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E um dia, afinal, tinham direito a uma alegria fugaz

Miguel Enrique Stédile 18 de março de 2022

A participação da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982 não marcou apenas o retorno do estilo de jogo que seus torcedores identificavam com o time – e que sofrera uma fissura com os selecionados das Copas de 1974 e 1978 – como antecipou os movimentos políticos e as transformações da sociedade com o final da ditadura empresarial-militar.

A primeira expressão da Abertura no futebol foi a desmilitarização da gestão, com a organização da Confederação Brasileira do Futebol. Ainda que tutelada com o aval do general João Baptista Figueiredo, o primeiro movimento significativo desse processo é a substituição do major-brigadeiro Jerônimo Bastos pelo empresário e ex-dirigente do América (RJ) Giulite Coutinho na presidência do Conselho Nacional de Desportos (CND), cargo que fora ocupado por Bastos por praticamente durante toda a Ditadura.

Neste momento, o primeiro desafio de Coutinho era assegurar a criação da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), como previsto desde 1975, e retirar o almirante Heleno Nunes do comando do futebol no país. O almirante ainda tentara impedir a criação da nova entidade e garantir sua manutenção a frente do futebol brasileiro. Porém, sem o apoio do Planalto, Nunes foi obrigado a acatar tanto a criação da CBF quanto a eleição do próprio Coutinho como seu primeiro presidente.

Instituída a CBF, era preciso reorganizar o campeonato brasileiro, após anos de inchaço de clubes de acordo com os interesses eleitorais da ARENA. Em 1980, o campeonato ainda contava com 94 equipes, divididas em três módulos. Em 1981, os resultados dos campeonatos estaduais passaram a determinar os critérios de participação dos clubes e a Taça Ouro ficou reduzida a 44 clubes.

Além das mudanças na organização do campeonato brasileiro, a gestão de Giulite Coutinho também implantou de um plano de marketing para o futebol que incluía desde a assinatura de um contrato com o Instituto Brasileiro do Café (IBC) para o patrocínio da seleção, até o licenciamento de produtos com a marca da equipe nacional. Além disso, intermediou e disciplinou o televisionamento de partidas e a distribuição para clubes e jogadores dos valores recebidos das emissoras.

Para a a Copa do Mundo de 1982, disputada na Espanha, Giulite Coutinho cumpriu sua promessa de estabelecer um técnico permanente e com dedicação exclusiva para a Seleção Brasileira. O escolhido para comandar a equipe foi Telê Santana, ex-jogador e técnico campeão carioca com o Fluminense (1969), mineiro e brasileiro com o Atlético Mineiro (1970 e 1971), gaúcho com o Grêmio, interrompendo um período de oito anos sem títulos (1977), e na época conduzindo um respeitado trabalho à frente do Palmeiras.

Telê Santana
Telê Santana. Escolhido para comandar a Seleção da Abertura. Foto: reprodução

Chamada pela revista Placar de Seleção da Abertura, a nova comissão técnica elimina os regulamentos disciplinares presentes nos anos anteriores. Durante a disputa do Mundialito, organizado pelo Uruguai, em comemoração ao cinquentenário da primeira Copa do Mundo, coincidindo com a passagem do ano, são permitidos o consumo de cerveja e champagne no réveillon, numa festa que adentrou a madrugada com um samba comandado pelo lateral Júnior.

Por sua vez, tanto no Uruguai, quanto na Copa disputada na Espanha, não há presença de dirigentes de clubes e federações no entorno da Delegação brasileira ou dos eventos da Copa. Não há estruturas como o Centro de Imprensa em Buenos Aires na Copa anterior, nem sofisticados coquetéis. Os custos da Delegação brasileira são relativamente públicos. E os únicos militares presentes em torno da Seleção, na Copa da Espanha, eram os marinheiros da banda do Navio Escola Custódio de Mello, que animaram a torcida nas partidas da primeira fase.

Outras mudanças significativas se deram no vestiário. Ainda que conhecido como um técnico rigoroso, Telê anuncia que não é um “general e não lido com soldados que vão para a guerra. Sou técnico e trabalho com craques” (PLACAR, n.617,19/03/1982, p.20). Na prática, isto significaria retirar os jogadores da condição de “subordinados” e alçá-los à condição de “sujeitos”, ouvindo a opinião dos atletas sobre a tática durante as partidas e treinos.

