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A Superliga Europeia como um fato político novo para a extrema direita no velho continente

Uma regra básica para quem pesquisa História do Tempo Presente é ir com calma, aguardar os desdobramentos em relação ao evento que deseja analisar. Dito isto, passado algum tempo da tentativa de criação da Superliga Europeia – SLE, é possível tecer algumas considerações tendo como arena a História.  

Apenas relembrando, já que os acontecimentos que deram destaque para a SLE são recentes, em 18 de abril de 2021, mandatários de clubes gigantes da Europa anunciaram a criação de uma “liga exclusiva”. A liga teria como integrantes: Arsenal, Atlético de Madrid, Barcelona, Chelsea, Inter de Milão, Juventus, Liverpool, Milan, Manchester City, Manchester United, Real Madrid e Tottenham. Tendo como possibilidade dois convidados por “mérito” a cada ano, não havendo rebaixamento.  

Europa Superliga

O texto que segue não tem como intenção analisar a mal fadada SLE, tampouco suas intenções ou tratar o suporte financeiro a ela, tem como intenção fazer uma análise da SLE como um fato político, um possível fato novo nas disputas políticas europeias e em especial em sua utilização pela extrema direita no continente. Não, em nenhum momento se criará teoria da conspiração tratando os líderes da SLE como pertencentes a um movimento de extrema direita, não o são. O interesse é financeiro, aqui, buscar-se-á interpretar a tentativa de criação da SLE dentro de um já corrente discurso das extremas direitas no continente.  

As extremas direitas europeias, não é privilégio do velho continente, criam diversos fatos políticos, sendo eles reais ou não, exploram fatos a partir de suas interpretações no intento de poder.  

Antes, um adendo, realizaremos uma observação sobre o fato político e seus significados. Alexandre Aragão de Albuquerque (2018) destaca que não devemos confundir fato política. A política, é ação, cujo sentido é a liberdade. Essa ação pode ter uma natureza fraca ou forte, dependendo da importância a que a ela se dê. Sendo a ação política fraca aquela que pode ter sentido afetiva, mas com pouca efetividade, já por ação política forte considera-se aquela à qual o sujeito liga-se intensamente, pois tem como objetivo transformar o mundo. Tanto a ação política fraca como a ação política forte são fatos políticos. Por conta disso, é importante buscar colher a natureza íntima dessas ações para compreender as suas diferentes formas, motivações e finalidades. 

Albuquerque (2018) prossegue, assim, o fato político é uma relação entre segmentos sociais, de aproximação ou de afastamento dos valores e objetos culturais que se pretende conservar ou não ceder ao opositor. Nem sempre é uma relação em que se tem consciência do conflito. Todavia, quanto maior for o desejo desses segmentos em transformar o mundo, haverá uma determinada ação de afastamento com forte presença de hostilidade. Portanto, o combate entre dois segmentos ou mais (por exemplo, a luta de classes) é a essência do fato político. A aproximação ou o afastamento entre segmentos dá-se colocando em jogo valores e objetos culturais que é necessário ceder, conservar ou conquistar, carregado de maior ou menor emoção, interesses maiores ou menores. 

Pois bem, partindo dessa definição, nota-se que fatos políticos existem no plano político, sendo ele eleitoral ou não, no entanto, é importante salientar que fatos políticos podem ser forjados para atender demandas políticas e eleitorais, no caso, são fatos que não ganhariam importância para ser um fato político, mas são elevados a tal, especialmente para fomentar o combate entre dois segmentos.  

É importante salientar que os anos 2000 marcam uma transformação na forma como os partidos de direita e extrema direita conduzem suas ações políticas em toda a Europa. Os ataques terroristas promovidos pela Al-Qaeda contra o solo estadunidense em 11 de setembro de 2001 vieram reorientar a estrutura xenófoba e racista dos partidos de extrema direita. Piero Ignazi (2012, p. 53-54) alega que a xenofobia tradicional que é articulada no racismo cede espaço para uma hostilidade em relação aos imigrantes mulçumanos e uma rejeição para com a cultura islâmica. 

A islamofobia passa ser central na orientação dos diversos seguimentos de direita, que faz com que estes se distanciem gradativamente de seu antissemitismo tradicional e sua hostilidade para com o cristianismo de anos anteriores, visa tratar o islã como uma ameaça para a cultura cristã ocidental.  

