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Explicando o homoerotismo presente no futebol

Wagner Xavier de Camargo 17 de maio de 2020

Nesta semana, um fato relativo à sexualidade no mundo do futebol ganhou noticiário nacional: vazou um vídeo de WhatsApp com imagens de dois homens envolvidos numa relação sexual, um dos quais possuía uma tatuagem representativa da Garra Alvinegra, a maior torcida organizada do Rio Grande do Norte. O incômodo foi tão grande que a torcida usou, imediatamente, seu perfil no Instagram para expulsar o membro-torcedor de nome “Fernando”.

A diretoria, por meio desta “nota oficial” chamou o episódio de “escândalo”, disse não aceitar em “hipótese nenhuma” a vinculação dele à torcida, e que determinava a “expulsão imediata e permanente” do torcedor. Ainda mencionou, ironicamente, que se o “lado vermelho” (em alusão ao América, rival do ABC F.C.) admitisse tal comportamento, ela própria tomava-o de modo diferente.

Garra Alvinegra – Nota de expulsão. Foto: Reprodução.

Segui o assunto durante boa parte do dia e percebi, com satisfação, que houve grandes repercussões. Inclusive, foi publicada uma nota de repúdio do Coletivo Nacional de Torcidas LGBTQ “Canarinhos Arco-Íris”, condenando a expulsão e acusando a Garra de homofobia, explicando também que é inadmissível alguém ser expulso de uma torcida por conta de sua orientação sexual. Tal nota chegou a ser divulgada junto aos associados da Aliança Nacional LGBTI+, entidade que luta por igualdade de direitos de pessoas autodesignadas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, intersexo e demais, em território nacional.

Digo que observei tudo “com satisfação”, pois com a escalada de estupidezes diárias proferidas pelo senhor que se encontra na presidência da República e pelo que tenho passado, cotidianamente, em supermercados, bancos e em meu próprio condomínio com pessoas que perderam qualquer senso de ridículo e mesmo noções mais básicas de civilidade, a repercussão negativa provocou um recuo da torcida organizada do time ABC F.C., que veio a público se justificar culpando a “pornografia dos atos” e sua “vinculação à marca”.

Uma primeira questão que gostaria de levantar é que, independente da relação sexual entre dois homens, o futebol está repleto de afetividade entre pares (homens, mas também mulheres). Isso o caracteriza como um lugar altamente homossocial, o que não quer dizer, necessariamente, que tal aspecto possa desembocar em contato íntimo (e sexual) entre indivíduos.

A afetividade desenvolvida na relação do torcer junto, assistir a jogos, bater uma bola ou partilhar sentimentos de amor à camisa e ao clube pode ser homossocial, mas não exatamente homossexual. Claro que pode vir a ser, obviamente. Para minhas pesquisas sobre a temática de gênero e sexualidade no esporte, eu mesmo entrevistei homens que mantinham relações sexuais com outros homens (e mesmo com mulheres) e que fetichizavam o futebol, tornando a modalidade o centro de seus desejos fluidos, independentemente de quais corpos sexuais a praticassem. De um espectro homossexual, num extremo, ao heterossexual em outro, oscilavam pela bissexualidade com tranquilidade e mantinham os desejos focados no futebol.

São formas de se relacionar, amar, viver e sentir o outro que começam a emergir, tendo o esporte como pivô das histórias. O futebol, da arquibancada ou do gramado, no jogo ou no banco, dentro ou atrás do gol, no vestiário ou na ducha, da televisão ou do bar, estabelece uma conexão entre corpos. O futebol é uma forma de amar em conjunto, entre iguais, e, nesse sentido, é homo-orientado.

O comercial da TyC Sports defendeu a manifestação de amor entre homens e provocou o presidente russo, Vladimir Putin, em 2018. Foto: Reprodução.

Os corpos suados abraçados, arfando na comemoração coletiva da torcida, que pulam e se esgoelam nas arquibancadas ou nas salas de estar, partilham algo em comum. Erotizam o momento, que é sublime. Na celebração da vitória ou na dor da derrota, vibram juntos, harmonizam-se, tornam-se um. Disseram-me, certa vez: “Posso assistir um jogo com minhas amigas mulheres, mas me realizo quando estou entre amigos homens”, ou ainda, “Ver jogo entre a irmandade lésbica não tem preço! Homens aqui, nem amigos”.

É aí que está instalado o amor homofílico, de amizade pura, de comprometimento e reciprocidade. Que pode carregar consigo o desejo (homo)sexual, mas não necessariamente. De qualquer forma, tais “dimensões” fundem-se homoeroticamente. O homoerotismo contempla uma diversidade de práticas, vontades e desejos que acionam homens (ou mulheres), homo ou heterossexuais entre si – e, também homens (ou mulheres) bissexuais entre si. Alguns psicólogos/filósofos já trataram do homoerotismo como uma noção mais “flexível”, de certo modo ambivalente e potente.

O futebol, portanto, é um espaço social no qual o homoerotismo está presente, quer queiram ou não seus torcedores, praticantes, amantes. A interação coletiva (ou interpessoal) que provoca, carrega desejos, corporalidades, afetividades, gozos de diversos modos e em graus diferenciados. A expressão, certa vez ouvida por mim, de um torcedor de futebol em Salvador devido a um gol decisivo feito para seu time é sintomática: “Te amuuu, meu rei. Lindo goooool”. Um homem declarando amor a um homem, publicamente, tem um componente de amizade (filia) e também de eroticidade, expresso muitas vezes pela linguagem que tal indivíduo expressa no momento de emoção (“que gol tesão!”). Toda exclamação é uma defesa de posição, nem que seja sutil ou quase imperceptível.

Portanto, o homoerotismo congrega desde a afetividade expressada por rompantes momentâneos elogiosos até o comportamento sexual em si mesmo, com características de atração sexual latente e/ou inconsciente, dirigidas, por exemplo, a pessoas de mesmo sexo ou outras.

A cultura do futebol é homoerótica desde seus primórdios e há inúmeras práticas, inclusive manifestadas pela linguagem, que mostram isso, da broderagem entre amigos (ou amigas) às condutas (homo)sexuais escamoteadas em alojamentos, vestiários, e festas privadas.

Quanto aos “Canarinhos Arco-Íris” e seus coletivos torcedores, parabéns pela manifestação precisa e imediata. Quanto à torcida Garra Alvinegra, um agradecimento pela reconsideração acerca da primeira e rude nota homofóbica. E quanto a nós, pessoas comuns, não nos calemos! E que continuemos alertas, desconfiando de certezas instituídas e de preconceitos destilados, no futebol ou na sociedade. Com tais posturas, certamente, um mundo melhor nos espera. Então, avante!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Explicando o homoerotismo presente no futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 131, n. 38, 2020.
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