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Equipamentos públicos esportivos: formas de organização e de ação coletiva

Este texto integra a série especial Santa Marina, o circuito varzeano de SP e a preservação dos clubes esportivos populares, publicada na coluna Em defesa da várzea do portal Ludopédio. O principal objetivo é colocar em debate a urgência de garantir a reprodução e continuidade das práticas populares esportivas e culturais nas cidades brasileiras. Os textos, que serão publicados quinzenalmente ao longo de 2023 e 2024, apresentarão as atividades, etapas, metodologias, resultados e principais reflexões do “Mapeamento do Futebol Varzeano em São Paulo”, realizado em 2021, sob encomenda do Núcleo de Identificação e Tombamento (NIT) do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) da Prefeitura do Município de São Paulo, a fim de reunir subsídios para identificar práticas culturais relacionadas ao futebol de várzea e para analisar processos administrativos de proteção do patrimônio cultural. Além disso, diante de um contexto marcado por reiteradas ameaças aos espaços urbanos onde se pratica o futebol popular, esta série busca colocar em discussão o caso do Santa Marina Atlético Clube (SMAC), clube amador centenário cujo espaço de atuação vem sendo ameaçado por um pedido de reintegração de posse pela multinacional Saint-Gobain.


O texto anterior desta série abordou, por meio de um enfoque espaço-temporal, as relações de uso e apropriação do espaço para problematizar a formação e o espraiamento dos campos de futebol de várzea em São Paulo, bem como as tensões e negociações que envolvem as práticas, usos sociais e referências culturais mobilizadas por varzeanos e varzeanas ao longo de várias décadas. Para dar continuidade à discussão, este texto, o oitavo da série, irá enfocar as especificidades de três equipamentos públicos da prefeitura do município de São Paulo – Clubes da Comunidade (CDCs), Centros Esportivos (CEs) e Centros Educacionais Unificados (CEUs) -, a fim de entender as formas de organização e de ação coletiva das pessoas para jogar, torcer e viver o futebol na cidade.

Tendo em vista as especificidades e regulamentações dos CDCs e dos Clubes Esportivos, as seções a seguir trarão elucidações sobre a história e contemporaneidade destes equipamentos, com base em processos relativos a um CDC e um CE que foram parte dos pontos nodais da pesquisa apresentada nesta série.

Clubes da Comunidade (CDCs) e os Centro Esportivos (CEs) 

Os Clubes da Comunidade (CDCs) são equipamentos públicos da prefeitura do município de São Paulo de administração indireta da SEME (Secretaria Municipal de Esportes, Lazer e Recreação) que substituíram os antigos CDMs (Clubes Desportivos Municipais). De acordo com o Decreto Municipal 57.260/2016 que regulamentou a Lei Municipal 13.718/04, para a solicitação de um pedido entre cidadãos para um terreno tornar-se um CDC é preciso primeiro identificar o endereço pertencente a área do município de São Paulo, e oferecer no local pelo menos um equipamento esportivo (campo, quadra, ginásio, etc.); vestiários e WC masculinos e femininos; área coberta para atividades socioculturais; área de recreação infantil (playground ou brinquedoteca) e estar devidamente murada ou cercada oferecendo segurança aos munícipes frequentadores.

Também é necessário ter no mínimo duas associações esportivas interessadas na constituição e devidamente cadastradas em SEME e com mandato vigente junto ao DGEE. A Secretaria de Esportes coordena o processo de eleição das entidades que farão esta gestão, fiscaliza o uso, implementa políticas públicas e insere atividades no calendário destes espaços. Até a elaboração dessa pesquisa, o site1 da Prefeitura de São Paulo indicava a existência de 241 unidades esportivas em terrenos municipais e de acordo com o endereço eletrônico, a “gestão do espaço é feita por entidades da comunidade local com reconhecida vocação no trabalho esportivo, legalmente constituídos em forma de associação comunitária ou e eleitos pela própria população do bairro”.

CDC
Distribuição dos CDCs que possuem campos de futebol no mapa de São Paulo. Fontes: Geosampa (2021); MyMaps (Google); Informações cedidas pelos clubes.

Essa gestão participativa e independente configura uma das principais diferenças entre os CDCs e os Centros Esportivos (CEs). Esses últimos também se apresentam como equipamentos públicos e municipais que oferecem diversas atividades esportivas e de lazer para a população de todas as regiões de São Paulo de forma gratuita. 

