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Estádios – uma casa de todos?

Quando entramos na arquibancada de um estádio de futebol, repleta de torcidas organizadas, e trazemos essa vivência para a academia, algumas questões precisam ser problematizadas. Quando comecei a minha pesquisa de mestrado – Futebol de Mulheres: um estudo feminista nos campos e nas arquibancadas de João Pessoa/PB -, na qual eu estudei algumas torcidas organizadas do Botafogo-PB, encaixei na minha dissertação um tópico sobre o Estádio Almeidão, na capital paraibana. Eu indicava ali que o Estádio José Américo de Almeida Filho era onde homens e mulheres se reuniam com todos os julgamentos deixados do lado de fora. Não havia questionamento. Com o amadurecimento da pesquisa, veio a interrogação. Uma casa de todos? Mesmo? A realidade venceu a imaturidade. 

Estádio Almeidão
Estádio Almeidão. Foto: Divulgação

Originalmente, o Estádio Almeidão  tem capacidade para 45 mil pessoas, mas o seu maior público foi em 1998 em um jogo entre Botafogo-PB e Campinense, quando o local acomodou pouco mais de 44 mil pessoas. Isso significa que a diversidade encontrada no local pode ser enorme e que, além das torcidas organizadas, outros tipos de torcedores também frequentam o estádio. Um dos focos da minha pesquisa foram as mulheres diretoras de torcida organizada e, a partir do momento que estão inseridas na arquibancada, não fazem parte apenas de uma única torcida organizada, mas integram toda uma torcida, grande e diversa, de um time de futebol. Dessa forma, o preconceito vem de dentro e de fora da “organizada”. Ele está em todas as classes e gêneros. Para entender melhor como se dá essa confluência de relações, discuto um pouco sobre sociabilidade, sociação e conflito. 

Para tanto, é importante compreender, de início, a noção de sociabilidade, já que o futebol tem essa dimensão social. O termo é um dos mais usados no campo das ciências sociais, por isso, apresenta conceituações diversas. Para Gurvicht, segundo González (2007), sociabilidade pode ser compreendida como as maneiras que as pessoas estão vinculadas ao todo e, ao mesmo tempo, como se manifestam, como se combinam ou se combatem dentro de um grupo. A partir disso, ele estuda que cada grupo, dentro da sua sociabilidade, representa um macro ou microcosmo dentro do que é a sociedade em geral com suas manifestações de sociabilidades. E é isso que forma uma torcida, ou melhor, é desse modo que podemos enxergar uma torcida dentro de uma sociedade, com seu exercício de sociabilidade. 

Gosto, no entanto, e acho que cabe de forma mais concreta ao futebol, da noção de sociabilidade aplicada pelo sociólogo Georg Simmel (1983, p. 166), que define sociabilidade como a forma lúdica da sociação, isto é, a interação tem mais relevância quando faz relação ao seu conteúdo. A sociação, portanto, “é a forma (realizada de incontáveis maneiras diferentes) pela qual os indivíduos se agrupam em unidades que satisfazem seus interesses”. Portanto, para o autor, a sociabilidade seria essa interação que existe e que é necessário – no ponto de vista dele – para que a sociedade seja capaz também de existir. É estar com o outro, para um outro ou até contra um outro. O que é a torcida, se não essa mistura entre amizades, doações e rivalidades?

Na sociação que Simmel (1983) chama de especial nada mais é que a sua forma lúdica. Nesse momento de interação, a única coisa que importa aos atores sociais é o momento do encontro. Existe uma motivação e um interesse pelo encontro. Para alcançar essa forma lúdica da sociação, que para Simmel é a sociabilidade, as pessoas precisam se desfazer de expectativas, pretensões e objetivos no momento da interação. O encontro é o que importa de fato. O lúdico, para o autor, é tão fundamental para a sociabilidade, que pode ser visto como uma fuga da realidade. O futebol pode vir a explicar também essa questão, a partir do momento em que é tido, para muitos, com uma espécie de alienação ou de relação específica sobre determinado tema. Fugindo da realidade e tendo o jogo como encontro, o que se espera em uma arquibancada para uma torcida organizada é o encontro e o foco do grupo está nessa questão. É claro que o objetivo também é mover o time a vencer a partida, mas sem o encontro, esse movimento não existe.

