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Do futebol feminino da Revista Placar ao futebol de mulheres da Revista Rozzeira

A década de 1990 tem particular importância na história na prática do futebol por meninas e mulheres. Nacionalmente, após mais de 40 anos de proibição, puderam retornar, legalmente, às quadras e aos campos. Internacionalmente, foram realizadas as primeiras competições pelas entidades responsáveis pela gestão do futebol como o Campeonato Sul-Americano, criado pela CONMEBOL em 1991, com caráter qualificatório para a primeira Copa do Mundo Feminina em 1991 na China. A seleção brasileira se consagrou tricampeã sul-americana em 1991, 1995 e 1998, conquistou o 3º lugar em 1999 na Copa do Mundo nos Estados Unidos e também o fantástico 4º lugar nas Olimpíadas de Atlanta em 1996. Mesmo diante de tantas conquistas, não foi esta a história noticiada nas mídias esportivas nesta época. 

Uma destas mídias esportivas na época, a Revista Placar, divulgava matérias e reportagens reforçando a normativa branca e heterossexual das mulheres que praticavam futebol e que não condiziam com a realidade da modalidade. Formada majoritariamente por homens brancos em sua equipe jornalística, a Placar não escondia que seu público-alvo também eram os homens, adolescentes e jovens adultos. A falta de diversidade dentro da própria revista refletia, em suas próprias páginas, a ausência de pluralidade de outros futebóis praticados no Brasil. O futebol feminino foi um deles.

Nessa década, a revista contou com o editorial Futebol, Sexo e Rock and Roll que, além de conteúdos sobre partidas e times de futebol, contava com novidades do mundo futebolístico e reportagens sobre a vida pessoal e íntima dos jogadores e jogadoras. Se a seleção masculina aparecia com frequência em reportagens com análises de desempenho das equipes, a seleção feminina era pouco abordada e, quando isso acontecia, era acompanhada por críticas, comentários machistas e homofóbicos. Podemos ver isto na seguinte imagem, retratando o 4º lugar em Atlanta. Além dos textos e imagens em tom pessimista, a reportagem utiliza o termo “homossexualismo” que já estava em desuso desde 1991[1]:

Futebol feminino
Figura 1 – Reportagem sobre o quarto lugar nas Olimpíadas. Fonte: reprodução

Além de mencionar o quarto lugar nos Jogos Olímpicos como um fracasso, desconsiderando a história de proibição da modalidade no nosso país, a Placar escolheu quais mulheres representariam o futebol feminino em suas páginas seguido por uma lógica racista e heteronormativa. A fim de reafirmar as normativas de gênero na modalidade e vender o corpo das mulheres para o seu público homem, as mulheres estampadas seguiam as mesmas características: brancas, jovens, magras, de cabelo comprido e lisos em contextos nada parecidos com os dentro de campo, em poses sensuais e com vestimentas curtas.

Futebol feminino
Figura 2 – Capas de revista da Placar no editorial Futebol, sexo e rock and roll. Fonte: reprodução

Atletas como Sissi, jogadora do São Paulo na época, ou Roseli, jogadora do Corinthians, ilustraram minuciosamente as páginas da Placar (na Figura 1, podemos notar Sissi deitada na imagem à direita), mas dentro de campo foram brilhantes em seus clubes nacionais e na Seleção Brasileira [2].

As mulheres negras, mais velhas e que não performavam tal feminilidade foram apagadas da história do futebol feminino contada pela Revista Placar nos anos de 1990. Mulheres, pioneiras na modalidade, que fizeram o possível e o impossível para estar dentro de campo, não estampavam as capas da principal revista de futebol do nosso país.

Dois mil e vinte dois, vinte e três anos após o último exemplar do editorial Futebol, Sexo e Rock and Roll, a Revista Rozzeira: a mulher no futebol surge para ser referência em conteúdos relacionados ao futebol de mulheres, com material impresso e digital. O periódico conta com uma equipe de mulheres em quase todos os cargos e com todos os conteúdos do exemplar voltados, exclusivamente, para a modalidade em si ou para as jogadoras.