A Secretaria Municipal de Esportes e Lazer administra atualmente 47 Centros Esportivos, responsáveis por uma vasta programação de atividades esportivas, além de espaços como playgrounds, brinquedotecas, salas de ginástica, salão de jogos, piscinas e demais espaços que abrigam uma ou mais modalidades.

Centro Esportivo
Distribuição dos Centros Esportivos Municipais que possuem campos de futebol no mapa de São Paulo. Fontes: Geosampa (2021); MyMaps (Google); Informações cedidas pelos clubes.

O histórico destes Centros remonta aos meados do século XX, tendo datação variável, mudanças administrativas e parcerias por projetos. Em linhas gerais, enquanto proposta de estrutura clubística poliesportiva, seu principal referencial histórico é o Pacaembu, cuja inauguração data da década de 1940 (atualmente em processo de concessão de parte de sua estrutura). Centros Esportivos foram inaugurados nas décadas subsequentes, como o CE Jd. São Paulo, o CE Cambuci, o CE Ipiranga e o CE Princesa Isabel, em 1970. Em 1985, foram inaugurados os Centros Esportivos José de Anchieta, Teotônio Vilela, Juscelino Kubitschek, José Bonifácio e Tiradentes. Conforme mencionado, a datação das construções ou incorporações de antigas estruturas ao modelo dos Centros Esportivos é variável, sendo esses exemplos um panorama que permite dimensioná-las.2

CDC Alvorada
Vista dos dois campos do CDC Alvorada em Arthur Alvim, zona Leste de São Paulo. Fonte: Coleção Continue Curioso.

Campos do CDC Alvorada (Negritude FC)

O CDC Alvorada é um equipamento público de administração indireta que já recebeu projetos públicos como o Clube Escola3 e reconhecidos eventos esportivos, a exemplo da Copa Negritude de Futebol Amador. O local é compartilhado por 3 grupos distintos: a própria gestão CDC Alvorada, a Escolinha de Futebol da COHAB (ESFUCO) e o time de várzea Negritude Futebol Clube, que tem naquele espaço sua sede.

Localizado no bairro Arthur Alvim, zona leste da cidade de São Paulo, o entorno dos 2 campos de futebol que integram o CDC é formado por vários prédios da Cohab 1. Este CDC atende à grande procura de meninos, moradores do bairro, que desejam praticar futebol e de equipes de adultos interessados em agendar o uso de algum dos dois campos. A demanda é somada às atividades do time de várzea Negritude Futebol Clube que faz com que seus campos de futebol estejam sempre ocupados. 

De manhã e à tarde, aproximadamente vinte turmas participam da Escolinha de Futebol, cada uma delas faz 1 aula por semana. À noite, um dos campos é utilizado pelo time do Negritude FC graças a iluminação e a presença de grama sintética que faz com que este campo seja preterido ao outro. O segundo campo de futebol, de terra, recebe outra rotina de manutenção periódica e não tem iluminação.

Apesar da existência de iluminação nos campos públicos ser um atrativo e por isso um diferencial entre CDCs, vale destacar que não são aportados valores extras da SEME ou alguma forma de facilitação em razão dos custos extras relacionados à conta de luz gerada pelo uso noturno desses equipamentos. No caso do CDC Alvorada, além das aulas para crianças oferecidas pelo Negritude FC no período noturno, o espaço é também disponibilizado para times de várzea associados às agremiações gestoras do campo. Para isso, cada clube paga a taxa em dinheiro, o que lhe confere o direito de usar o campo 1 vez ao mês, por 2 horas. Em jogos extras são cobrados o valor da luz e uma taxa de por 2 horas de jogo. Depois das 22 horas as luzes são apagadas.

As diretorias das agremiações, não raro, participam ativamente do dia-a-dia das programações que envolvem seus campos, sedes e lanchonetes. Quando eram oferecidos cursos de futebol, como aconteceu com o Clube Escola oferecido no CDC Alvorada, esses gestores eram responsáveis, por exemplo, por controlar a quantidade de lanches distribuídos, controle da presença dos alunos, cuidados com o material esportivo e presença de professores. 

