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‘Fora do eixo’: por que a ascensão do Bahia incomoda tanto?

João Vítor Marques 2 de março de 2024

“Pensar grande é pensar fora do eixo”[1]. Ao escolher essas palavras para anunciar a chegada do meio-campista Everton Ribeiro, o Bahia transveste de provocação clubística o claro teor sócio-político de uma das contratações mais impactantes do futebol brasileiro nesta janela de transferências. A postagem em texto e vídeo nas redes sociais brinca com os rivais frustrados pela perda da disputa pelo jogador, multicampeão pelo Flamengo, e dá um claro recado: o clube tricolor, impulsionado pelos milhões do City Football Group, almeja desviar para Salvador os olhares historicamente voltados a Sul e Sudeste. Mas, para além de uma evidente estratégia de marketing, a campanha contrapõe um problema crônico, mas pouco investigado nas pesquisas sobre esporte no Brasil.

‘Fora do eixo’: por que a ascensão do Bahia incomoda tanto?
Figura 1: Anúncio de Everton Ribeiro pelo Bahia.

 

A xenofobia contra o Nordeste e os estereótipos ligados à identidade regional nordestina foram, sim, temas de investigações em diferentes áreas do conhecimento nos últimos anos: na Comunicação e Política, em estudos sobre as eleições presidenciais de 2014 (Holanda, Scanoni e Siqueira, 2016; Silva, 2016); no ensino de História, em pesquisa a respeito da discriminação nas escolas (Ramos, 2021); na Letras, sobre estereótipos linguísticos em telenovelas (Jesus, 2006); entre outras.

No âmbito esportivo, por outro lado, raras são as abordagens científicas a respeito do tema. Buscas pelos termos “xenofobia”, “futebol” e “Nordeste” não tiveram resultados precisos em diferentes repositórios acadêmicos, como o Google Acadêmico. Em pesquisa no catálogo de teses e dissertações da Capes em dezembro de 2023, foram identificadas 158 publicações relacionadas ao termo “xenofobia” — nenhuma delas, contudo, trata do futebol nordestino (Marques, 2023).

Nesse contexto, a recente ascensão econômica do Bahia — a partir da compra da Sociedade Anônima do Futebol (SAF) pelo grupo que comanda, entre outros clubes, o poderoso Manchester City — é campo fértil para investigações. A diretoria do time baiano superou concorrentes sudestinos e sulistas, historicamente mais fortes financeiramente, para fechar com Everton Ribeiro e com o volante Jean Lucas, ex-Santos e pretendido pelo Internacional. O anúncio do segundo reforço teve o mesmo tom: “Fora do eixo, pronto pro mundo!”.

‘Fora do eixo’: por que a ascensão do Bahia incomoda tanto?
Figura 2: Anúncio de Jean Lucas pelo Bahia.

 

As negociações malsucedidas geraram críticas de torcedores de clubes das regiões Sudeste e Sul nas redes sociais. Muitas das reclamações, porém, não eram simplesmente por terem ficado sem um determinado jogador, mas por terem perdido a disputa especificamente para o Bahia — time que, apesar de bicampeão brasileiro e dono de uma das maiores torcidas do país, é apontado nesses ataques como “pequeno”.

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Figura 3: Postagem de torcedor atacando o Bahia na rede social X.
‘Fora do eixo’: por que a ascensão do Bahia incomoda tanto?
Figura 4: Postagem de torcedor atacando o Bahia na rede social X.
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Figura 5: Postagem de torcedor atacando o Bahia na rede social X.
‘Fora do eixo’: por que a ascensão do Bahia incomoda tanto?
Figura 6: Postagem de torcedor atacando o Bahia na rede social X.
‘Fora do eixo’: por que a ascensão do Bahia incomoda tanto?
Figura 7: Postagem de torcedor atacando o Bahia na rede social X

 

Xenofobia contra o Nordeste no futebol

Mas por que, afinal, a ascensão do Bahia incomoda tanto?