A primeira revista estampa a Formiga como capa, que, ao contrário da capa da Placar, ilustra – de maneira respeitosa e condizente – uma grande jogadora da nossa Seleção Brasileira. A segunda edição estampa o time do Corinthians e reproduz, não ironicamente, uma capa da Revista Placar de 1982, do time masculino do Corinthians. Ao compararmos com a Figura 2, fica nítido a diferença do futebol representado por cada periódico.

futebol feminino
Figura 3 – Capas da Revista Rozzeira em 2022. Fonte: reprodução

Diferente da Placar, em que  as jogadoras mencionadas eram, na grande maioria, atrizes e modelos que jogavam por times de modelos da época, a Rozzeira exalta e valoriza as verdadeiras personagens da nossa história. Em suas páginas, diversas reportagens narram a histórias de jogadoras de diferentes gerações, como em sua segunda edição, que contou com matérias individuais sobre as atletas Grazi, Gabi Zanotti, Adriana e Tarciane.

futebol feminino

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Figura 4 – Fotos das reportagens individuais da Grazi, Gabi Zanotti, Adriana e Tarciane, respectivamente.. Fonte: reprodução

Além disso, o periódico enaltece as vitórias e conquistas da nossa Seleção e das nossas equipes brasileiras. Durante o editorial, a Placar não contou com nenhuma reportagem sobre qualquer conquista de qualquer time feminino, enquanto Rozzeira tem o cuidado  de enaltecer desde o time pioneiro de mulheres, o SAAD, até a trajetória vitoriosa do Corinthians, desde o seu retorno em 2015 com Cris Gambaré.

Enquanto a Placar ilustrava um futebol “feminino” carregado de pressões midiáticas heteronormativas representando o ser feminino em nossa sociedade, a Rozzeira entende futebol de mulheres (terminologia pensada por Claudia Kessler em seus últimos trabalhos (2012; 2015) com toda a sua pluralidade de feminilidade e sexualidade, abrangendo a complexidade e grandeza desta modalidade. Pela primeira vez, conseguimos desfrutar de uma representação digna do nosso futebol de mulheres, sem viver à sombra de reportagens pensadas por e para homens. Espero que possamos, cada dia mais, prestigiar um futebol pensado por e para meninas e mulheres brasileiras.

Se você se interessou sobre o conteúdo produzido pela Revista Rozzeira, entre em contato com os materiais digitais pelo site (https://www.rozzeira.com/) e redes sociais e para também adquirir as revistas impressas.

Notas

[1] O termo “homossexualismo” aparece na reportagem – sobre a Seleção Brasileira de 1996 – apesar de ser alterado para “homossexualidade” em 17 de maio de 1990, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) a retirou da Classificação Internacional de Doença (CID) na categoria 302, Desvio e ranstornos Sexuais.

[2] Se consagraram tricampeãs do Campeonato Sul-Americano em 1991, 1995 e 1998, e foram artilheiras dos campeonatos, Sissi em 1995 com 12 gols e Roseli em 1998, com 16 gols. (Estes são apenas dados para ilustrar tamanha importância dessas jogadoras para a época, podemos ler mais sobre a vida delas no trabalho de Silvana Goellner e Juliana Cabral, “As pioneiras do futebol pedem passagem: conhecer para reconhecer”.)

Referências

CASTELLANI FILHO, Lino. Educação Física no Brasil: A história que não se conta. – 19ªed.- Campinas, SP: Papirus (Coleção Corpo & Motricidade), p.47-50, 2013.

GOELLNER, Silvana Vilodre; CABRAL, Juliana. As pioneiras pedem passagem: Conhecer para reconhecer. São Paulo: Editora Ludopédio, 2022.

KESSLER, Claúdia Samuel . Se é futebol, é masculino?. Sociologias Plurais: Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia , v. 1, p. 240-254, 2012.

KESSLER, Claúdia S amuel. Mais que Barbies e ogras: uma etnografia do futebol de mulheres no Brasil e nos Estados Unidos. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2015.

PLACAR. São Paulo. Editora Abril, edição 1119, setembro de 1996.

PLACAR. São Paulo. Editora Abril, edição 1125, março de 1997.

ROZZEIRA. São Paulo. Editora Seriguela, edição 1, maio de 2022.

ROZZEIRA. São Paulo. edição 2, outubro de 2022.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Letícia Amarante Akutagawa

Bacharel e Licenciada (2023) pela Faculdade de Educação Física (FEF) na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) com mobilidade internacional para a Universidade de Beira Interior (PT). Integrante do GEPEH (Grupo de Estudos e Pesquisas em Esporte e Humanidades) UNICAMP.

Como citar

AKUTAGAWA, Letícia Amarante. Do futebol feminino da Revista Placar ao futebol de mulheres da Revista Rozzeira. Ludopédio, São Paulo, v. 175, n. 22, 2024.
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