No caso do CDC Alvorada, a sede do time Negritude FC fica no mesmo terreno, relativamente distante do campo. Ao longo dos últimos anos a agremiação do Negritude FC intercalou com dirigentes de outros clubes locais a gestão do CDC. De acordo com a SEME, há a obrigatoriedade de 2 clubes gestores e eleições sistemáticas para alternância de poder. Há, contudo, conflitos que são observados entre gestões compartilhadas, bem como a existência de inúmeros CDCs com o controle de uma única entidade esportiva em muitos anos de existência – a segunda agremiação passa a ser uma presença de fachada às fiscalizações existentes.   

Centro Esportivo Oswaldo Brandão 

Para compreender a situação atual do Centro Esportivo Oswaldo Brandão, é importante contextualizar o histórico dos campos do Fazendinha e Agostinho Vieira, já mencionados na breve descrição dos pontos nodais, abordados em texto anterior desta série. Tal aprofundamento toma como referência as memórias compartilhadas pelo varzeano Waldemar Oliveira Andrade.

Segundo Waldemar, o campo originário, onde se situa atualmente o CE Oswaldo Brandão, é um dos mais antigos da região. Mesmo sendo referência para o futebol varzeano, envolvendo muitos usos e equipes, Waldemar destaca as dificuldades infraestruturais iniciais. Entre o final da década de 1960 e início da posterior, o campo foi construído a partir de mobilizações locais. As equipes tinham que atravessar uma pequena ponte no córrego para usar os vestiários do lado oposto a ele. Parte da estrutura viabilizada envolvia a moradia da família de Neno, inclusive fundadora da Escola de Samba Iracema Meu Grande Amor.

O Centro Esportivo foi estruturado apenas posteriormente. O terreno era parte de uma fazenda, pertencente a Agostinho Vieira. Waldemar destaca a grande quantidade de campos naquele período e que os fazeres coletivos locais é que davam conta de construí-los e mantê-los. Nesse sentido, pode-se estimar a construção do campo posterior, próximo à Estrada do Sabão, que seria o CDC Agostinho Vieira. Segundo Waldemar, esse campo mais recente foi ganhando estruturas muito boas, recebendo jogos da Copa Kaiser e outras competições, figurando como um dos mais importantes da Zona Norte. Tanto o campo do Fazendinha (próximo ao córrego) quanto o campo acima (próximo à Estrada), são exemplos, portanto, de esforços locais que apenas posteriormente foram encampados pelas estruturas de equipamentos públicos municipais, conforme tem se discutido ao longo desta série.

Em relação à organização do Campo do Fazendinha, Waldemar destaca o empenho de Cláudio Reis e Paulo Carioca, que eram responsáveis pela manutenção do campo nos sábados e domingos, respectivamente. “Embaixo de chuva e de sol, com a enxadinha, tirando as poças e plantando grama onde não tinha (…)” – descreve Waldemar acerca do trabalho semanal de Paulo Carioca, uma referência para Waldemar que conhecera desde criança. Paulo Carioca tinha o objetivo de gramar o campo naturalmente, sendo que muitos frequentadores desacreditaram dessa possibilidade. Em alguns períodos, porém, o campo avançou em sua cobertura de grama natural, mesmo que não tenha atingido totalmente, com exceção do meio do campo. É importante destacar, com base no relato do varzeano, que o campo tinha muitos usos, para além dos jogos específicos do futebol de várzea. As pessoas chegavam para jogar, mesmo em dias de chuva e tinham que passar pela autorização de Paulo, que temia pelos buracos que seriam gerados e o desgaste do trabalho que cultivava.

