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Diálogos a partir de “Geraldinos e Arquibaldos”: ou sobre torcer, sentir, escrever

Por aqui, sábados pela manhã são costumeiros dias de faxina, e, por consequência, dia de ouvir alguma música para embalar o processo de limpeza. Foi num desses momentos de “dançar com a vassoura”, que partilhei com Edileuza, uma amiga que o Nordeste me deu, uma música de Moraes Moreira: “Saudades do galinho”. Chega até parecer ousadia tal fato, pois Edileuza é torcedora muito presente do Itabaiana, o querido “Tremendão da Serra”, que sempre peleja com muita gana nos campeonatos de Sergipe[1] e do Nordeste. No entanto, permiti-me ao atrevimento, pois ela, certamente, é uma das pessoas que mais comenta comigo as crônicas que faço neste espaço da Ludopédio, “Urubu de letra”. É amiga mesmo, porque apreço pelo rubro-negro ela não tem nenhum, e, mesmo assim, não deixa de comentar uma crônica.

“É verdade esse bilhete”. Fabio não mente quando fala das nossas diferentes posições em relação ao rubro-negro. Ele bem que tenta militar em prol de uma “rubro-negrização”, mas sem muito sucesso. Cada um com suas paixões, né… E é justamente pela via dessas diferentes afetações, que alguma aliança se fez e se faz, quando a música e a escrita falam das intensidades afetivas torcidas pelo futebolear. Nesse campo, produz-se um encontro, pelo qual leio as crônicas e ouço “Saudades do galinho”. Desta, o que me fica forte é o momento em que Moraes se pergunta como é que vai dar conta da vida e dos seus reveses sem as peripécias de Zico no Maracanã. Parece tão somente uma saudade-lamentação de torcedor-tiete. Mas, para nós, é ainda mais: parece falar de modos como são produzidos sentidos para a vida fora de campo pelo que no campo acontece, pelos afetos movimentados e lugares assumidos pela torcida e pelo torcer.

As “saudades do galinho” nos levam aos “Geraldinos e Arquibaldos” de Gonzaguinha, embalando a conversa em que se atravessam torcer, sentir e escrever:

[…] Placas de rua, não corra
Placas no verde, não pise
No luminoso, não fume
Olha o hospital, silêncio […]

Sinal vermelho não siga
Setas de mão, não vire
Vá sempre em frente nem pense
É Contramão[..]

Acalma a bola, rola a bola, trata a bola
Limpa a bola que é preciso faturar
E esse jogo tá um osso
É um angu que tem caroço
E é preciso desembolar

Olha cama de gato
Olha a garra dele
É cama de gato
Melhor se cuidar
No campo do adversário
É bom jogar com muita calma
Procurando pela brecha
Pra poder ganhar[…]

(Geraldinos e Arquibaldos, Gonzaguinha)

Maracanã
Estádio Maracanã, em 1976. Fonte: Wikipedia

Geraldinos e Arquibaldos se referem à expressão cunhada por Nelson Rodrigues, para se referir aos diferentes lugares ocupados pelos torcedores no Maracanã, de acordo com o valor pago ingresso, a geral e as arquibancadas[2].  Para nós, Arquibaldos e Geraldinos são mais que lugares físicos datados num estádio. Por seus gritos, olhares, silêncios e impropérios, que seguem ressoando, eles nos levam a pensar como, num mesmo campo, conseguem jogar tantas regras e tantos “desregramentos”, tantas marcações e tantos dribles. Bem sabemos que futebol se faz com regras, medidas, tempos, valores, esquemas e definições. Um campo medindo A X B; 02 times com 11 jogadores (as) cada; 90 minutos de jogo; arbitragem. Há uma estrutura básica que o caracteriza enquanto tal, que faz com que identifiquemos que uma tal configuração se chame futebol.

Estamos falando, sim, de algo óbvio, quando destacamos tal estrutura, facilmente visualizada por quem, por exemplo, sequer compreende o que significa a regra do impedimento, mas que vibra imensamente quando a bola rola. E isso chega a soar absurdo; motivo de deboche para alguns mais letrados no futebolismo. Mas acreditem, há muita gente que torce e não sabe; e, ainda assim, torce. Há algo maior e mais intenso que move o jogo.

Geraldinos e Arquibaldos, então, parecem nos falar de lugares históricos, afetivos e sociais, que atravessam os muros dos estádios e a implacável ação do tempo, atualizando-se pelas alianças e estranhamentos nas relações e escalações dos jogos cotidianos, pelos enfrentamentos e festejos que compõem a torcida, pelas torcidas da força dos afetos futebolísticos com que nos encontramos. Curiosamente, nesse campo, faz-se um “angu de caroço”, em meio às regras dos “não corra”, “não pise, “não fume”, “não siga”, seja entre as quatro linhas, seja, principalmente, fora delas: na arquibancada, na geral, nas ruas, nas torcidas e no torcer enquanto força que não se mede, enquanto afeto que nos move, que nos seduz e nos encanta pelo jogo, pela vida que ele produz.

Sem qualquer esforço, inesperadamente, invade corpo uma atração irresistível em torcer por um jogo, por um clube. Consentidamente, deixamo-nos arrastar pela mais irracional paixão, que faz rir, chorar, brigar, levar as mãos à cabeça e ralhar palavrões, que saem até da boca dos mais pacatos Geraldinos ou Arquibaldos, a cada rumo que um jogo toma. As intensidades da geral, da arquibancada e das ruas vazam pelas estruturas, torcendo as jogadas em campo, retorcendo-nos entre “camas de gato”, tecendo um tipo de experiência que atravessa e aglutina a massa, arrebatando cada um de uma forma bem singular, ao puxar o regulamento que trazemos debaixo do braço.

