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Figuras desconcertantes

José Paulo Florenzano 16 de agosto de 2023

Entre setembro e outubro de 1972 foi realizado no Rio de Janeiro o VII Festival Internacional da Canção (FIC), evento organizado pela Rede Globo de Televisão, emissora que à época despontava como a principal empresa de entretenimento da indústria cultural, alinhada com o regime civil-militar implantado com o Golpe de Estado. Por certo, a fase mais dinâmica, experimental e engajada dos festivais, correspondente aos anos de 1966 a 1968, já havia ficado para trás.[1] Isto, no entanto, não implica afirmar a tese segundo a qual, na esteira do AI-5, o país ingressara em período histórico caracterizado por um “vazio cultural”.[2]

Se, de um lado, a Música Popular Brasileira deixara de se constituir na “esfera pública” da oposição política ao regime civil militar, de outro lado, ela continuava a perturbar a ordem moral instituída no contexto dos Anos de Chumbo, acolhendo a performatividade subversiva de corpos que não se coadunavam com as normas de gênero.[3] Com efeito, o VII FIC – o último da era dos festivais – apresentava ao público reunido no Maracanãzinho  uma jovem cantora de 23 anos que explorava e levava às últimas consequências as possibilidades ritualísticas abertas pelo tropicalismo, notadamente a reentronização do corpo na canção.[4]

Com sua voz potente e sua corporalidade transgressora, Maria Alcina irrompia no palco como uma figura “ilegível” à luz das normas culturais de gênero que, de acordo com Judith Butler, estruturam e regulam o campo de aparecimento. Nesta esfera pública, conforme argumenta a filósofa estadunidense, não se espera nem tampouco se tolera que os corpos “sem conformidade de gênero” se exibam e adquiram visibilidade, como, de certa forma, havia ocorrido com a entrada em cena de Maria Alcina.[5]

Maria Alcina
Fonte: reprodução/Acervo Maria Alcina

Egressa dos “inferninhos selvagens” da Praça Mauá, tradicional ponto de prostituição do Rio de Janeiro, Maria Alcina tinha abandonado o trabalho de operária em Cataguazes, no interior de Minas Gerais, migrando para a “Cidade Maravilhosa” atrás da realização do sonho de se tornar uma cantora de sucesso. Como ela própria relembrava: “Eu ouvia música no rádio da vizinha, sempre que tinha folga na fábrica”.[6]  Depois de inúmeras tentativas frustradas de conquistar um palco para se exibir, Maria Alcina finalmente obteve a oportunidade de se apresentar na Number One, em Ipanema, levada pelo jornalista Tarso de Castro. Eis como Mauro Furtado, o dono da boate, reconstituía o encontro com a cantora:

Quando estava no meio de um papo, ouvi aquela voz estranha e pensei que fosse um homem, depois pensei que fosse um travesti [sic] ou coisa assim. Era Maria Alcina.[7] 

 Seis meses depois de ser contratada pela Number One, ela se transformava em um nome de “grande prestígio” no cenário da MPB, graças ao sucesso da canção “Fio Maravilha”, inspirada, como se sabe, no atacante do Flamengo, João Batista de Sales, cognominado Fio. A história da canção do gol tem início em uma noite de sábado, no início de janeiro de 1972, no Maracanã, onde se enfrentavam pelo Torneio de Verão os times de Flamengo e Benfica. Os Encarnados de Lisboa estavam desfalcados da sua principal estrela, Eusébio, que se achava contundido. Já o rubro-negro do Rio apresentava em campo uma formação sem o atacante Fio, que assistia ao jogo do banco de reservas. Por volta da metade do segundo tempo, no entanto, o técnico Zagalo decidiu atender os quase cinquenta mil torcedores presentes ao Maracanã, colocando em campo o referido jogador. Consoante o relato do Jornal do Brasil, aos 33 minutos, depois de “ter driblado dois zagueiros” e “até mesmo o goleiro português”, Fio fez um “gol espetacular”.[8] A foto estampada na capa da edição esportiva de O Globo flagra o momento em que o atacante passa pelo arqueiro do Benfica, deixando-o esticado no chão, enquanto, mais atrás, surgem os dois zagueiros no seu encalço. “Uma jogada sensacional de Fio”.[9]

Fio Maravilha
Fonte: reprodução

Embora não decidisse o título de nenhuma competição importante, o significado do gol foi muito além da mera vitória de 1 a 0 para o clube da Gávea no  Torneio de Verão. Para o atleta, antes de tudo, ele representara a permanência no elenco do Flamengo, no momento em que o atacante de 26 anos estava fora dos planos da nova comissão técnica dirigida por Zagalo. Com efeito, o contrato de Fio havia se encerrado no dia 31 de dezembro e o clube não demonstrava o menor interesse em renová-lo. [10] A situação provocava angústia na massa rubro-negra.

Dias antes da partida contra o Benfica, a repórter e colunista do Jornal dos Sports, Marilene Dabus, registrava o inconformismo de um torcedor ilustre com o descaso demonstrado pelo clube em relação a um atleta que simbolizava a identidade rubro-negra de time do povo. “Encontrei com o Jorge Ben no Estádio,” contava a jornalista, referindo-se ao sábado anterior, 8 de janeiro, estreia de Paulo César Lima com a camisa do Flamengo, no Maracanã, na partida amistosa com o Botafogo. “Indignado”, prosseguia o relato de Marilene Dabus, “ele me dizia:”

“Vou fazer uma música para o Crioulo Doido. Estou só esperando ele fazer um golaço para terminar a letra. Já está quase pronta.”[11] 