A reforma que culminaria no atual campo de grama sintética, de ótima estrutura, concerne a um período bem mais recente, quando da instalação das estruturas do Centro Esportivo. Segundo sítio oficial da Prefeitura Municipal, atualmente, o Centro Esportivo Oswaldo Brandão conta, para além do campo e arquibancada de futebol, com a seguinte estrutura: Academia de Judô, Auditório, Ginásio esportivo, Pista de Caminhada, Quadras de Futsal (duas), Quadra poliesportiva coberta, Sala de Ginástica Geral, Sala de Ginástica Artística, Salas multiuso (duas), Teatro, Sala de avaliação médica, Vestiários (dois), Banheiros (dez), Sala de administração, Recepção, Cozinha/Copa e Estacionamento. Tal estrutura abrange, para além do futebol, as seguintes modalidades esportivas: Alongamento, Bále, Basquete, Capoeira, Futsal, Ginástica, Handebol, Jiu Jitsu, Judô, Karatê, Pebolim, Recreação – Campo, Recreação – Ginásio, Tai Chi Chuan e Zumba. Destaca-se que parte dessas atividades e estruturas foi compreendida no âmbito do Projeto “Clubes Escola”, supracitados, durante período específico. Ademais, nesse Centro Esportivo, o Espaço Cultural Criança Esperança foi, entre 2005 e 2015, o projeto balizador das atividades. 

Segundo informações oficiais da Prefeitura Municipal, à época da primeira reforma do Espaço (em 2012, após inauguração em 2005), o Projeto previa: “[…] a criação de centros comunitários em áreas periféricas voltados para a inserção social de crianças e jovens por intermédio de atividades esportivas, educacionais, culturais e de geração de emprego e renda”. Na mesma publicação informou-se que: “O CEE Oswaldo Brandão / Espaço Criança Esperança é administrado em parceria com a Prefeitura, Instituto Sou da Paz e a Unesco”. A referida reforma contou com

[…] a construção de duas arquibancadas ao redor do campo de futebol já existente, novas salas de aula, vestiários, além de reforma do piso e cobertura da quadra poliesportiva, restauração das piscinas adulto e infantil, instalação de um telecentro, anfiteatro, playground e novo projeto de paisagismo.4

Após reinauguração, em 2013, as atividades do Espaço foram descontinuadas. As já citadas obras do Hospital da Brasilândia e Metrô interferiram no processo, com a perda das piscinas e pista de skate, por exemplo. Ademais, a estrutura da parceria passou por mudanças, como a saída do Instituto Sou da Paz, após 2015.

A despeito de todos os processos citados, envolvendo dimensões esportivas para além do futebol de várzea, cumpre enfatizar que no “interior” das estruturas e dinâmicas do Centro Esportivo Oswaldo Brandão permanecem os arranjos e práticas culturais relacionadas à várzea, legadas do histórico varzeano na região, desde os tempos do Campo do Fazendinha. 

Centros Educacionais Unificados (CEUs)

Os Centros Educacionais Unificados (CEUs), criados a partir de 2001, principalmente em bairros periféricos de São Paulo, têm como objetivo proporcionar um conjunto de equipamentos e atividades de qualidade que articulam educação, cultura, esporte e lazer. Contudo, a chegada das unidades escolares a essas regiões, marcadas pela pobreza e exclusão social, deve ser compreendida dentro uma longa trajetória de ocupação e usos dos espaços, lutas por melhorias urbanas e reivindicações populares que antecedem a construção dos equipamentos.

A implementação dos CEUs nos territórios trazia consigo reações distintas da população local, em processos marcados por disputas, tensões e negociações que envolveram associações de moradores, comerciantes e, também, clubes de futebol. Vários CEUs foram construídos em terrenos que eram ocupados até então por campos de futebol de várzea – como mostram o mapa e a tabela abaixo -,5 o que provocou sentimentos de perda por integrantes das comunidades locais, levando a diferentes posicionamentos e resistências de moradores ligados ao universo varzeano.

CEU
Localização e situação dos Centros Educacionais Unificados em relação aos campos de futebol. Fontes: Geosampa (2021); MyMaps (Google); Informações cedidas pelos clubes.

Tabela – CEUs construídos em terrenos que tinham campo de futebol

CEUs

Região

CEUS

Região

CEU Parque Anhanguera

Zona Norte

CEU Três Pontes

Zona Leste

CEU Jardim Paulistano

Zona Norte

CEU Caminho do Mar

Zona Sul

CEU Paz

Zona Norte

CEU Cantos do Amanhecer

Zona Sul

CEU Pêra Marmelo

Zona Norte

CEU Capão Redondo

Zona Sul

CEU Uirapuru

Zona Norte

CEU Feitiço da Vila

Zona Sul

CEU Azul da Cor do Mar

Zona Leste

CEU Meninos

Zona Sul

CEU Jambeiro

Zona Leste

CEU Paraisópolis

Zona Sul

CEU Parque Veredas

Zona Leste

CEU Parelheiros

Zona Sul

CEU Quinta do Sol

Zona Leste

CEU Parque Bristol

Zona Sul

CEU São Rafael

Zona Leste

CEU Três Lagos

Zona Sul

CEU Sapopemba

Zona Leste

CEU Vila Rubi

Zona Sul

(Fonte: Projeto CEU, Memórias e Ação/COCEU-SME).

