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Diversidade, política e inclusão: mensagens da Champions LiGay para o Brasil

Wagner Xavier de Camargo 1 de dezembro de 2019

No feriado estendido do mês de novembro passado ocorreu, em Belo Horizonte, mais uma etapa nacional da Champions LiGay, a liga nacional dos clubes de futebol society cujos praticantes são LGBTI+ (ou seja lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros, intersexos e demais). Ela foi criada em 2017 a partir da prática sistemática de grupos de homens gays, que começaram a praticar o futebol society entre amigos, em quadras alugadas para tal fim. Atualmente o movimento cresceu, envolveu sujeitos de outras orientações sexuais e identidades de gênero, e nesta etapa houve a participação de três equipes de mulheres lésbicas. Tem aumentado, inclusive, a presença de pessoas transgênero, que jogam em times mistos.

Logo da Champions Ligay em um dos alambrados onde foi realizada a competição. Foto: Arquivo pessoal.

Tendo acompanhado alguns destes eventos esportivos, fiquei impressionado com o número de pessoas em torno do mesmo. Este evento foi organizado pela equipe dos Bharbixas, de Belo Horizonte. Nele participaram 25 times de várias partes do país (prioritariamente das regiões Centro Oeste e Sul-Sudeste), mais de 400 atletas, os quais jogaram 56 partidas e fizeram 216 gols, dados estes oriundos da Confederação de Futebol de 7 do Brasil – que comandou, inclusive, a arbitragem do evento[1]. Se até a etapa de São Paulo, no final de 2018, havia ainda uma percepção de grupos de amigos que se confraternizavam num “bate-bola” ocasional, este evento na capital mineira deixou uma marca bem delimitada de que se trata de um campeonato que ainda tende a crescer e se estruturar para além disso.

Jogo entre Bárbaros (SP) e Alcateia (MG), público torcedor e bandeira LGBTI+. Foto: Arquivo pessoal.

Os jogos foram concentrados em dois dias e a tabela se estendeu, no primeiro dia, até quase às 22 horas. Particularmente nesse dia, as partidas foram castigadas com uma chuva torrencial, mas que não desanimou o clima em campo. A cada edição, a competitividade aumenta e o nível técnico de jogadores/as também melhora. Uma das partidas da semifinal entre as equipes Bharbixas (MG) e Taboa (PR) foi muito disputada e terminou o tempo regulamentar no empate (1 x 1). Na cobrança de pênaltis, os Bharbixas avançaram para a semifinal com um placar de 7 x 6. Como já observei em outro momento, as equipes têm buscado conhecimento técnico de pessoas da área do futebol, sejam profissionais de Educação Física ou não.

Se algumas equipes não participaram porque não foram convidadas ou já não existem (caso da Sereyos, de Florianópolis, que perdeu parte de seus jogadores para a Tubarões), outras se consolidam como grandes expoentes, como as equipes Bulls F.C. (SP) e Beescats (RJ). Times novatos, os Ball Cats, do Amazonas, são um exemplo, chamam a atenção para lugares de pouca representatividade na LiGay, como as regiões Norte e Nordeste do país. A etapa de Belo Horizonte terminou com vitória dos Beescats, seguidos dos Bárbaros F.C. (SP) e dos Bulls F.C. A equipe segunda colocada foi uma surpresa em termos de resultado.

Time dos Beescats em concentração no campo antes de jogo decisivo. No detalhe, a mensagem política: a foto de Marielle. Foto: Arquivo pessoal.