Para o músico, portanto, o gol foi a inspiração final para uma composição que já estava em fase de elaboração e cuja letra reconstituía a jogada celestial” do sábado, 15 de janeiro. “Por que você não entrou com bola e tudo?” Indagou um repórter ao atacante, logo após a partida. A resposta mais conhecida encontra-se justamente nos versos de Jorge Bem: “Só não entrou com bola e tudo/porque teve humildade em gol”.[12] Sob o impacto dos comentários a respeito do “gol de placa”, Nélson Rodrigues não hesitava em recorrer à fórmula hiperbólica para defini-lo como o “o mais desconcertante dos jogadores do Brasil e do Mundo”.[13]

A rigor, tanto o atleta quanto a cantora irrompiam como personagens desconcertantes no espaço de aparecimento rigidamente vigiado do período da ditadura civil militar.  De fato, ao se apresentar vestida de “odalisca”, evocando Josephine Baker, cantando a música de Jorge Ben com uma “voz gutural varonil”, Maria Alcina produzia efeitos performativos inesperados, como o de driblar as normas de gênero e, com um toque de androginia, confundir os aparelhos de censura.[14] Fio Maravilha, por sua vez, suscitava perplexidade nos cronistas esportivos que acreditavam que o jogador alternava jogadas de mediocridade com lances de genialidade, tornando impossível a tarefa de classificá-lo com exatidão nas categorias construídas para qualificar, ou desqualificar, o atleta de futebol: “perna- de-pau” ou “craque”? Em contrapartida, graças à operação reiterativa de um discurso de poder que o nomeava de “crioulo doido”, parecia muito mais simples localizá-lo e fixá-lo na categoria da desrazão do futebol brasileiro. Logo após o gol de placa, no Maracanã, a jornalista Marilene Dabus perguntou ao atacante do Flamengo: “O apelido de Crioulo Doido não lhe tem criado problemas?” A resposta não deixava dúvidas: “Realmente, não tem sido fácil carregar esse apelido”. Esse e todos os demais que o acompanhavam e reforçavam, em especial os de “palhaço” e “malandro”.[15] Com efeito, ao invés de se conformar ao modo de aparecimento prescrito para os atletas negros, João Batista de Sales reagiu aos epítetos racistas, explicitando, neste gesto de recusa, a lógica do racismo na sociedade brasileiro. E isto, sem dúvida, foi desconcertante.


Notas

[1] Cf. Napolitano, Marcos. “´Seguindo a canção`: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969)”. São Paulo, Annablume/Fapesp, p.101

[2] Sobre o VII FIC, ver Mello, Zuza Homem de. “A Era dos Festivais: uma parábola”. 2º ed. São Paulo, Editora 34, 2003.

[3] Cf. Butler, Judith. “Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia”. 3º ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2019. Nesta obra a autora discute a teoria da performatividade, não apenas enquanto enunciados linguísticos, mas como atos corporais. Cf. também Butler, Judith. “Discurso de ódio: uma política do performativo”. São Paulo, Unesp, 2021.

[4] Cf. Favaretto, Celso. “Tropicália, Alegoria, Alegria“.  5 ed. São Paulo, Ateliê Editorial, 2021.

[5] Butler, Judith, op. cit., pp. 40-46.

[6] “A predestinação de Maria Alcina”, Jornal do Brasil, 3 de outubro de 1972.

[7] “A predestinação de Maria Alcina”, Jornal do Brasil, 3 de outubro de 1972.

[8] “Substituição de Zagalo melhora atuação do time”, Jornal do Brasil, 16 de janeiro de 1972. O público pagante  tinha sido de 44.280 torcedores.

[9] “Fio tem noite de Pelé e dá mais uma vitória ao Flamengo”, O Globo, 17 de janeiro de 1972. Nesta partida o Flamengo atuara com o segundo uniforme, ou seja, todo de branco, com a faixa rubro-negra estampada transversalmente no peito.

[10] “Fio: quase chorei quando marquei o gol”, Jorge Areas, Jornal dos Sports, 16 de janeiro de 1972. Como reconhecia o próprio jogador a respeito da importância do gol para a renovação do contrato: “estava precisando muito dele”.

[11] “Radamés, Fio tem que ficar”, Jornal dos Sports, 12 de janeiro de 1972. Sobre a história do gol, ver Valle, Emmanuel do. “De anjo, de placa: há 50 anos, Fio marcava o gol que o transformou em Maravilha”.  https://trivela.com.br/brasil/de-anjo-de-placa-ha-50-anos-fio-marcava-o-gol-que-o-transformou-em-maravilha/

[12] Ben, Jorge. Música: “Fio Maravilha”. Álbum: “Ben”, 1972.

[13] “Meu personagem da semana”, Nélson Rodrigues, O Globo, 31 de janeiro de 1972.

[14] “A predestinação de Maria Alcina”, Jornal do Brasil, 3 de outubro de 1972. Sobre a comparação com Josephine Baker e o uso da expressão “voz gutural varonil”, ver Zuza Homem de Mello, op. cit., p. 430. Cf. Guimarães, Rafael Eisinger; Martins, Ana Luiza. “Identidades de gênero transgressoras na canção brasileira: as performances do corpo e da voz como poéticas interartes subversivas”. Letras, v. 31, n. 63, p. 76-93, jul./dez. 2021.

[15] “A peixada do Crioulo Doido”, Marilene Dabus, Jornal dos Sports, 19 de janeiro de 1972. Nesta reportagem, por exemplo, ele recebe a alcunha de “Rei da Pilantragem”. Sobre os epítetos racistas endereçados ao jogador do Flamengo, ver Florenzano, José Paulo. “Crioulo Doido”, Ludopédio, 11 de julho de 2019.

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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. Figuras desconcertantes. Ludopédio, São Paulo, v. 170, n. 16, 2023.
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