Pode-se destacar alguns destes equipamentos. O CEU Meninos foi instalado em um terreno onde se localizavam os campos de futebol da antiga Cerâmica de São Caetano, o que demandou um processo de negociação com os times que ocupavam os campos da região. No CEU Alvarenga, embora o campo tenha se tornado parte do terreno da unidade, existe até hoje uma série de confrontos com a gestão do equipamento e uma divisão, na prática, entre CEU e campo. O espaço hoje ocupado pelo CEU Sapopemba era um campo de futebol conhecido como “Corinthinha”, muito valorizado pelos moradores mais antigos do bairro, o que dificultou a inserção do CEU no bairro e a construção de relações com a população local. Do outro lado da cidade, na zona sul, outro Corinthinha, o primeiro time de futebol do bairro Três Corações (fundado na década de 1980), também teve que ceder seu campo para a construção de um CEU Três Lagos. Sem espaço para jogar, o clube se desfez, mas alguns remanescentes do time se apropriaram da quadra de futsal do CEU Três Lagos, marcando amistosos e reuniões no local. Já o terreno onde hoje está instalado o CEU Cantos do Amanhecer abrigava o Campo do Cafuringa, inaugurado pela então prefeita Luiza Erundina no início da década de 1990. Contudo, a partir dos anos 2000, parte da população e de associações locais pediram à Prefeitura que fosse construído um CEU no local, o que dividiu a comunidade por conta da perda do campo enquanto espaço de lazer.

Mas cabe aprofundar um caso específico, o CEU Jambeiro, para compreender o conjunto complexo de relações entre as unidades educacionais e os campos de futebol, principalmente a partir das narrativas de certos agentes varzeanos,

CEU Jambeiro: Campo do Botafogo de Guaianases

Nas narrativas dos moradores sobre os campos de futebol varzeano em Guaianases, bairro da zona leste de São Paulo, aparece a transformação do espaço de “mato” em “bairro”, em um período de abundância de espaços para a prática do esporte até a década de 1950. Diversos clubes conseguiram um campo por meio da doação de terrenos ou apropriação do espaço público, até então pouco controlado, tendo em vista a recente e incipiente urbanização da região. 

Contudo, nas décadas seguintes, a dificuldade para encontrar e estabelecer um espaço para a prática num cenário de disputas pelo espaço urbano do bairro era algo recorrente no futebol varzeano de Guaianases. Conforme a cidade passava por inúmeras transformações na ocupação de seu espaço – investimentos imobiliários, construção de moradias populares, reformulação da malha viária urbana etc. –, o futebol de várzea perdia campos e sedes – seus lugares de pertencimento. Era difícil para um clube se manter sem um campo de futebol. Vários clubes do bairro encerraram suas atividades após perderem seus campos de futebol, retomados pelos proprietários ou por setores do poder público, enquanto outros clubes desafiam até hoje o conjunto de transformações que, de forma contínua, alimenta o processo de urbanização paulistano. Por isso, o cenário dos campos de várzea em Guaianases continua marcado pela intensa disputa por territórios. Poucos são clubes proprietários dos campos (e terrenos) onde jogam. Outros clubes não possuem campo e têm que pagar determinadas quantias para atuar em outros espaços do bairro. 

A trajetória do Botafogo de Guaianases, assim como as de outras agremiações varzeanas, é marcada por trocas contínuas de campos de futebol. O Botafogo teve que migrar algumas vezes. O terreno do primeiro campo foi desapropriado, fazendo com que o Botafogo alugasse horários mensais ou circulasse pela várzea, atuando sempre como visitante. Durante alguns anos, na década de 1990, o Botafogo utilizou o campo do Brasil Futebol Clube. Em 2000, o Botafogo apropriou-se de um terreno em uma área próxima à estação Guaianases. Com a ajuda de empresários, comerciantes, políticos e pessoas próximas à agremiação, foi possível utilizar algumas máquinas emprestadas e nivelar o terreno para a formação de um campo de futebol. Em acordo legal com o proprietário do terreno, o uso da área foi liberado para a agremiação e registrado em cartório. Com a autorização em mãos, o clube passou a sediar suas partidas e reunir recursos para a construção de vestiários no local.

