104.6

De: Dona Ironia. Para: Júlio César

Leandro Marçal 6 de fevereiro de 2018

Querido Júlio César Soares de Espíndola,

Estranho alguém te chamar assim, né? Normalmente quando se ouve o próprio nome completo é porque lá vem bronca. Mas pode ficar tranquilo, não sou disso.

Embora não me conheça, te observo o tempo todo, como os meninos da base do Flamengo fizeram, dia desses. Me chamam dona Ironia. Não gosto desse “dona”, me faz sentir velha. Mesmo vivida, não perco a agilidade e pouca gente me entende.

Precisava trocar umas palavrinhas contigo. Pensei até em pedir desculpas, mas é contra meus princípios. Interferi em seu destino algumas vezes, ossos do ofício.

Quando você trombou com o Felipe Mello em 2010 e alguns minutos depois fez careta no segundo gol da Holanda, eu estava lá. Copiei os mágicos com cartolas de fundo falso, te fiz olhar para minha mão e o truque veio do outro lado. Já tinha feito isso uns anos antes, quando chutou a bola nas costas de um zagueiro e tomou um gol bizarro. Humanos, nunca aprendem nada comigo…

Me comovi com suas lágrimas em rede nacional. Não é sarcasmo. Afinal, você era um dos melhores goleiros do mundo e falhou na única hora que não devia. Garanto que muita gente também chorou ali. Principalmente os que voaram contigo nas defesas de pênaltis da Copa América em 2004 e em tantos outros milagres com as luvas. Parecia tudo perdido, aí eu fui lá e dei uma distraída nos argentinos. Eles convivem comigo há duas deliciosas décadas sem ganhar nada. É bem engraçada a cara de frustração daquele anão folgado.

Passou o tempo e, sem culpa nenhuma, foi você o responsável por repetir sete vezes a caminhada até o fundo das redes. Em casa, numa semifinal de Copa do Mundo. Que vexame. De novo, lutava contra o derramamento de lágrimas de frustração em rede nacional. Aliás, dias antes elas correram sobre seu rosto depois de pegar pênaltis e na hora do hino nacional antes de alguns jogos, não foi? Você é emotivo, rapaz.

Dona Ironia até simpatiza com Júlio César, mas é profissional. Foto: Twitter.
Dona Ironia até simpatiza com Júlio César, mas é profissional. Foto: Twitter (reprodução).

Te olhei de longe indo para o Canadá, Portugal, voltando para o Brasil.

Confesso que, revendo sua trajetória, sinto certo remorso. Você merecia algo mais. Não que sua carreira tenha sido ruim, bem longe disso. Seu lugar é entre os grandes. Mesmo que o lado emocional te traísse vez ou outra, mas aí eu assumo a culpa.

Minha natureza é a mesma do escorpião que mata o sapo depois de pegar carona para atravessar o pântano alagado. Não sei ser diferente. A ânsia que você tinha em gravar o nome entre os grandes pela seleção brasileira é irmã da que me leva a entortar destinos, desviar caminhos, bagunçar as gavetas da História.

Tive certa interferência na reação de sua esposa ao saber de seu retorno à terra natal. Aliás, esse é um dos lugares mais férteis, lá nunca falta trabalho para mim.

Não se preocupe, você não é minha única vítima. Quando me encontro com o destino de alguém, o preço pode ser alto. Nem sempre dá certo para vocês, mas eu exerço – e muito bem, modéstia à parte –  minha função. E não ligo para merecimentos. Paciência, só estou aqui para cumprir meu dever, nada mais.

Acho que não vou mais te atrapalhar embaixo das traves. Mas, sou imprevisível, posso mudar de ideia amanhã. Eu até gosto de você. Mas sou profissional.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. De: Dona Ironia. Para: Júlio César. Ludopédio, São Paulo, v. 104, n. 6, 2018.
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