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Esboços antropológicos sobre torcidas organizadas

Fabio Perina 29 de junho de 2023

Coelho (2016), em seu livro sintomático cujo título é “Deixa os garotos brincar”, fornece grandes contribuições ao apontar como fio condutor o resgate da comunhão coletiva como a dinâmica geral da torcida organizada. Em minhas palavras, uma espécie de “elo perdido” de práticas e valores pré-modernos em plenos tempos modernos. Entendendo-as como “(…) laboratório rico para perceber o quanto elementos tão antigos de nossa psique seguem atuantes no homem dito civilizado” (COELHO, 2016, p. 276). Em outras palavras, é a tendência que as diferenças individuais que cada torcedor traz de sua vida cotidiana passem a ser diluídas dentro delas. E com isso as semelhanças se potencializam para buscar formar um grupo homogêneo. Ele vincula seu estudo de campo com conceitos clássicos da antropologia: quanto ao totemismo e ao pensamento selvagem (LEVI-STRAUSS, 1986; 1989) e quanto ao drama e à liminariedade (TURNER, 1974).

A seleção dos conceitos listados se justifica por possuírem as vantagens de abordar mecanismos recorrentes que organizam ao mesmo tempo significados e posições sociais envolvidas nas torcidas organizadas em seu contexto mais amplo transbordando o jogo esportivo formal: no tempo para além dos 90 minutos durante uma partida de futebol e no espaço para além de dentro do estádio.

O clubismo é uma forma de totemismo moderno. Pois cada indivíduo tem a liberdade para escolher o clube, mas ainda assim não tem liberdade para definir as regras coletivamente construídas de afinidade e rivalidade entre os demais clubes. Há uma forma de totemismo nas torcidas organizadas pela busca simbólica de restituir um vínculo do homem com um animal e marcar um ponto de comunhão aos semelhantes e de afastamento dos rivais. Em tal processo, os opostos por assim dizer constituem-se uns aos outros e são mutuamente indispensáveis.

Diferente dos outros sistemas de classificação que são sobretudo concebidos (como os mitos) ou postos em ação (como os ritos), o totemismo é quase sempre vivido, ou seja, ele adere a grupos concretos e a indivíduos concretos, porque é um sistema hereditário de classificação (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 258).

O que é convergente com Levi-Strauss (1986) quando ele apresenta uma contribuição ao totemismo para além de pares binários que se separam, mas também dois ou mais elementos que se agregam em múltiplas configurações. Ora, não se pode compreender o totemismo sem esquecer que no mundo e no pensamento selvagem a distinção homem-animal, diferente do paradigma moderno, é quase imperceptível.

Também abordo o drama social através das duas grandes contribuições de Coelho (2016). Primeiro, pois permite refletir, embora implicitamente, quanto ao pensamento selvagem no contexto das torcidas organizadas na medida em que para seus membros é pouco comum elaborarem uma justificação consciente de seus atos e sequer de seu pertencimento a elas. Segundo, o autor também permite refletir implicitamente sobre a noção de totemismo quanto aos símbolos de uma torcida organizadas venerados por seus membros. Remetendo a força e a algo divino ou monstruoso, como uma forma de tentar restituir o vínculo humano com outros seres ao invés de deles se separar.

A torcida organizada surge na liminaridade da estrutura. Embora também cria seu próprio sistema de classificação particular como uma espécie de “suspensão” momentânea e simbólica dos torcedores de sua realidade ordinária ao entrarem em uma torcida organizada. “Certo é que nenhuma sociedade pode funcionar adequadamente sem esta dialética” (TURNER, 1974, p. 157).

