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É hora da CBF assumir o protagonismo na luta contra o racismo

Já não se pode mais escravizar pessoas no Brasil, uma determinação que veio pouco antes dos primeiros registros da chegada da prática do futebol em território nacional. O esporte, inicialmente elitista, foi apropriado pela população a ponto de ser transformado em um símbolo do país. Nesse caminho, além das pessoas comuns, o futebol também foi apropriado por governos e foi transformado em mercadoria em diversos níveis.

Sendo apropriado por governos, foi utilizado como símbolo de unidade nacional, como riqueza de um país. Ao ser apropriado por empresários, a paixão torcedora passou a ser monetizada pelos mais diversos negócios, dos produtos licenciados, passando pelos ingressos caros das partidas de futebol profissional chegando à audiência, que se desdobra em valores de patrocínios. 

Conta a história que a prática do futebol correu em paralelo com a República Brasileira. A profissionalização de atletas, a inclusão de jogadores negros, ditaduras, usos e abusos de empresas de comunicação e por aí vai. Eis, que também nesse país, a intelectualidade negra pensa, questiona e coloca legenda em uma série de situações. Hoje, não é errado afirmar que o Brasil é o país com o debate sobre racismo mais avançado no mundo. Talvez não seja o lugar onde haja punições mais eficazes, mas é onde se produz conhecimento sobre origens, desdobramentos e os males causados sobre o preconceito étnico-racial. 

Muitos clubes se aproveitam do Dia de Zumbi, celebrado em 20 de novembro, que marca a Semana da Consciência Negra com camisas  que destacam a efeméride. Outros, celebram suas torcidas e a presença da negritude em suas arquibancadas. É notável que o marketing das instituições está movimentando os cofres dos clubes na difícil busca por fazer suas instituições sustentáveis. No entanto, além da mercadorização de uma causa política, pouco se faz sobre conscientizar seus públicos sobre o que é o racismo e sobre o que ele causa. Pelo menos, há o reconhecimento da data, o que se deve ao trabalho e ao debate proposto pelo Movimento Negro Unificado (que completou 45 anos no início desse mês de julho).

Nessa toada, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), de maneira oportunista ou não, utilizou uma camisa negra em junho deste ano. Foi a primeira vez em 109 anos de existência da Seleção Brasileira de Futebol. O uniforme, utilizado por 45 minutos da partida contra a seleção africana da Guiné foi movida (supostamente) uma ação antirracista que apoiava o jogador Vinícius Júnior, atualmente no Real Madrid, que repetidas vezes foi vítima de discriminação em jogos da Liga Espanhola. 

Camisa preta CBF
Fonte: Divulgação/Joilson Marconne/CBF

Conmebol

Não é preciso ir longe, a América do Sul proporciona que vários casos sejam registrados. As copa Libertadores e Sul-americana registram, pelo menos, dez casos de racismo durante 2023. Há surpresa por parte de brasileiros em se deparar com esses casos, muitas vezes realizados por pessoas que sequer são brancas. E isso mostra como o desenvolvimento diferente em cada uma das sociedades nos trouxe até esse momento. A intelectualidade negra colocou o Brasil em condição de vanguarda capaz de denunciar, problematizar e propor maneiras de lidar com isso. Equipes e torcedores brasileiros são constantemente alvos dessa situação, que configura uma desvalorização dos corpos e dos saberes das pessoas que sofrem. O crime, de maneira resumida, procura hierarquizar relações colocando o alvo da agressão como alguém menor. 

No jogo de ida pela Copa Sul-Americana, realizada em São Paulo, entre Universitário, do Peru, e o Corinthians, mais um caso foi registrado. O preparador de goleiro da equipe peruana, o uruguaio Sebastian Avellino, foi flagrado fazendo gestos que imitavam um macaco direcionado a torcedores corintianos. Ele foi preso em flagrante. Imitar um macaco seria, como dito acima, um gesto que negaria a humanidade dos torcedores a quem ele mirava, a quem ele julgaria pela questão étnico-racial de seus alvos o fato de serem humanos. Está aí o racismo. 

A equipe do Universitário entrou no gramado para sua partida no último 14 de julho ostentando uma faixa de apoio a Sebástian, preso em flagrante, no Brasil. “Estamos contigo”, dizia. Em lugar de debater a questão, o clube oficialmente apoia o infrator. Vale lembrar que punição a casos de racismo estão previstos pela Confederação Sul-americana de Futebol (Conmebol). Basta vontade de aplicá-la.

Universitário Perú
Fonte: Reprodução/Twitter

Protagonismo

É preciso ir além das camisas e das fotos de jogadores de joelhos sobre os gramados. É preciso se levantar e agir. Ao mesmo tempo, não se pode dizer que esteja tudo parado, mas os passos são lentos. Em 2005, o Juventude foi o primeiro clube brasileiro a sofrer punição por esse crime. Torcedores imitavam um macaco quando Tinga, jogador do Internacional na época, tocava na bola. O caso foi registrado pelo árbitro e o clube gaúcho foi punido com base no Código Brasileiro de Justiça Desportiva. Dezoito anos se passaram e os registros aumentaram. O trabalho realizado pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol quantifica e qualifica há nove anos. Logo, existe uma base de dados para conversar sobre o que acontece. 

O baiano Ednaldo Rodrigues é o primeiro homem nordestino a ocupar a presidência da CBF, ele afirma já ter sido alvo de preconceito por sua origem. A entidade, sob sua gestão, tem a oportunidade de se aproveitar de toda a diversidade de experiências e de conhecimento gerado sobre o racismo e de ocupar o protagonismo regional, pautando a Confederação Sul-americana de Futebol e, por que não?, a própria Fifa no debate sobre o racismo que, em cada país, assume formas estruturalmente diversas.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Vicente Magno Figueiredo Cardoso

Um jornalista que leva seu bairro de origem, Bangu, do subúrbio carioca para todos os cantos. Além de ser um devotado amante do futebol e do samba. Já andou no universo torcedor de França e Estados Unidos, além do brasileiro.

Como citar

CARDOSO, Vicente Magno Figueiredo. É hora da CBF assumir o protagonismo na luta contra o racismo. Ludopédio, São Paulo, v. 169, n. 31, 2023.
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