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Diego Maradona, Andrés D’Alessandro: pelo fim das fronteiras

Em maio de 2006 eu viajava em carro de amigos do Aeroparque, em Buenos Aires, para La Plata, meia centena de quilômetros ao sul da capital do país. Viéramos de Córdoba. Era um final de tarde de domingo e no rádio escutávamos a cobertura da rodada do Torneio Clausura. Lá pelas tantas chega à cabine em que narradores e comentaristas debatiam futebol nada menos que Diego Armando Maradona, então treinador da seleção nacional. Havia muito medo – às vezes, velado, às vezes, explícito – de que a Celeste y Blanca não se classificasse para a Copa que seria jogada na Alemanha, mas El Diez é eterno e inquestionável em seu país natal, então o clima é dos melhores no bate-papo que segue. Os comentários são descontraídos e com toque irônico, como costuma ser a conversa futebolística no país vizinho, e a provocação veio na forma de um questionamento – “Eh Diego, te pusiste la camiseta de Brasil?!” – aludindo à propaganda de um refrigerante brasileiro cuja narrativa sugeria que o craque o consumira em grande volume, trazendo como efeito o pesadelo de que perfilava pelas cores verde e amarela, prestes a atuar pelo rival sul-americano. A resposta foi tranquila: “La primera vez que me puse la camiseta de Brasil fue el año 90, la de mi amigo Antônio Careca”.

Recordo-me daquela partida, oitavas-de-final do Mundial jogado na Itália, a única em que a seleção brasileira atuou muito bem, mas perdeu por um a zero, gol de Claudio Caniggia. Depois de receber a pelota de Maradona, e antes de finalizar para a meta, o atacante ainda teve o sangue-frio de driblar o ótimo Taffarel. O supercraque, lesionado no tornozelo, praticamente andara em campo, mas foi impossível pará-lo no momento decisivo, quando avançou com a bola colada ao pé esquerdo, esperou até o limite, para então entrega-la ao centroavante. Finda a peleja, a comemoração foi com a camiseta brasileira, troféu conquistado, mas também símbolo da amizade com Careca, nosso mais talentoso atacante depois de Reinaldo e antes de Romário, com quem Diego compusera a infernal linha de frente do Napoli campeão da Copa UEFA de 1989.

Lembrava-me disso tudo faz uns dias, ao ser surpreendido pela notícia de que Andrés D’Alessandro se naturalizara brasileiro. Como Maradona, ele não vestirá a camiseta verde-amarela, a menos que de maneira informal. O ótimo meia-atacante que foi já está em seus últimos suspiros como jogador profissional e, ademais, frequentou a seleção argentina em diversas oportunidades, em Copa América, Eliminatórias para o Mundial e amistosos. Pelo time olímpico chegou à medalha de ouro em 2004, em Atenas, três anos depois de ter conquistado a Copa do Mundo Sub-20 em seu próprio país, torneio no qual o grande destaque foi Javier Saviola, seu parceiro e amigo nas inferiores do River Plate.

D’Alessandro fez uma bonita história do Sport Club Internacional. O argentino (e agora também brasileiro) liderou o time em ótimas campanhas, venceu títulos importantes. Fico contente em ter assistido a uma atuação magistral do pequeno número 10 em Florianópolis, em tarde de goleada do Inter sobre o pobre Avaí, em 2009. Desde que chegou, em 2008, ele ficou apenas um ano longe do Beira-Rio, emprestado ao River para um adeus afetivo e para a disputa da Libertadores, voltando a tempo de disputar a Série B levar o Inter de volta à primeira divisão do Brasileiro.

Foto: Wikipédia

O Colorado sempre teve estrangeiros em seu plantel, e a proximidade geográfica e cultural com o Uruguai e com a Argentina deve ter papel importante nessa preferência. Foi, no entanto, um chileno um dos grandes destaques do time bicampeão brasileiro, em 1975 e 1976. Capitão da equipe, o zagueiro-central não era apenas Figueroa, mas Dom Elias Figueroa, o comandante da equipe e da novidade que era a linha de impedimento: movimento conjunto da zaga que busca colocar os atacantes adversários em situação fora-de-jogo. Intuindo que o lançamento do adversário seria feito sobre a área ou próximo dela, o beque dava o sinal e ele e seus colegas se adiantavam. Em geral, funcionava.

Mas houve outros estrangeiros que vestiram a camiseta vermelha que representa a metade (ou um pouco mais) do Rio Grande do Sul. Entre eles está o paraguaio José de La Cruz Benitez, contratado logo depois de impedir uma goleada do selecionado brasileiro contra a seleção de seu país, pelas eliminatórias da Copa, em 1977. Foi ele o titular da meta na campanha do tricampeonato brasileiro conquistado pelo Inter, alcançado de maneira invicta em 1979. Houve ainda Rubén Paz, o craque que venceu três títulos gaúchos na primeira metade dos anos 1980, para depois ser ídolo no River Plate – sim, um uruguaio com enorme sucesso no Brasil e na Argentina – e ganhar um fã que depois o substituiria no mesmo River e também no coração colorado: Andrés D’Alessandro.

É claro que abrir uma vaga para outro estrangeiro no time do Internacional foi uma motivação a mais na naturalização de D’Alessandro, mas, em final de carreira, ele poderia apenas tê-la encerrado se fosse essa a única questão em jogo. Ou sido discreto em relação ao fato. Mas, não foi assim, chegando a publicar em suas redes sociais que se tornara: “Oficialmente brasileiro! Dia muito especial na minha vida e carreira. Ser cidadão de um país que tão bem acolheu a mim e minha família é motivo de muito orgulho. A história está feita! Obrigado, Brasil!”.
O maior jogador cuja carreira pude acompanhar, Diego Maradona, vestiu a camiseta do Brasil; o grande ídolo do Inter nos últimos anos tornou-se brasileiro. Nenhum dos dois deixou de ser argentino. Que todos nós sejamos locais e estrangeiros, sempre, ao mesmo tempo, no mesmo lugar. Chega de fronteiras.

Ilha de Santa Catarina, outubro de 2020.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Diego Maradona, Andrés D’Alessandro: pelo fim das fronteiras. Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 7, 2020.
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