168.9

Fintas e staccatos, embaixadinhas e contrapontos na arte de Toninho Carrasqueira

Toninho Carrasqueira de Lundu Característico, de Antonio Callado

Muitos e muitas de nós já passamos pela experiência de tentar traduzir para alguém, como se historiadores ou literatos fôssemos, um inesquecível jogo de futebol que vivenciamos. E como Tucídides amadores teimamos em universalizar histórias e motivações pessoais como se pudessem ser plenamente compartilhadas na intensidade daquela experiência.

As sensações delirantes vividas num estádio apinhado, palco de jogadores e torcidas adversárias que se chocam, se entreolham e se estranham, podem perder as tonalidades vibrantes num relato bem-intencionado. Não que faltem necessariamente palavras. O fato é que muita coisa dita ou escrita acaba aquém dos sentidos, dos gestos, suores, sonoridades e toda aquela cenografia que transcende o campo de jogo, contribuindo para um relativo fracasso para quem apenas ouve ou lê. Um jogo deve ser tomado como um acontecimento, mas isso pode valer também para descrever um encontro, um show musical, uma conversa, quem sabe uma entrevista.

Fazer da apreensão particular uma experiência geral, sobretudo em se tratando de futebol e música, esses artefatos finos da cultura, pode ser tarefa frustrante. Mas nada que continuadamente não tenha sido tentado e tentado à exaustão. Às vezes, alguém pode chegar perto de uma descrição sublime.

Nelson Rodrigues que o diga. Cada frase sua a respeito de um jogador ou de um mísero relato de partida esquecido num canto de página de jornal fazia mover placas tectônicas da imaginação. Escrevendo sobre uma cusparada e situações que presenciou, ou que as inventou, dadas as desconfianças de que sua miopia traía sua visão a partir das cadeiras do Maracanã, todos vibravam com as emoções hiperbólicas de hilariantes histórias condensadas e barrocas transpostas em suas crônicas. Esses efeitos de transposição das emoções podem vir das páginas da literatura, das crônicas cotidianas, da música e das formas da arte em geral. Mas há ainda quem as revele até mesmo numa boa conversa.

Mas o que tudo isso teria a ver com o nosso personagem de hoje, o flautista Toninho Carrasqueira? O fato é que foi justamente essa sensação de fracasso relativo que abateu sobre nós depois que saímos da entrevista, peleja ou bate-papo que tivemos com ele tempos atrás. Só mesmo rogando a um Tucídides, ou quem sabe à memória do possesso Nelson Rodrigues, nosso narrador grego-tupiniquim, para trazer algum alento à reprodução escrita desse encontro que tivemos com Carrasqueira, revelado num verdadeiro acontecimento, tais como aquelas partidas inesquecíveis.

Corremos o risco de sucumbirmos, tal qual um staccato mal executado ou uma finta de corpo desengonçada. Em tempo, staccato é um recurso, também chamado de golpe, na execução de um instrumento, e ganha notação dentro da pauta. Ele revela as intencionalidades do compositor ao mostrar como as notas devem ser atacadas. Nesse caso, trata-se de diminuir a quantidade sonora de uma nota, mudando os sentidos da interpretação.

O ritmo imposto pelo musicista ao bate papo, pontuando e imprimindo intencionalidade em cada frase, gesticulando mãos musicadas sem precisar empunhar sua flauta companheira, extensão da sua persona, ou ainda contrapondo argumentos de quem experenciou um Brasil culturalmente rico, mas politicamente tenebroso, nos ofereceu um registro ou acontecimento singular. Inebriante como um bom jogo, sublime como um bom concerto.

Não teremos tempo de voltar às minúcias da conversa com Toninho Carrasqueira. Fiapos da sua biografia podem ser acessados aqui e ali em alguns poucos sites, mas nada comparado à intensidade daquela entrevista, que tivemos a sorte de experenciar como final de campeonato. Há um outro texto-entrevista em que oferecemos com mais vagar passagens desse encontro em que Carrasqueira descreve sua rica história musical, familiar e futebolística. Recomendamos, então, que os leitores procurem por essa publicação gêmea, que saiu na prestigiosa revista acadêmica Fulia, da UFMG, no dossiê “Futebol, carnavalizações e sonoridades”.