Como antropólogo que estuda esporte, identifiquei a presença de outras pessoas no evento (além de amigos/as e namorados/as de jogadores/as): havia um trânsito frequente de moradores/as do bairro menos favorecido no entorno da Arena Santa Cruz, onde foi realizada a competição. E, nesse sentido, apesar de concordar com as críticas das equipes sobre a falta de infraestrutura externa às quadras naquela arena (como falta de vestiários mais estruturados, ou áreas de descanso, ou ainda, quadras de aquecimento pré-jogo), penso que a LiGay e a organização da equipe local, os Bharbixas, acertaram na escolha desta instalação, uma vez que a visibilidade é política, e neste momento em que o país é atingido por uma onda conservadora (que sustenta posturas homofóbicas, racistas, sexistas), faz-se fundamental estimular a aceitação e coexistência com a diversidade, de etnia, cor de pele, classe social, gênero.

Outro ponto interessantíssimo desta edição foi a presença do grupo “Mães pela Diversidade”, de Belo Horizonte. Tal grupo é composto por mães de pessoas LGBTI+ e tem uma atuação política bem marcada, particularmente quando amplia suas ações junto ao Centro de Referência da Juventude (CRJ) e o Centro de Referência LGBT (CR-LGBT) da cidade, com vistas ao acolhimento de mães que necessitam de informações ou apoio a pessoas LGBTI+ em processos de “saída do armário”. Clermen Gosling, uma das representantes e com quem conversei, disse haver vários eixos de trabalho do grupo e que, no geral, o sentimento cultivado permite, inclusive, que as mães estabeleçam vínculos de amizade e que tenham também uma vida social comum além do projeto. “O importante”, disse-me ela, “é o suporte total aos/às filhos e filhas em suas decisões relativas à sexualidade”.

Grupo “Mães pela Diversidade”, de Belo Horizonte. Da esquerda para a direita: Rosane, Ana Paula e Clermen. Foto: Arquivo pessoal.

Em intervalos de jogos procurei conhecer e conversar com pessoas. Ouvi relatos entusiasmados, alguns políticos, outros tristes, particularmente quando se tratava de aceitação da sexualidade e mesmo de “ajuste social” de um corpo trans (aspas contestatórias neste termo). Fiquei feliz em presenciar algumas pessoas transgênero em equipes como a dos Bharbixas e Ximangos (RS), jogando futebol e militando, ao mesmo tempo. Seus corpos são políticos e são instrumentos de contestação de um futebol hegemônico, machista e discriminatório. E me emocionei ao saber que há uma jogadora trans e autista, na equipe Diversus F.C., de São Paulo, que não veio para o evento, mas que participa dos treinos semanais.

Se em outro momento eu disse que o futebol havia sido “colonizado” pelo futebol society de homens gays, em Belo Horizonte tive a certeza de que o futebol society gay (se posso assim nominá-lo) foi subvertido e colonizado pelo futebol queer, uma expressão mais democrática, inclusiva, politizada e subversiva do fenômeno midiatizado que conhecemos. Longa vida a este futebol e a seus e suas praticantes LGBTI+. Que muitas outras etapas aconteçam e mostrem ao mundo heteronormativo do futebol que há dissonâncias e divergências nele. Essa foi, em minha opinião, a mensagem da recém-ocorrida etapa da Champions LiGay para o Brasil atual[2].

Notas

[1] Para saber mais de outros números, estatísticas, tabela de jogos, resultados e outros detalhes interessantes da competição, consultar o site da Confederação de Futebol 7 do Brasil (https://www.cf7brasil.com.br/campeonatos.php?cod_competicao=3361#frame).

[2] Outros textos sobre a LiGay e jogadores/as LGBTI+: “A Champions LiGay e a colonização do futebol” (https://www.ludopedio.org.br/arquibancada/a-champions-ligay-e-a-colonizacao-do-futebol/), “A era dos Invisíveis no esporte” (https://www.ludopedio.org.br/arquibancada/era-dos-invisiveis-no-esporte/), “Jogos da Diversidade de São Paulo” (https://www.ludopedio.org.br/arquibancada/jogos-da-diversidade-de-sao-paulo/).

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Diversidade, política e inclusão: mensagens da Champions LiGay para o Brasil. Ludopédio, São Paulo, v. 126, n. 1, 2019.
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