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Escalafobets: futebol, apostas, tramoias e um outro torcer em jogo

“O Brasil é um país em que se torce muito pelo futebol. E com a popularização das apostas esportivas, agora se torce e se aposta também”: essa fala é de Magno José, presidente do Instituto Brasileiro Jogo Legal (IJL)[1]. A mania de apostas que assolou o país nos últimos anos tem no futebol uma espécie de carro-chefe atrator para as milhões de pessoas que se envolvem neste universo.

No entanto, embora possa parecer uma novidade (certamente a novidade está no alcance hiperbólico da espetacularização do jogo, permitida notadamente pelo incremento das tecnologias comunicacionais), o ato de apostar há muito se faz presente no ambiente esportivo. No sentido moderno, o nascedouro das apostas esportivas é disputado por ingleses e franceses, ambos em disputas de cavalos no século XVII (os franceses inclusive apresentam uma data para o início do processo de apostas em páreos: 15 de maio de 1651, no Bois de Boulogne).

No Brasil, essa prática pode ser localizada historicamente no século XIX, mais precisamente em 1822, com as corridas de cavalo sendo apresentadas à população. No Rio de Janeiro, a popularidade era tão grande que chegava a gerar receita para o governo do estado, fazendo com que em 1854 fosse fundado o Jockey Club do Rio de Janeiro, onde a classe média/alta apostava e se divertia durante os finais de semana.

Já no futebol, é possível localizar referências a apostas logo no princípio do século XX. No periódico Minas Geraes, em sua edição de 01 de junho de 1930, lia-se:

Sim, é hoje. Data historica. O maior dia deste anno. Gente vibrando de enthusiasmo puro. E outros misturando enthusiasmo com ambição. Grandes apostas no Athletico e no Palestra. Segunda-feira, novos ricos. E sujeitos tristes, exactamente como aquelles que gastam tudo no Carnaval. Shoot valendo dinheiro. Apostas de contos de réis. Mas si o jogador fôr profissional, campanha contra elle. Que importa! São os apostadores que animam o jogo com as brigas.[2]

Fazia-se de tudo na torcida pelo time predileto, ainda mais quando esta “torcida” valia alguns milhares de réis. Estar presente em campo, gritando e vibrando (ou brigando, como indicava a nota acima) com o desenrolar do jogo, nem sempre era suficiente para garantir a conquista da vitória. Os casos de “ajuda espiritual” surgiam como recurso de incentivo, principalmente quando as apostas em dinheiro se associavam ao torcer. O periódico Goal apresentava uma matéria intitulada “Macumba”, que bem ilustrava a situação apontada. Nela, o texto traz à tona reveladores e importantes hábitos constituídos pelos torcedores, nos anos finais da década de 1920:

Os torcedores do Palestra e do Athletico fizeram apostas a semana inteira. Dentro dos cafés, muita gente sonhou com a victoria do club e com melhores planos de restauração financeira. Essa grande agitação foi principalmente notada pelas agencias de loterias, prejudicadas com o grande interesse despertado pelo jogo de domingo. Ganhar dinheiro torcendo, é muito mais agradavel do que esperar que as bolinhas cahiam com o numero. A semana foi péssima para os cambistas. […] Emquanto o pessoal casava os cobres aqui na Avenida, Braulino, o mais inspirado e subtil dos apostadores, embarcou para Matheus Leme. Queria que um velho feiticeiro garantisse a victoria que elle, cheio de enthusiasmo, já desejára ao Athletico, apostando nelle mais de quinhentos mil réis. E Braulino ouviu surprehendido, esta resposta: – Ê moço, ocê veio tarde. Já teve aqui o sr. Hugo Savassi, que me pediu p’ra pôr os pausinhos p’ro Palestra ganha.[3]

De lá para cá muita coisa mudou. A proibição dos jogos de azar no Brasil foi estabelecida por força do Decreto-Lei 9 215, de 30 de abril de 1946, assinado pelo presidente Eurico Gaspar Dutra sob o argumento de que o jogo é degradante para o ser humano. 75 anos depois, a Internet causaria uma revolução no processo de apostas (em especial de apostas esportivas). Atualmente os sites de apostas operam legalmente no Brasil, graças à Lei 13.756/18, assinada pelo então presidente (sic) da República Michel Temer, que torna legais a atividade de casas de apostas esportivas no Brasil, desde que sejam virtuais e que as empresas e os sites não estejam registradas e hospedados, respectivamente, em território nacional.

Apostas futebol
Uma pessoa manipula um celular em um site de apostas esportivas. Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Isso provocou (e vem provocando) uma enxurrada de empresas que atuam no ramo das apostas esportivas virtuais: as chamadas “bets”[4]. Estimativa do site especializado BNL Data é que o mercado já conta com mil “bets” ativos no Brasil, um número que não para de crescer de 2017 para cá.