Para quem for dar uma espiadela nesse material editado para Fulia lerá que o flautista teceu pela vida afora relações umbilicais entre o jogador menino que foi nas várzeas paulistanas e o flautista de renome internacional que se tornou. A certa altura, depois das experiências europeias no universo acadêmico de concertista, conta como retomou ou chegou de vez à música brasileira: “Eu era boleiro, capoeirista, não sei o quê, da rua, futebol, e só tocava música clássica. Não tirava nada de ouvido e era louco para tocar choro, para tocar samba, forró. Tocava os Mozart, Debussy como um francês, como um alemão. Toquei com orquestra alemã, Bach, dois anos e meio. Então tinha um negócio aqui que precisava uns dois anos de psicanálise para resolver” (…), “ou boteco, certamente”, já concordando com a nossa jocosa intervenção.

Sua flauta derivaria para a música brasileira, pediria demissão do Teatro Municipal, já chateado com desavenças e sentimentos desimportantes para se agarrar, e cada vez mais embarcou pelos meandros da cultura popular, travando importantes participações e parcerias com artistas do quilate de Antônio Nóbrega, depois como fundador da banda dançante Mexe com Tudo (Toninho Ferragutti, Ná Ozette, Tião Carvalho, Erivaldo Gomes, Zezinho Pitoco, Adriano Busco…) e outras parcerias certeiras.

“O que a gente ganhava na bilheteria [nas apresentações da Mexe com Tudo no então bar Avenida, bairro de Pinheiros], com nove músicos e mais um produtor dava o que eu ganhava de salário de primeiro flautista na Sinfônica (…) que era um ambiente ruim, só de briga, um autoritarismo, apesar de eu gostar daquela música maravilhosa” (…). E arremata: “Pedi demissão sendo primeiro flautista do Teatro Municipal”. Depois veio a Jazz Sinfônica, concebida por Arrigo Barnabé e Eduardo Gudin e os projetos de Choro com instrumentistas da envergadura de Maurício Carrilho. No Quinteto Vila Lobos, onde ficou por 15 anos, gravou com o violonista Guinga.

Toninho Carrasqueira entrou de corpo e alma pela tradição musical brasileira. E lembrando um título de um trabalho do clarinetista popular Paulo Moura, também se identifica como aquele que está dentro da “confusão urbana, suburbana e rural” que é o Brasil.

Toninho Carrasqueira

Toninho Carrasqueira
Fonte: divulgação

Sua vida parece formada por uma espécie de dupla hélice, que entrelaça futebol e música. Essa genética sociológica de experiências guarda as informações de um menino que cresceu e se enobreceu na flauta sem abandonar os valores de uma vida marcada pela diversidade, acolhimento e compromisso de classe. Sua vivência numa família plurirracial, de tio e tias negras, orientou seu tino político para denunciar as condições e experiências da desigualdade social, que dividiu e compartilhou com seus companheiros varzeanos, antes de ingressar nas esferas da alta cultura da música de concerto.

Estilisticamente revela outro duplo movimento, espelhando a lepidez melodiosa da flauta com as experiências da várzea ao mesmo movimento que levou as pulsantes sensações anímicas do jogo para os contextos musicais em que atuou e atua. Afinal, se considera um homem do coletivo. Para Toninho Carrasqueira ninguém joga futebol ou executa um instrumento sozinho. Exímio solista, sempre optou pelo melhor passe.

Do Estrelinha da Lapa ao Paris San Germain

Vasculhando a infância, e depois de relatar que o Estrelinha da Lapa tinha sido um sonho de criança que se confirmou, pois chegou a atuar no primeiro quadro do time, vagou por inúmeros times varzeanos, tornando-se conhecido no pedaço do bairro da Lapa não apenas por ser filho do ferroviário e músico João Dias Carrasqueira, o Canarinho da Lapa, mas também pela dupla habilidade que aos poucos ia se revelando, como futebolista e flautista. Se não fosse a austeridade paterna naquele início de carreira futebolística no futebol de salão do Nacional da Água Branca talvez a flauta permanecesse apenas como experiência familiar nos saraus promovidos pelo pai em casa.