Contudo, logo após a conclusão das obras do campo e vestiários, os agremiados do Botafogo foram surpreendidos com o projeto de construção do CEU Jambeiro no mesmo terreno, pois o antigo proprietário o havia vendido à Secretaria Municipal de Educação (SME) da Prefeitura Municipal de São Paulo. Após muitas negociações, foi acordado que o campo de futebol permaneceria na extensão do terreno, mas em outro local. O campo foi cedido temporariamente ao Grêmio Botafogo, porém a área continuava vinculada à unidade educacional e à Prefeitura. Assim, apesar do material perdido na construção dos vestiários, o uso do terreno foi assegurado. Sua integração à estrutura de lazer do CEU foi sugerida à época, mas o time rapidamente descartou essa opção, mantendo uma relativa autonomia na gestão do campo. Como o terreno é propriedade da SME, qualquer projeto de mudança ou reforma ganha dimensão oficial e tem de enfrentar toda uma burocracia (a venda de alimento ou bebida alcoólica, por exemplo, passou a ser proibida no local).

Em outubro de 2011 surgiu mais um capítulo dessa longa e conturbada relação: seguindo uma política que vinha sendo adotada para todo o município,6 foi anunciado que o campo do Botafogo seria interditado para a instalação do gramado sintético. A reforma do campo e a troca para grama sintética se tornaram a grande novidade entre os varzeanos do Botafogo e de outros clubes durante o primeiro semestre de 2012. Planejada para durar quatro meses entre novembro de 2011 e fevereiro de 2012, a reforma teve seu prazo de conclusão continuamente adiado. Tal reforma incluía, segundo um dos engenheiros da obra, um longo processo de obras de preparo da terra, drenagem e implantação da grama sintética. Depois, concluíram os trabalhos de drenagem e impermeabilização do solo. Em seguida, colocaram os tapetes de grama sintética. Quando a diretoria do Botafogo pensou que a obra estava próxima de ser finalizada, na outra semana funcionários utilizaram toneladas de areia fina para a acomodação da grama. Por fim, para deixar o campo mais macio, espalharam pelo campo uma camada de borracha triturada. Enfim, o campo foi inaugurado no mês de maio, quando o Botafogo e o bairro de Guaianases comemoram aniversário.

Guaianases
Três etapas da reforma do campo do Botafogo de Guaianases. Fotos: Enrico Spaggiari

O atraso na entrega do campo não foi, contudo, a maior surpresa que a diretoria do Botafogo teve no primeiro semestre de 2012. Ao longo da reforma, a diretoria do Botafogo foi notificada que o campo seria incorporado ao CEU Jambeiro como equipamento esportivo municipal da Prefeitura de São Paulo. Os gestores do CEU Jambeiro decidiram rever o acordo selado em 2003, pois o gramado sintético agora permitiria o uso do campo para as atividades de Educação Física dos alunos do CEU. Entre o início e término das obras houve uma longa jornada de reuniões e conversas informais, envolvendo dirigentes do Botafogo, representantes do CEU e da diretoria de educação da Subprefeitura de Guaianases. Ainda durante o período em que o campo esteve em reforma para a instalação da grama sintética, o CEU redefiniu a área de cercamento da unidade educacional, incluindo o campo no perímetro de gradeamento. O nome oficial passou a ser Campo CEU Jambeiro/Botafogo e novas regras de uso foram estabelecidas, como controlar o acesso ao estacionamento e proibir qualquer atividade comercial na área dos campos (especialmente a venda de bebidas alcoólicas).7

A diretoria do clube procurou evitar novos atritos com os gestores do CEU Jambeiro nos últimos meses daquele ano. Ao contrário, nas reuniões comunitárias e eventos que se seguiram, membros do clube reforçaram os pedidos de agradecimento aos projetos e ações que a unidade educacional apoiou desde sua criação, em 2003. Em novembro de 2012 o campo CEU Jambeiro/Botafogo foi oficialmente inaugurado, com a visita do prefeito Gilberto Kassab, a diretoria do clube divulgou um comunicado de agradecimento à Prefeitura e à Secretaria de Educação pelas reformas dos campos e vestiários, pelo sistema de iluminação e por implantar o gramado sintético.