Torcida
Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo

Estudos de casos

Deixando mais claro todo o dinamismo dos sistemas simbólicos de alianças e rivalidades, cuja estruturação mais importante na região Sudeste é entre a União Dedo para o Alto (DPA) contra a União Punho Colado (UPC). A tendência ‘ideal’ é que cada uma tenha apenas um representante por estado. As principais torcidas organizadas da DPA são: Mancha Verde do Palmeiras-SP, Força Jovem do Vasco-RJ e Galoucura do Atlético-MG. Já as principais torcidas organizadas da UPC são: Independente do São Paulo-SP, Jovem do Flamengo-RJ e Máfia Azul do Cruzeiro-MG. Tendência chamada de ‘ideal’, pois a partir de então surgem atritos que desafiam sua coerência. Vide o caso complexo de torcidas organizadas do Botafogo-RJ em redes de aliados distintos: a Jovem do Botafogo ser aliada da Mancha Verde enquanto a Fúria ser aliada da Gaviões do Corinthians-SP.

Notar que para as organizadas de Campinas-SP, como Jovem da Ponte e Fúria do Guarani, é muito clara a demonstração da lógica mais estável: o elemento do distanciamento espacial é inversamente proporcional ao distanciamento simbólico. Pois seus clubes possuem estádios fisicamente muito próximos em menos de um quilômetro, porém suas organizadas são expressamente interditadas de se aliarem com outras da capital paulista.

Sobretudo ao se levar em conta a região Nordeste, emerge um sistema muito singular de alianças envolvendo todas as capitais, como alguns dos exemplos de Recife e Fortaleza a seguir: Inferno Coral do Santa Cruz-PE e TUF do Fortaleza-CE no “Lado A” e Fanáutico do Náutico-PE e Cearamor do Ceará-CE no “Lado B”. Ao envolver mais cidades, esse sistema se torna ainda mais instável. Vide uma outra torcida organizada do Fortaleza, a JGT, não seguir a aliança da TUF com a Inferno, mas sim se aliar com a Jovem do Sport, sua rival.

O que torna o sistema ainda mais instável é que com o passar dos anos algumas torcidas organizadas mudaram de lado por diversos motivos e também passaram a se misturar com o outro sistema nacional DPA e UPC já citado. Por exemplo, a Mancha Verde ao mesmo tempo é aliada da Inferno Coral no “Lado A” e da Cearamor no “Lado B”. Além de outra contingência histórica pela qual um torcedor pode em toda sua trajetória de vida pertencer a duas torcidas organizadas de um mesmo clube (embora não ao mesmo tempo), assim como a possibilidade dele ao mudar de cidade ser acolhido pela torcida organizada aliada e a ela pertencer também.

Em suma, a articulação de conceitos e estudos de casos mostra que lidar com uma estrutura binária para o tema é insuficiente diante de dinâmicas históricas complexas, seja para as torcidas coletivamente e para os torcedores individualmente. O que inclusive remete a um instigante e polêmico tema antropológico de considerar esses grupos como possíveis “tribos urbanas”. Apesar da intenção de enfatizar seus elementos pré-modernos, é um termo insuficiente pela desvantagem de sugerir uma fixação territorial muito rígida, desconsiderando dinâmicas históricas de torcidas e torcedores em parte conservando costumes e espaços e em parte os ressignificando. Os exemplos cotidianos de partidas como visitantes são claros de levarem seus cantos, símbolos e cores e diversos espaços.

Por fim, após desenvolver ao longo do livro essas contradições entre o pré-moderno e o moderno, Coelho o encerra com a contradição ainda maior que é a condição pós-moderna das novas arenas nas quais o excesso de cadeiras leva a um déficit de comunhão coletiva de energias e significados entre os torcedores. O que escancara ainda mais o enigma da incompreensão racional de suas práticas e valores tão singulares. Sendo mais “cômodo” aos sujeitos dominantes do futebol simplesmente excluir ao invés de tentar compreender.

Referências Bibliográficas

COELHO, G. Deixa os garotos brincar. Rio de Janeiro: Multifoco, 2016.

LÉVI-STRAUSS, C. Totemismo Hoje. Lisboa: Edições 70, 1986.

LÉVI-STRAUSS, C. “A ciência do concreto” In: Pensamento Selvagem. Campinas, Papirus, 1989.

TURNER, V. “Liminaridade e Communitas” In: Processo ritual: estrutura e anti-estrutura, Petrópolis, Vozes, 1974.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Esboços antropológicos sobre torcidas organizadas. Ludopédio, São Paulo, v. 168, n. 29, 2023.
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