Nacional
Nacional Atlético Clube, fundado em 1919. Fonte: Wikipédia

Carrasqueira é neto e filho de flautistas, mas pode se dizer que herdou também a sonoridade da flauta popular brasileira, que rivaliza em importância até mesmo com a tradição do nosso violão. Assumindo cada vez mais essa brasilidade musical, passou por nomes como Joaquim Callado, Viriato Figueira da Silva, Duque Estrada Meyer, Patápio Silvia, Pedro Alcântra, Saturnino, e, obviamente, por outros mais conhecidos do público como Pixinguinha, a quem dedicou um trabalho. Mas quem o emocionava mesmo era o Canarinho da Lapa, seu pai e mestre.

Aos 21 anos conseguiu uma bolsa para estudar na França: “Veio um regente famosíssimo da Europa, Ernest Bour, o papa da música contemporânea”, que prometia a estreia de A sagração da Primavera pela primeira vez em palcos paulistanos. E segue contando:

“E aí precisavam de cinco flautas e o Teatro municipal só tinha três (…). Fui fazer um cachê para ser a quarta flauta. E eu impressionado com aquele senhorzinho ali. Aí no intervalo ele veio falar comigo e perguntou: ‘onde você estudou?’. Disse: com meu pai, com os professores aqui da orquestra. ’Puxa, você toca bem, parece que você estudou na Europa’. Naquela semana ele tinha me visto na TV Cultura. Nessa época eu estava indo ao consulado francês para pedir uma bolsa e não acontecia nada. Já tinha pedido [referências] e não acontecia nada (…). Aí pedi para ele fazer uma carta. Ele fez uma linda [que] levei no dia seguinte no consulado ali na Paulista (…) me chamaram para preencher o formulário”.

Perguntamos por que a preferência pela França

“Eu tinha ouvido um disco com as gravações das bachianas do Vila Lobos feito pela Orquestra Nacional (francesa). E por aqui, naquela época, o grande flautista era o Jean-Pierre Rampal. Eu o ouvia, de fato, é bonito, mas eu sou mais o meu pai (…) meu pai era mais mágico. Essa coisa de ser filho, não sei o quê, mas aquilo não me arrepiava. Vocês vão ouvir eu falar isso [risos], mas eu sempre falo. Mas quando ouvi a Bachiana no 6, para flauta e fagote, tinha o Fernand de Frene, que era o flautista da Nacional, eu pirei. Cacete, esse cara toca lindo, quero estudar com esse cara. Vou pedir uma bolsa para a França. O centro era a França, Alemanha, mas os flautistas eram os franceses, sobretudo. O [Jean-Pierre] Rampal era francês. Eu tinha aula com o Jean-Nöel Saghaart, que era flautista da Sinfônica da Municipal (…) depois eu também toquei no Municipal. Eu era o único brasileiro, eu dei muita sorte. Teve uma coisa na geração que só tinha eu. Hoje tem um monte, se abre vaga no Teatro municipal aparecem 40 flautistas excelentes. Acabou que eu ganhei essa bolsa”.

O próximo passo ou passe naquele bate papo parecia óbvio, ou seja, perguntar se ele tinha batido uma bola na sua estadia por 6 anos na França. Foi quando nos surpreendeu com a resposta: “Rapaz, eu fui convidado para jogar no Paris San Germain. Como diria um [carioca] amigo meu, ‘ô passarinho, você já foi mais humilde’”.