Com isso fatos políticos em torno da islamofobia são diversos, alguns em torno de atentados como os de 2020 – Viena em 2 de novembro, Nice em 29 de outubro, Paris em 16 de outubro, Hanau 20 de fevereiro, em 2019 – Londres 29 de novembro, Halle 9 de outubro, Utech 18 de março, em 2018 – Estrasburgo 11 de dezembro. Liège 29 de maio, Trèbes 23 de março, em 2017 – Turku 18 de agosto, Marselha 1 de outubro, Barcelona e Cambrils 17 de agosto, Londres 19 e 3 de junho, Manchester 23 de maio, Estocolmo em abril, Londres em 22 de março, 2016 – Berlim em 24 de dezembro, Würzburg 18 de julho, Nice 14 de julho, Istambul 25 de junho, Bruxelas 22 de março, Ancara 23 de março, 2015 – a série de atentados em Paris, proximidades de Lyon em junho, os atentados ao Charlie Hebdo em Paris, em janeiro. 2014 – Bruxelas em setembro e em maio, Toulouse em 2012, Paris em 2011, Estocolmo em 2010, Dinamarca e Londres em 2005, Madrid em 2004 e Istambul em 2003, a lista é grande e ações de grupos radicais de orientação islâmica é inegável.     

De maneira bem óbvia, todos esses eventos foram explorados ao máximo como suporte de uma política xenófoba e, expondo seus argumentos acerca do islã ser destrutivo e visar destruir a cultura cristã e europeia. Como pode ser visto, o fato de atentados ocorrerem em diversos países, alimenta a política xenófoba local, mas também, funciona como um suporte continental, com os argumentos 1 – “estão nos atacando” e 2 – “não nos atacaram ainda, mas o farão”.  

Por outro lado, algumas ações específicas também são utilizadas como fatos políticos, recentemente o assassinato do professor francês Samuel Paty em 2020 foi exaustivamente utilizado por Marine Le Pen. Os Le Pen inclusive, utilizam de diversos fatos como potencializadores políticos, inclusive no futebol, como nos casos das Copas do Mundo e Eurocopas, vencidas ou perdidas, não importa, serão alçadas à categoria de fato político, como pode ser visto no artigo O Front National, Marine Le Pen e o futebol, aqui no Ludopédio.  

Marine Le Pen
Marine Le Pen durante sua campanha presidencial em 2017. Foto: Wikipédia

“Tá, mas e o futebol?” O fato político favorito da extrema direita europeia é a União Europeia, ou, seguindo o conceito apresentado, tudo que envolve a UE – União Europeia e gera aproximações ou afastamentos de grupos em torno de sua existência. Em suma, a UE é utilizada como ferramenta política pela extrema direita do continente. A relação de partidos extremistas europeus é de colaboração e, em especial no que diz respeito a questões que envolvem a UE, fazem parte de um bloco que pode ser chamado de eurocéptico.  

Seus líderes buscam utilizar o povo, na medida em que elenca pessoas que são excluídas pelas políticas oficiais dos Estados e União Europeia, assim estes são os excluídos, mas excluídos de formas diferentes, logo, buscam alcançar grupos diferentes sob um mesmo termo, o “povo”. Sem deixar de culpar em momentos específicos os imigrantes, que no caso, são os outros legitimados pelo Estado. 

Mas quem fica fora do “povo”? Os partidos do grupo dos eurocépticos em sua cruzada contra a União Europeia defendem que o projeto de “globalismo” faz com que haja uma sujeição dos governos locais à UE e que esta, busca favorecer os grandes empresários em detrimento do povo, que fica fora das possíveis benesses da globalização. 

Nos discursos de políticos eurocépticos há ataques para com a UE e o que eles chamam de ataque as instituições nacionais, que acarretaria em seus argumentos o fim dos Estados nacionais, colocando-se como defensores das instituições nacionais, logo das tradições nacionais. Sim, para um leitor brasileiro há uma estranheza no que diz respeito ao Estado, os nacionalismos daqui tem características bem particulares. Portanto, voltando ao caso europeu, o problema não é necessariamente o Estado, mas o fato dele ter sido apropriado por um grupo que só atende interesses de uma classe específica. Nas argumentações, defendem que são os mais ricos, o grande empresariado de cada país e europeu, em detrimento dos mais pobres, que são a maioria esmagadora do povo. O problema não é o Estado em si, mas em certa medida sua impotência, visto que ele é subordinado à UE. 