Por óbvio que o futebol seria o terreno fértil para que estas empresas investissem seu capital. Dos 124 times que disputam alguma divisão nacional em 2023, 69,4% têm patrocínio de plataformas de apostas. Desses, 33,9% são patrocínios masters, ocupando o espaço mais nobre da camisa dos times. A Série A conta com uma exceção: o Cuiabá iniciou o campeonato sem dinheiro de apostas. No entanto, os outros 19 clubes têm contratos com empresas do setor. E 55% dos patrocínios masters da elite do Brasil vêm do ramo de apostas.

Todo este cenário apontado pode remeter a uma constatação simplista, se não olharmos com mais cuidado: se é legal, qual o problema? Duas considerações aqui merecem destaque crítico: a manipulação dos resultados e das possibilidades de apostas (como número de escanteios e cartões, por exemplo). Uma investigação realizada a partir do segundo semestre de 2022 já comprovou a existência deste tipo de ação por parte de grupos que aliciam os sujeitos envolvidos nos jogos.

Isso já bastaria para que víssemos com bastante desconfiança o fenômeno dos sites de apostas atuando com tanta força nos meandros do futebol brasileiro. No entanto, existe uma outra questão tão grave quanto e menos discutida e percebida: a subversão do torcer. Em que mundo seria possível ver um atleticano torcendo por um gol do Cruzeiro, senão quando este gol pode render algum lucro financeiro? Certamente os torcedores mais fanáticos (salve, Giulianotti) não devem apostar em seus rivais, mas não temos dúvida que a dinâmica de apostas altera radicalmente a dinâmica do torcer.

Uma das principais razões pelas quais as pessoas se envolvem nas apostas esportivas é a emoção adicional que isso traz aos jogos de futebol. Apostar em um determinado resultado pode intensificar o interesse e a torcida por um determinado tempo, tornando cada lance mais emocionante. No entanto, as apostas podem acabar se sobrepondo ao pertencimento clubístico.

Loteca
Loteca, suplemento técnico, Manchete Esportiva. Fonte: reprodução/estiloantigo.com.br

A antiga Loteca[5] (sim, ela ainda existe, embora sem o charme e a atração de outrora) parece ter evoluído para algo incontrolável: hoje aposta-se em absolutamente tudo numa partida de futebol. Não há zebrinha que resista!! Indubitavelmente vivemos um novo tempo no futebol, em muitos sentidos. Em 160 anos de história, o esporte bretão vem se reinventando permanentemente. O ramo de apostas parece entender essas ressignificações, e alcança status tentacular com a crescente mercantilização, espetacularização e virtualização. O que o século XXI nos reserva neste sentido? O que você aposta?

Notas

[1] O Instituto Brasileiro Jogo Legal – IJL é uma Organização Não Governamental – ONG, que tem por finalidade produzir e estimular estudos e pesquisas sobre jogos, loterias, concursos de prognósticos, sorteios e entretenimento, além de fomentar a legalização e a criação de um marco regulatório para estas atividades em colaboração com os poderes públicos competentes. (Texto informado pelo site da Instituição)

[2] MINAS Geraes. Belo Horizonte, 01jun.1930. Seção Desportos, p. 12.

[3] GOAL. Belo Horizonte, p. 3, 02 jun. 1930.

[4] A palavra “bet” é uma gíria que significa “aposta”. É amplamente utilizada em sites de apostas porque é um termo simples e direto que transmite o conceito de apostar. Além disso, a palavra “bet” também é um termo comumente usado em outros contextos para descrever ações semelhantes, como “colocar uma aposta” ou “fazer uma aposta”.

[5] A Loteca, antigamente denominada Loteria Esportiva, é uma modalidade de loteria brasileira, mantida pela Caixa Econômica Federal, com o objetivo de prognosticar resultados de partidas de futebol.

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Georgino Jorge Souza Neto

Mestre e Doutor em Lazer pela UFMG. Professor da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). Membro do Grupo de Estudos Sobre Futebol e Torcidas/GEFuT-UFMG. Membro do Laboratório de Estudo, Pesquisa e Extensão do Lazer/LUDENS-UNIMONTES. Membro do Observatório do Futebol e do Torcer/UNIMONTES. Torcedor do Galo...

Júnio Matheus da Silva Cruz

Mestrando em Desenvolvimento Social na UNIMONTES. Graduado em Economia, Administração e Gestão Pública. Observatório do Futebol e do Torcer da Unimontes e Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT) da UFMG.Um Pesquisador com vergonha na cara porque sabe que um Cientista que nunca gastou a calça na arquibancada de um Estádio, não tem condições de avaliar o Povo Brasileiro.

Como citar

SOUZA NETO, Georgino Jorge de; CRUZ, Júnio Matheus da Silva. Escalafobets: futebol, apostas, tramoias e um outro torcer em jogo. Ludopédio, São Paulo, v. 169, n. 10, 2023.
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