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Éder Aleixo medroso, só na “Roça Grande”

Marcus Vinícius Costa Lage 16 de junho de 2023

Durante minha infância, ficava intrigado quando meu primo Sérgio dizia que Belo Horizonte, a cidade em que ele morava, era uma “roça grande”. Serginho era uns 10 anos mais velho que eu, bebia, fumava, ia aos jogos do Galo sozinho, tinha TV a cabo no quarto só pra ele. Tudo nele era diferente da vida que vivia. Inclusive essa história de chamar BH de “roça grande”.

Pra mim, “roça grande” era onde eu morava, em Araguari, cidade de pouco menos de 100 mil habitantes. Ainda hoje vejo Araguari como uma cidade que não foi. Nos anos 30, a única estação de trem do Triângulo Mineiro era lá. Nos anos 90, época em que vivi por lá, ela havia virado a “Bosta de Araguari”, terceira cidade com “B” do Triângulo, depois de “Beraba” e “Berlândia” – piadinha infame, que me tirava do sério.

Belo Horizonte
Fonte: Wikipédia

Mas, se na minha infância, a máxima “BH, roça grande” era incompreensível, hoje, mais de duas décadas vivendo na capital mineira, consigo entende-la bem. Especialmente por viver na região do bairro Padre Eustáquio.

Tá certo que a região vem se verticalizando em ritmo acelerado nos últimos anos. Tem uma avenida grande, que liga uma das pontas da Pampulha ao Centro. Tem também fluxo intenso de ônibus, inclusive intermunicipais. Mas isso tudo se mistura a um clima bucólico e familiar bem interessante.

Domingo à noite, por exemplo, minha cadelinha se alvoroça toda no quintal ao ouvir o galopar do cavalo puxando uma carroça, sonorizada, com música pop no volume máximo. Todo dia às 18h, o bairro ouve o entoar da Ave Maria do campanário do Santuário Saúde e Paz, mais conhecido como Igreja Padre Eustáquio, compassando a vida das pessoas. Aliás, os ditos “nascidos e criados” aqui no bairro são todos – ou quase todos – devotos de Padre Eustáquio.  Fotos do beato e histórias de seus “milagres” não são incomuns pra quem vive aqui. Especialmente nos botecos, padarias e mercearias mais antigas. Algumas, tão antigas quanto o bairro, ativas desde os anos 40, como diz, por exemplo, o letreiro da Padaria Padre Eustáquio.

O suco de “roça grande”, pra mim, fica por conta da Feira Coberta do Padre Eustáquio, equipamento público concebido nos anos 50 e implantado nos anos 70 para ser referência de secos e molhados da região. Talvez digo isso por estar a um quarteirão dela. Ou talvez por causa de 2 lojinhas que existem lá.

Uma delas é a barraca do Cândido, localizada no centro da Feira e que tem tudo quanto é tipo de especiarias, sejam elas de comer, beber, cheirar e fumar. Tem também imagem de santo e preto velho, guia de orixá, utensílios para oferendas e mais um punhado de coisa que, pra mim, é tão indecifrável quanto instigante.

A outra é o laticínios do Seu Quirino, todo azulejado de branco, com meia dúzia de prateleiras nas paredes, ocupadas por garrafas de cachaça e licor, frascos de molhos e uma TV de tubo que está sempre ligada. A frente delas, dois refrigeradores de vidro recheados de queijos e carnes, que também servem de balcão para mais alguns queijos curados, doces e farofas. Pendentes do texto, ganchos sustentam mais carnes, só que defumadas. Administrando isso tudo, atrás dos refrigeradores-balcão, encontro sempre o Seu Quirino, ou suponho que o seja, pelo nome da loja, também inscrito em vermelho no bolso de seu habitual avental.

Seu Quirino é um senhor de seus 70 anos de idade, meio curvado, andar arrastado, olhar sempre atento e poucas palavras. Em casa, costumamos brincar que ele só proseia além do habitual quando as crianças estão conosco.

Geralmente, vou ao Seu Quirino quando fazemos feijoada aos sábados ou, principalmente, aos domingos. Se durmo um pouco mais que a cama e chego um pouco mais tarde, o pernil e a costelinha defumados sempre acabam. Ainda assim, procuro saber se ele ainda tem alguma peça sobrando, pra escutar aquela resposta arrematada:

– Acabô! Tem que chegar cedo!

E foi isso que aconteceu hoje comigo. Mas hoje eu não estava só. Comigo estavam minhas filhas que, como disse, sempre arrancam algo a mais do Seu Quirino. Hoje, foi um tímido sorriso que elas conquistaram, depois de comentarem que feijoada é um prato que demora a ficar pronto.

Mas hoje, também hoje, descobri que o Seu Quirino deixa de ser apenas o Seu Quirino da venda por um outro motivo que não apenas a presença das minhas filhas. É que eu vestia uma linda camisa de treino do América – suspeitíssimo pra dizer que ela é “linda”. E, quando já saíamos da loja, Seu Quirino me soltou:

– O América joga hoje?

Surpreso, respondi que apenas no dia seguinte contra o Athletico, no Mineirão, e já emendei esperançoso:

– O senhor é americano?

– Não, sou atleticano.

– Ah… – disse eu, meio desapontado por encontrar mais um torcedor do rival.

Só que Seu Quirino se inspirou mesmo em minha camisa e me provou que BH realmente é uma “roça grande”:

– Eu joguei no América. Lembra aquele jogo de despedida do Siderúrgica?

– Em Sabará? – perguntei sem ter ideia de que jogo era esse, só por saber que o Siderúrgica era de lá e pra puxar mais um dedo de prosa com ele.

– Isso. Joguei ao lado de Amaury Horta naquele jogo.

Aí eu já queria mais. E nem precisei instigar, porque Seu Quirino continuou:

– Depois disso, aqui no clube do América, joguei com o Éder.

– O Éder Aleixo?! – disse surpreso – E ele era bom mesmo?

– Medroso! A gente fazia assim, oh – Seu Quirino ensaiava um bote – e ele… medroso! Tinha medo do Yustrich!

– Mas, também, do Homão – comentei.

– O Yustrich batia nos jogadores. Mas o Éder era medroso. Fazia assim – simulando o bote de novo – , e ele…

E, acenando com a cabeça afirmativamente, como se concordasse com sua própria história, Seu Quirino silenciou e voltou a ser o dono da venda.

Tá certo que meu primo, Sérgio, dizia que, em BH, você sempre encontra algum conhecido na rua. Mas, o vendedor de laticínios da esquina ter jogado em seu time do coração, com Amaury Horta, e, ainda por cima, impor medo em Éder Aleixo? Aí já é demais. BH realmente é uma “roça grande”.

Éder Aleixo
Fonte: reprodução Placar – 20 de agosto de 1976
Éder Aleixo
Fonte: reprodução Placar – 22 de junho de 1973

 

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marcus Lage

Bacharel, Licenciado e Doutor em História. Mestre em Ciências Sociais. Pós Doutor em Estudos Literários. Professor do Instituto de Educação Continuada da Puc Minas. Torcedor-militante do América! Se aventurando pelo mundo da crônica!

Como citar

LAGE, Marcus Vinícius Costa. Éder Aleixo medroso, só na “Roça Grande”. Ludopédio, São Paulo, v. 168, n. 16, 2023.
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