador se tornaria uma referência para o movimento LGBTI+, que buscava legitimação na sociedade pela afirmação identitária. Até então, nenhum atleta tinha se colocado daquela forma, muito menos trazido questões íntimas da sexualidade para os gramados do masculinizante futebol norte-americano.

O coming out de Kopay ocorreu em 1975, numa entrevista para o Washington Post, que foi criticada e condenada pela família e por alguns amigos. Houve notório desapontamento da mãe, que disse à época não aceitar a homossexualidade e nem o fato do filho querer falar sobre “aventuras sexuais” para o mundo. Ela o acusou, logo após sua entrevista ao jornal, de ter arruinado a carreira de técnico do irmão mais novo. Logo após a divulgação dos fatos, seus pais falaram com ele por telefone e reprovaram sua atitude, negando o fato de ele se reconhecer como homossexual e pedindo que desmentisse publicamente. Cartas de leitores ao jornal expressaram atitudes bastante negativas (a maioria delas afirmava que tal assunto não deveria ter sido publicado num jornal e que isso não tinha a ver com o universo esportivo – uma reação muito comum ainda naqueles anos nos EUA).

Capa da primeira edição de sua autobiografia: "The David Kopay Story", de 1977.
Capa da primeira edição de sua autobiografia: “The David Kopay Story”, de 1977.

No entanto, o que interessa é que para Kopay a entrevista foi “libertadora” – pelo menos é nessa tônica que seus depoimentos são construídos na biografia de 1977, escrita em conjunto com Perry Deane Young, e que galgou o lugar de best seller nos EUA ainda naquele tempo. Kopay foi o primeiro jogador profissional da NFL a declarar abertamente “ser homossexual” nos anos setenta. Ele explica na biografia que “nem sabia bem o que era ser gay” (sic). Após o anúncio da “saída do armário” e de ainda ter influência no meio esportivo ou mesmo de possuir atributos valorados pela sociedade da época, o jogador foi invisibilizado e posto à margem, da sociedade e do futebol profissional.

O contexto da revelação de Kopay nos anos 1970 era bastante enigmático. Na biografia, Perry Young fala sobre a famigerada reportagem no Washington Star (de capa inteira na sessão esportiva do jornal), que tratava da “homossexualidade no esporte” como uma espécie de tabu a ser descoberto. Tal matéria jornalística deixava suspeitas não confirmadas sobre atletas (inclusive sobre Kopay, porém não o mencionava diretamente). Em realidade, tratava-se de uma série de reportagens que passaram a ser a “bola da vez” dos jornalistas que caçavam “furos” espetaculares: foram mais de 60 atletas, técnicos e psicólogos entrevistados pela repórter Lynn Rosellini para comporem tal matéria jornalística, que revelava existir, já naqueles anos 1970, pelo menos três quaterbacks homossexuais na NFL.

Lendo os artigos compilados, Kopay descobriu que um dos entrevistados por Rosellini era alguém com quem ele havia tido relações sexuais, mas que, por razões que ele próprio conhecia (família, carreira, contratos e negócios no meio futebolístico), ainda se mantinha no “armário da sexualidade”. É interessante perceber que os fatos trazidos na biografia contextualizam o fenômeno do aparecimento de atletas homossexuais no esporte (e igualmente no futebol americano) como consequência das ondas de influência do movimento de liberação sexual de fins dos anos 1960.

Kopay entrou para o futebol por eliminação, depois de ter passado pelo basebol, basquete e atletismo, o qual considerava o mais difícil de todos. Daí em diante, representou a Universidade de Washington, na qual era estudante no início dos anos 1960. Logo em seguida foi drafitado pelo San Francisco 49ers, seu primeiro time como profissional de 1964 a 1967. Na sequência foram diversos times em poucos anos: Detroit Lions (1968), Washington Redskins (1969-1970), New Orleans Saints (1971) e, por fim, Green Bay Packers (1972).

David Kopay, primeiro jogador profissional da NFL a declarar abertamente “ser homossexual” nos anos setenta, durante a Parada do Orgulho Gay em Seattle, 2010. Foto: Sea Turtle/Flickr.
David Kopay, primeiro jogador profissional da NFL a declarar abertamente “ser homossexual” nos anos setenta, durante a Parada do Orgulho Gay em Seattle, 2010. Foto: Sea Turtle/Flickr.

Sua trajetória segue a de outros atletas no esporte, no tocante à sexualidade. Ele explicita que “estava determinado a encontrar um esporte no qual ele pudesse mostrar às pessoas que ele era um garoto saudável, forte e, sobretudo, normal” (sic). E esta é a face triste da história de atletas no esporte que não se alinham à heterossexualidade e ficam no “armário”: buscam, exasperadamente, mostrar que mesmo como homossexuais (ou transexuais, bissexuais, intersexos, etc.) são pessoas “normais” (com muitas aspas aqui), capazes de provar seu valor e suas habilidades socialmente exigidas – e o lado trágico disso é quando, na tentativa de provar isso, acabam desistindo e se suicidando.

50 anos se passaram e a Revolução de Stonewall, propagada pelo mundo pelas Paradas Gay e pelo Orgulho LGBTI+, ainda está em curso. Seja na luta por viver o dia a dia, por ser visível na mídia, por caminhar livremente de mãos dadas pela rua, por existir em lugares homo-lesbo-transfóbicos de trabalho, ou por frequentar espaços esportivos avessos a sexualidades divergentes, pessoas LGBTI+ existem e resistem, com suas múltiplas cores e jeitos, silenciadas ou não, mostrando que merecem um lugar de reconhecimento na sociedade, pois, afinal, fazem parte dela.

Notas de rodapé

[1] Running backs são jogadores de ataque, os quais recebem a bola das mãos do Quaterback e tentam tanto penetrar a defesa adversária como bloquear algumas jogadas.

Para saber mais

KOPAY, David; YOUNG, Perry Deane. The David Kopay story. New York: Arbor House Publishing, 1977.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. David Kopay: o ‘ícone gay’ do futebol americano. Ludopédio, São Paulo, v. 120, n. 40, 2019.
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