Atualmente, o Botafogo é o responsável pela gestão do espaço em parceria com o CEU Jambeiro, que tem utilizado os campos para atividades de Educação Física de estudantes da Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) do CEU. Embora não seja “dono do campo”, o Botafogo tem autonomia para definir e controlar os horários de um campo que os varzeanos continuam a chamar de “campo do Botafogo”.

***** 

O próximo texto da série irá debater formas e particularidades da representação de memórias e registros de narrativas do futebol varzeano da cidade de São Paulo, expressas por meio de objetos tangíveis e intangíveis, presentes tanto em locais de prática do esporte quanto em acervos particulares e de instituições diversas.

Notas

1 https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/esportes/menu/index.php?p=263447 . Acesso em 18/12/2021.

2 Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/esportes/noticias/?p=214301 e http://www.capital.sp.gov.br/noticia/centros-esportivos-de-sao-paulo-completam-35-anos. Acesso em 22/12/2021.

3 O Clube Escola fez parte de um programa da prefeitura do município de São Paulo criado em 2007. Tratava-se de atividades de extensão escolar, voltada para os alunos da rede pública de ensino. Ao aproveitar a malha de equipamentos esportivos já existentes na cidade, diferentes programas esportivos e culturais são oferecidos, pelo poder público, gratuitamente à população, dentre eles, o ensino do futebol. De acordo com os dados disponibilizados pela prefeitura em 2012, o programa chegou a atender à época 230 mil usuários em 100 lugares da cidade. Faziam parte do Clube Escola todos os CDCs e Centros Esportivos.

5 Levantamento a partir dos dados coletados para o Projeto CEUs, Memórias e Ação, realizado pela Coordenadoria dos CEUs e Educação Integral (COCEU) da Secretaria Municipal de Educação (SME), que teve como objetivo fomentar, junto aos Centros Educacionais Unificados (CEUs), reflexões acerca de suas memórias e patrimônio cultural.

6 Vários campos em São Paulo foram reformados e equipados com grama sintética nos últimos quatro anos. Por meio do investimento da Prefeitura, com apoio de vereadores e deputados – principalmente do vereador Dalton Silvano (PV) –, responsáveis por diversas emendas para instalação de grama sintética, mais de trezentos campos de várzea foram reformados em São Paulo durante a gestão de Gilberto Kassab (PSD). O conjunto de reformas de campos e implantação de grama sintética, adotadas a partir de 2007, teve início com as reformas de campos dos Clubes-Escolas e Clubes da Comunidade (CDCs), e posteriormente foi ampliado a outras praças esportivas, como os campos do Botafogo e Codó, em Guaianases.

7 Somente em 2013, em um novo cenário de negociações com o gestor do CEU, é que o clube voltou a montar a barraca na área próxima ao campo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Enrico Spaggiari

Mestre e doutor em Antropologia Social pela USP.Fundador e editor do Ludopédio.

Alberto Luiz dos Santos

Doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP). Membro da Rede Paulista de Educação Patrimonial (REPEP) e do Grupo de Pesquisa Patrimônio, Espaço e Memória, vinculado ao Labur/FFLCH/USP (CNPq). Possui produção acadêmica voltada às área de Geografia Urbana e Patrimônio Cultural, desde 2012, com enfoque nas referências culturais vinculadas ao futebol de várzea, após 2016. 

Aira F. Bonfim

Mestre em História pela FGV com pesquisas dedicadas à história social do futebol praticado pelas brasileiras da introdução à proibição (1915-1941). É produtora, artista-educadora e por 7 anos esteve como técnica pesquisadora do Museu do Futebol. O futebol de várzea, os  debate sobre patrimônios e mais recentemente o boxe e o circo, são alguns temas em constante flerte... 

Como citar

SPAGGIARI, Enrico; SANTOS, Alberto Luiz dos; BONFIM, Aira F.. Equipamentos públicos esportivos: formas de organização e de ação coletiva. Ludopédio, São Paulo, v. 175, n. 26, 2024.
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