Senti a necessidade de visitar aquele primo distante. Foi ele quem me mostrou um antigo vídeo de Leonel Brizola vociferando contra Paulo Maluf e os “filhotes da ditadura” (veja abaixo) em debate para as eleições presidenciais de 1989. Sua doença era terminal, meu tempo era escasso.
Esse parente ficou conhecido entre os amigos mais próximos. Churrasqueiro nato e contrário à Copa por aqui, quando a carne ficou no ponto já estava 5 a 0 para a Alemanha. Seus gritos podiam ser ouvidos pela vizinhança. Acusou muitos dos incrédulos presentes de cumplicidade pela tragédia por defenderem Felipão, que defendia Pinochet. Só depois de muitos dias pudemos dar risada de suas reações indignadas, tanto quanto as de Brizola no debate.
Dedo em riste, passou a vociferar entre o indignado e o sarcástico.
– Filhotes do 7 a 1, vocês são filhotes do 7 a 1.
“Nem deu tempo da carne assar” virou um mantra. Basta alguém chegar antes do horário ou se antecipar como um bom prevenido. Sou o responsável por explicar os motivos da piada interna de um churrasco inesquecível. Quando ele estava presente nas festas de família, o bordão era proibido pelo seu olhar assassino.
Meu primo distante andava indignado, antes da internação, pelos dias estranhos de nuvens negras prometendo fortes tempestades no país. Nunca se conformou pelo Lionel de hoje se destacar apenas com a bola nos pés. E pelos outros filhotes do esporte bretão se limitarem a penteados e status fora das quatro linhas.
– No dia daquele debate, eu tinha esperança em um futuro melhor. Hoje, não sei se haverá futuro. Mas eu já tô partindo, é problema de vocês.
Suas palavras pessimistas nos últimos dias do tratamento invasivo eram uma entrega às más notícias. E ele nem soube de um dono de helicóptero tomando conta da instituição que deveria tomar conta da seleção supostamente brasileira. Desistiu de contestar convocações e nem esboçava gritos de gol do seu time de coração.
Já no dia do 7 a 1, pregava sobre a goleada como símbolo de uma tragédia construída há tempos. Ultimamente, basta ligar a TV e acompanhar o noticiário para perceber que ele não deveria estar muito errado, não. Nem o Leonel, que ele tanto gostava e imitava, com dedo em riste, como no debate.
Meu primo distante se despediria desse plano às vésperas de mais uma Copa do Mundo. Não vai mais se indignar com regulamentos estranhos, confederações nebulosas e outras dívidas herdadas do futebol brasileiro, parindo goleadas traumáticas dentro e fora de campo.
Num raro momento de lucidez recente, tentou levantar o braço em minha direção. Olhava com a mesma bravura simulada da clássica paródia parida pela tragédia do Mineirão.
– Filhotes do 7 a 1, vocês são filhotes do 7 a 1…
Quando a terra cobria seu caixão, orei para ficarmos órfãos a tempo de ver a carne no ponto, com o sangue dando água na boca.