Na sociabilidade de Simmel, para que não haja conflito, é importante se reconhecer no outro. O conflito, aqui, ainda conforme Simmel, é importante destacar, é entendido por transformar grupos de interesse, modificar organizações. Para que haja conflito, é necessário que haja, portanto, a presença de um outro indivíduo. Ao mesmo tempo, o conflito também pode ser entendido como uma forma de sociação, a partir do momento que se tenta buscar “uma maneira de conseguir algum tipo de unidade, mesmo que seja através da aniquilação de uma das partes em litígio” (2011, p. 568). O que quero dizer é que o conflito tratado por Simmel impulsiona o interesse e a motivação das pessoas. É um aspecto sociável, digamos assim. O conflito pode, inclusive, desenvolver a sociabilidade, mas a partir do momento em que os conflitos forem negociáveis. 

Em torcidas organizadas, esse assunto é bastante complexo. Em muitos estados, são grupos que torcem pelo mesmo clube, mas ao mesmo tempo apresentam alguma rivalidade entre elas. Embora atinjam, nos seus espaços, seus níveis de sociação e sociabilidade entre si, quando são analisadas em conjunto, o conflito não consegue ser visto como uma forma de desenvolvimento da sociabilidade entre as duas, porque não são, na maioria das vezes, negociáveis. É o que acontece, também, com as chamadas “torcidas rivais”. O conflito entre as duas torcidas nega que possa existir uma unidade entre elas. É preciso entender, no entanto, que se trata de diferenças estruturais, culturais e também de tensões que são, de certa forma, históricas – questões que também precisam ser levadas em consideração. Todas essas discussões estão intimamente ligadas ao que é o Estádio Almeidão e a sua dinâmica, a como os conflitos, diferenças e estrutura social interferem nas relações sociais existentes no local.

Além disso, a união por um mesmo objetivo, que é um time, não retira da torcida como um todo o machismo carregado historicamente, principalmente entre os homens. Não há empatia ou respeito em toda a extensão da arquibancada. Por mais que passe a impressão de um ambiente democrático, o estádio de futebol ainda é um antro de palavras grosseiras e misóginas contra mulheres que buscam se expressar de alguma forma. A unificação de uma torcida em favor de um mesmo time, infelizmente, não conduz para um mesmo caminho de direitos iguais. Enquanto fiz pesquisa de campo presenciei diversas reações de homens a xingamentos de mulheres contra jogadores, comissão técnica e quem mais demonstrasse não estar fazendo a coisa certa. Para eles, uma vergonha. Se houvesse críticas em voz alta por parte deles, era fácil escutar: “só podia ser mulher, não entende nada de futebol”. Sem falar, claro, dos assédios e olhares vulgares para os corpos que escolheram estar ali, mas jamais pediram para ser julgados. Portanto, embora os estádios de futebol sejam espaços que, teoricamente, acomoda a diversidade em prol de um bem comum, na prática ainda há muito o que se avançar. Entre torcidas organizadas, entre torcedores avulsos, os estádios de futebol são apenas reflexos de uma sociedade patriarcal ensinada a entregar o futebol apenas para homens. 

Referências

GONZÁLEZ, F. J. Sociabilidades e práticas corporais: leitura de uma relação. In: STIGGER, M. P.; GONZÁLEZ, F. J.; SILVEIRA, R. (org.). O esporte na cidade: estudos etnográficos sobre sociabilidades esportivas em espaços urbanos. 2. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007.

SIMMEL, G. O conflito como sociação. (Tradução de Mauro Guilherme Pinheiro Koury). Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 10, n. 30, pp. 568-573, 2011.

SIMMEL, G. Sociabilidade: um exemplo de sociologia pura ou formal. In: MORAES, E. (org.). Sociologia: Simmel. São Paulo: Ática, 1983.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Ana Daniella Fechine

Paraíba, feminista e peladeira. Formada em Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e mestrando em Antropologia pela mesma instituição. Atualmente, pesquisadora de futebol e gênero, integrante do grupo de pesquisa ReNEme e do Guetu (UFPB).

Como citar

FECHINE, Ana Daniella. Estádios – uma casa de todos?. Ludopédio, São Paulo, v. 149, n. 3, 2021.
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