Em meio às risadas que invadiram a cena da entrevista, motivadas pela resposta firme, de bate pronto e inusitada, indagamos se aquilo era sério: “É sério, negócio de maluco. Vou contar, ninguém vai acreditar, foi para isso que vocês me chamaram”. Deixemos o restante do relato ao sabor das palavras do próprio flautista-boleiro

Carrasqueira soube executar seus ritornellos, repetindo mantras e valores aprendidos desde a várzea. Do ambiente sisudo da música na França, onde segundo ele as pessoas sorriam pouco, voltou para o Brasil. E da flauta concertista para a música popular brasileira questiona com sabedoria a rígida divisão entre popular e erudito. Sem abandonar nada, e se revigorando continuadamente como artista e professor de música brasileira na Universidade de São Paulo, espalha sua flauta por aí como espalhado foi o futebol pelos campos da urbe. É corinthiano, mas celebra, sobretudo, o futebol-arte. Oriente-se, Ocidente é seu recente trabalho autoral. Vale muito a pena conferir as novas tessituras e lances desse boleiro irrequieto da Lapa. Voltaremos a ele ainda mais uma vez numa outra oportunidade.

Referências

Carrasqueira, Toninho. Disponível em: https://www.choromusic.com.br/catalogo/biografias-de-musicos/toninho-carrasqueira.html#.ZEO1v6Rv9Px. E https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa12972/toninho-carrasqueira.

Carrasqueira, Toninho. Oito batutas. Série Brasil Toca. Direção e produção Marquinho Mendonça e Swami Jr. Disponível em: https://youtu.be/czeHvCL5xo0.

Carrasqueira, Toninho. CD Toninho Carrasqueira Toca Pixinguinha e Pattápio Silva (A brazilian legacy), Paulinas-Comep, 1996.

Carrasqueira, Toninho. CD Oriente-se, Ocidente. 2022.

Carrasqueira, Toninho. “Toninho Carrasqueira lança o álbun Oriente-se, Ocidente”. Jornal da USP, 15/07/2022. Disponível em: https://jornal.usp.br/cultura/toninho-carrasqueira-lanca-o-album-oriente-se-ocidente/.

Fernandes, Heloísa & Carrasqueira, Toninho – Duo. Série Brasil Toca. Direção e produção Marquinho Mendonça e Swami Jr. Disponível em: https://youtu.be/jhUL0_HevKA.

Guinga e Quinteto Villa Lobos, Programa Passagem de som. SESCTV. Disponível em: https://youtu.be/8d69i1gbnog.

Quinteto Villa Lobos. Disponível em: https://dicionariompb.com.br/grupo/quinteto-villa-lobos/.

Rodrigues, Nelson. À sombra das chuteiras imortais. Crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Rodrigues, Nelson. A pátria em chuteiras. Novas crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

Toledo, Luiz Henrique de; Camargo, Eduardo. Sopros de bola: embaixadinhas com o musicista Toninho Carrasqueira. Fulia (UFMG). v.8, n.1, 2023.  

 

ideacanção

Ideacanção

Pesquisas estéticas narrativas nos campos da canção e da crítica cultural é idealizado por Kike Toledo e Eduardo Camargo. Procure Ideacanção também no Instagram.

Kike Toledo é antropólogo e sambista nas horas vagas. Eduardo Camargo é multi-instrumentista, arranjador e aprendiz de antropólogo nas horas vagas. Ambos vagueiam e compõem. Para conhecer seus trabalhos acessem os álbuns

Ladeira de Pedra – Spotify

ChamamentoSpotify

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Kike Toledo

Kike Toledo é sambista, torcedor e antropólogo.

Como citar

TOLEDO, Luiz Henrique de; CAMARGO, Eduardo; CARRASQUEIRA, Toninho. Fintas e staccatos, embaixadinhas e contrapontos na arte de Toninho Carrasqueira. Ludopédio, São Paulo, v. 168, n. 9, 2023.
Leia também:
  • 178.30

    Ser (ídolo) ou não ser…

    Eduarda Moro
  • 178.28

    Projetos sociais e práticas culturais no circuito varzeano

    Alberto Luiz dos Santos, Enrico Spaggiari, Aira F. Bonfim
  • 178.27

    Torcida organizada e os 60 anos do Golpe Civil-Militar: politização, neutralidade ou omissão?

    Elias Cósta de Oliveira