“Minhas determinações são sempre cumpridas. Só que o futebol brasileiro é muito criativo e às vezes os jogadores buscam uma jogada de efeito. Eles têm liberdade para isso. Nosso time tem uma dose de liberdade. Dentro do campo podem mudar alguma coisa se perceberem uma maneira mais fácil de chegar ao gol adversário” explica o técnico (JB,06/07/1982, Esportes, p.6).

Crédito: reprodução Jornal do Brasil.

Fora de campo, a relação de confiança e respeito do técnico com os jogadores se expressa na organização da concentração. Ao contrário do clima de “aquartelamento” das delegações de 1974 e 1978; na Espanha, os jogadores recebem folgas depois da partida e podem visitar as cidades de Sevilha e Barcelona. Duas garrafas de cerveja pequenas, após as partidas, também são permitidas novamente. Depois da partida contra a Nova Zelândia, último jogo da primeira fase, os jogadores são autorizados a assistir um show do cantor Fagner e retornarem mais tarde para a concentração. Depois da partida contra a Argentina, a primeira da segunda fase, as saídas não são autorizadas pela proximidade da partida seguinte, mas uma festa é organizada na concentração. A ideia de um ambiente de liberdade e descontração como decisão política pode ser aferida pela decisão da CBF em comprar os instrumentos musicais para que os jogadores.

A decisão de maior repercussão, porém, foi a autorização aos jogadores casados – Zico, Edinho e Dirceu – cujas famílias estavam na Espanha, a não dormirem na concentração após as partidas. Atitude que Telê já havia adotado onze anos antes da Copa, em sua passagem pelo Atlético Mineiro, em dispensar os casados da concentração. Além dos jogadores, também a imprensa foi beneficiada pelas mudanças promovidas, com ampla liberdade de circulação pela concentração.

Por fim, mas tão importante quanto os elementos anteriores, a grande distinção entre a Seleção Brasileira de 1982 e as seleções sob a égide da militarização é a recuperação do futebol ofensivo como estilo de jogo e, portanto, como identidade nacional.

Seleção 1982
Foto: Acervo CBF/Divulgação

A Seleção apresenta-se quase como perfeita. Recupera o futebol-arte, não é irreconhecível para a sua torcida como fora em 1974 e 1978, está preparada fisicamente e desfruta da tranquilidade e de um bom ambiente interno. Depois de duas Copas com times contestáveis, quiçá medíocres, há um sentimento que enfim o Brasil tem novamente um grande time. Um sentimento que se percebe nas ruas, pintadas de verde e amarelo e tomadas por bandeirinhas.

Desta forma, ao invés de se tornar símbolo da Ditadura, a Seleção de 1982 torna-se seu oposto, como demonstra a crônica de Alberto Dines na Placar:

Não apenas com o belíssimo futebol oferecemos lição de descontração e entendimento, mas também na relação com a imprensa. (…)

Mas de uma maneira geral os embaixadores da CBF anteciparam-se e ampliaram a abertura institucional.

O que nos leva a concluir, considerando o poder de comunicação do esporte, que se na França a monarquia absolutista caiu por causa dos brioches, no Brasil, duzentos anos depois, o símbolo da democracia ainda poderá ser a bola malhada correndo livre no campo verde” (PLACAR, n.633, 09/07/1982, pp.4-5).

Dessa forma, este movimento “despolitiza” a Seleção, porque neste momento histórico específico, a possibilidade de apropriação do símbolo da Seleção pela Ditadura está bloqueada. Em 1982, a seleção é sinônimo de demoracia. E associar-se à democracia é algo impossível para a Ditadura de Segurança Nacional. Mas, paradoxalmente, também “politiza” a Seleção, uma vez que se ela não é identificada como “governista” – ou simplesmente o fato de não colaborar com o governo – a torna parte da imensa oposição. Nesse sentido, pode-se dizer que, ao contrário da Abertura Política, a Abertura do Futebol foi ampla, abrangente, irrestrita e rápida.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Miguel Enrique Stédile

Doutor e Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Autor de "Da Fábrica à várzea: clubes de futebol operário em Porto Alegre" (Prismas, 2015) e co-autor de "À sombra das chuteiras meridionais: uma História Social do futebol (e outras coisas...)" (Fi,2020).

Como citar

STéDILE, Miguel Enrique. E um dia, afinal, tinham direito a uma alegria fugaz. Ludopédio, São Paulo, v. 153, n. 21, 2022.
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