O termo “torcida”, que vem do latim torquere, significa aplicar uma força sobre outra força, movimento de torturar ou excruciar (causar aflição), fazer verter, girar. O que é torcer no e pelo futebol senão conjugar todos esses verbos na carne, no osso, no cotidiano da vida que temos e fazemos. Como diz Gonzaguinha: “e esse jogo tá um osso, é um angu que tem caroço, é preciso desembolar”. Por isso, aqui, com música e escrita o torcer vaza, desembolando sentidos, fazendo-nos sentir as variações que dele se mostram, materializando-se por rituais singulares de cada torcedor, enquanto sujeito que se relaciona com seu time:

-Fabio: Edileuza está sempre nos jogos do Itabaiana, toda vez que o jogo é no Etelvino Mendonça[3], um lugar arquibaldo é dela. Nos movimentos de troca de foto de perfil, em redes sociais, às vezes, figura por ali com a camisa do tricolor da serra.

– Edileuza: Já Fabio, dificilmente consegue assistir a um jogo do Flamengo, nem do sofá de sua casa. Sou tomada por um misto de graça e comoção com o fato. Além disso, apesar de ter uma coleção de camisas históricas do clube, ele diz que não usa a camisa do Flamengo para quase nada; as que ganha de presente usa de modo tímido, para não dar desgosto a quem o presenteou.

Itabaiana
Fonte: reprodução

E tal qual a bola em campo, fazendo-nos Geraldinos e Arquibaldos, seguimos “procurando brechas”, pensando o que sentimos, sentindo o que pensamos, intentando escrever que vivemos, escrevendo-nos através das diferentes intensidades do futebolear em jogo. Ainda que não haja futebol sem regramento, este jamais encerra aquilo que mobiliza jogo e os modos como ele nos mobiliza enquanto torcida.  Então, não nos venham falar de futebol sem falar de afetos! Eles são parte constitutiva do jogo, assim como a torcida é parte constitutiva do clube, mostrando-se pela magia que se renova a cada ano, a cada início e desenrolar de campeonatos.

Pois, então, passados os primeiros 4 meses de futebol, quando no Brasil são jogadas as competições estaduais, geraldinos e arquibaldos já começam a contabilizar derrotas e títulos em mais um ano de torcida. No carioca, o Flamengo continuou na freguesia do tricolor das Laranjeiras[4], mas, ainda assim, é disparado o melhor do Rio. “Fritou mais um técnico” e mostrou outra vez que alguns jogadores se acham maior que o clube. Já por aqui, nas terras de Lampião, o Itabaiana fez o Dragão[5] engolir fogo.  No sábado do segundo jogo da final do Campeonato Sergipano (22 de abril), o Tricolor da Serra entrou no Batistão[6] e “desembolou” na casa do Confiança, repetindo o resultado que fez no Etelvino: 2 tentos a 0. Com um placar agregado de “4×0”, o tricolor levou para a Serra a taça do sergipano de 2023. A costumeira faxina de sábado ficou para outro dia. Este sábado estava reservado para “lavar a alma”.

Notas

[1] O Itabaiana é o terceiro maior vencedor do campeonato sergipano com 11 títulos. Sergipe com 37 e Confiança com 22 são os clubes que figuram a sua frente. No entanto, o Itabaiana é o único clube sergipano a conquistar uma copa do Nordeste, foi em 1971.

[2] Na época, havia, pelo menos, três tipos diferentes de lugares para ver o jogo no estádio: a geral, as arquibancadas e as cadeiras; o valor do ingresso da geral era ¼ do valor das arquibancadas, e o das arquibancadas era ¼ do valor do ingresso das cadeiras. (ARQUIBALDOS E GERALDINOS, 2023).

[3] Estádio do time Associação Olímpica Itabaiana (AOI), também conhecido como Tremendão ou Tricolor da Serra, localizado na cidade de Itabaiana- Se.

[4] Em referência ao Fluminense Futebol Clube.

[5] Em referência à Associação Desportiva Confiança.

[6] Em referência ao Estádio Lourival Baptista/Arena Batistão, localizado na cidade de Aracaju- Se.

Referências

ARQUIBALDOS E GERALDINOS. In: Dicionário informal, Dicionário online de Português. Disponível em: https://www.dicionarioinformal.com.br/arquibaldos+e+geraldinos/. Acesso em: 21 abr. 2023.

MORAES MOREIRA. Saudades do Galinho. Ariola: 1983. Disponível em: https://discografia.discosdobrasil.com.br/discos/pintando-o-oito. Acesso em 24 abr. 2023.  

GONZAGUINHA. Geraldinos e Arquibaldos. EMI Music: 1999. Disponível em: https://www.letras.mus.br/gonzaguinha/46276/#album:raizes-do-samba-gonzaguinha-1999. Acesso em 24 abr. 2023.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Edileuza Santos do Nascimento Cruz

Psicóloga na Universidade Federal de Sergipe (UFS), mestre em Psicologia,  membra do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Exclusão, Cidadania e Direitos Humanos - GEPEC/UFS, e torcedora da Associação Olímpica Itabaiana (AOI).

Fabio Zoboli

Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe - UFS. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e política".

Como citar

CRUZ, Edileuza Santos do Nascimento; ZOBOLI, Fabio. Diálogos a partir de “Geraldinos e Arquibaldos”: ou sobre torcer, sentir, escrever. Ludopédio, São Paulo, v. 167, n. 4, 2023.
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