Pois bem, se tratando de fatos políticos novos, a tentativa de criação da SLE é a faca e o queijo na mão da extrema direita europeia. O discurso que direciona a UE se encaixa como uma luva para futuras críticas para com a SLE. 

Uma liga que tira o poder dos clubes locais, já nasceria tirando o poder das federações e das ligas nacionais, logo, não sujeitas a legislações nacionais. As possibilidades de utilização da categoria “povo” são explicitas, na medida que o futebol é comumente tratado como “esporte do povo” ou popular – sim, na Europa também –, logo, como a intenção é privilegiar os clubes super ricos, os clubes pobres seriam excluídos, juntamente a isso, suas torcidas. Assim, fora das possíveis benesses da globalização. 

Tal como no discurso anti UE, que essa promove como ataque as instituições nacionais, os clubes enquanto instituições nacionais também são atacadas, especialmente os menores com forte apego regional, de forma interligada, a tradição nacional. A oposição a uma instituição política internacional que tira os poderes locais é algo potente para grupos políticos que tem parte de seu suporte ideológico no nacionalismo. Tais grupos se utilizam de fatos políticos e ao mesmo tempo buscam tirar proveito deles, muitas vezes não tem controle em seu surgimento, apesar de estar em seu escopo os forjar, entretanto, são sempre atentos ao surgimento de novos fatos, a tentativa de construção da SLE é um desses fatos.  

Durante a tentativa de criação da SLE não houve nenhum pronunciamento a respeito dela por líderes da extrema direita, apenas Boris Johnson que alegou que a criação de tal liga ofende os princípios do esporte. A SLE não vingou, por enquanto, da mesma forma ela ainda não foi utilizada como fato político pela extrema direita europeia. 2022 é ano eleitoral em diversos países, aguardemos os próximos capítulos.  

 

Bibliografia 

ALBUQUERQUE, Alexandre. Sobre o fato político. Segunda Opinião, Rio Janeiro, 29 Novembro 2018. Disponível em: <  >. Acesso em: 07 de junho de 2021.

CAMUS, Jean-Yves. Le Front National et la Nouvelle Droite. In: CRÉPON, Silvain. et al (org). Les faux-semblants du Front National: Sociogie d’un parti politique. Paris: Presses de Science Po, 2015, p. 27-50.

IGNAZI, Piero. Le Front National et les autres Influence et évolutions. In: DELWIT Pascal. Le Front national. Mutations de l’extrême droite Française. Bruxelles: Editions de l’Université de Bruxelles, 2012, p. 37-55.

IVALDI, Guilles. Permanences et évolutionsde l’idéologie frontiste. In: DELWIT Pascal. Le Front national. Mutations de l’extrême droite Française. Bruxelles: Editions de l’Université de Bruxelles, 2012, p. 95-112.

NARCIZO, Makchwell Coimbra. O Front National, Marine Le Pen e o futebolLudopédio, São Paulo, v. 95, n. 15, 2017.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Makchwell Coimbra Narcizo

Doutor em História pela UFU, Graduado e Mestre em História pela UFG. Atualmente professor no IF Goiano - Campus Trindade. Desenvolve Estágio Pós-Doutoral na PUC Goiás. Membro do GEPAF (Grupo de Estudos e Pesquisa Aplicados ao Futebol - UFG). Coordenador do GT Direitas, História e Memória ANPUH-GO. Autor dos livros: A negação da Shoah e a História (2019); A extrema direita francesa em reconstrução - Marine Le Pen e a desdemonização do Front National [2011-2017] (2020) dentre outros... isso nas horas vagas, já que na maior parte do tempo está ocupado com o futebol... assistindo, falando, cornetando, pensando, refletindo, jogando (sic), se encantando e se decepcionando...

Como citar

NARCIZO, Makchwell Coimbra. A Superliga Europeia como um fato político novo para a extrema direita no velho continente. Ludopédio, São Paulo, v. 144, n. 35, 2021.
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