O caso é apenas um exemplo que ilustra uma investigação maior em andamento no mestrado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob orientação da professora Ana Carolina Vimieiro.

Nesse estudo, temos buscado sistematizar e analisar episódios de xenofobia contra o Nordeste e seus personagens (clubes, dirigentes, jogadores, torcedores, etc) no futebol brasileiro. O primeiro passo foi mapear o cenário. A partir de pesquisas avançadas no Google e nas ferramentas específicas de oito sites, identificamos 30 casos registrados na imprensa nos últimos dez anos (2014-2023). Nas buscas, utilizamos as palavras-chave “xenofobia”, “Nordeste”, “futebol” e variações desses termos.

A metodologia escolhida para o estudo foi o da análise de conteúdo quanti-qualitativa (Bardin, 1977), abordagem que permite uma interpretação subjetiva a partir da codificação e da identificação de padrões (Hsieh e Shannon, 2005). Depois da compilação de dados, seguiu-se alguns passos das proposições metodológicas da análise de conteúdo: 1) ler repetidamente o conteúdo das ofensas para identificar a visão do todo; 2) codificar as ofensas a partir de categorias estabelecidas para o estudo a partir do conteúdo lido no passo anterior; 3) analisar visualmente (a partir de gráficos) os resultados da codificação; 4) analisar qualitativamente os resultados.

Por meio da análise de conteúdo, as ofensas xenofóbicas foram divididas em seis categorias (gráfico 1): 1) generalização e/ou estereotipização (reducionismos, generalizações e estereótipos); 2) ofensa ao futebol nordestino (ofensas à qualidade esportiva de clubes ou jogadores nordestinos); 3) ofensa ao Nordeste e/ou ao povo nordestino (ofensas diretas e curtas unicamente por se tratar da região); 4) racismo/intolerância religiosa (casos interseccionais em que o racismo acompanha a xenofobia); 5) ofensa político-eleitoral (ofensas pelo comportamento eleitoral); e 6) repulsão (ofensas para “repelir” nordestinos de volta ao Nordeste). Somados, os resultados superam 30, já que em muitos episódios a ofensa se enquadra em mais de uma categoria.

‘Fora do eixo’: por que a ascensão do Bahia incomoda tanto?
Gráfico 1: Casos por categoria de análise. Fonte: Elaborado pelo autor (2023).

Os ataques ao Bahia no atual contexto de contratações e ascensão financeira se encaixam majoritariamente na categoria “ofensa ao futebol nordestino”. São aqueles episódios xenofóbicos disfarçados de críticas supostamente “técnicas” ou “embasadas historicamente”.

Nos últimos dez anos, essa foi a segunda categoria com mais registros, como podemos ver no gráfico acima. “Não sabia que existia futebol acima da Bahia”, “Jogou como um verdadeiro time nordestino, modo covarde!” e “Quando eu falo que a postura de time nordestino é postura de time pequeno não é por acaso” foram alguns dos ataques que ocorreram entre 2014 e 2023 e ajudam a entender este grupo de análise.

Discurso de ódio contra o Nordeste

Conceitualmente, classificamos esses ataques xenofóbicos contra o Nordeste como discurso de ódio. Violências simbólicas calcadas na intolerância não são novidade na história da humanidade. Da Idade Antiga à contemporaneidade, os ataques baseados em racismo, xenofobia, machismo, identidade de gênero, orientação sexual, religião, entre outros, se concretizam a partir de diferentes formas de agir — entre elas, e aqui com especial destaque, a linguagem. Com dinâmicas e características próprias, esse tipo de ofensa se repete no trato ao Nordeste no contexto do futebol.

Enunciar a fúria, reforçar preconceitos e, em geral, ferir por meio da palavra caracterizam os atos ilocucionários de Judith Butler (1997), nos quais, em síntese, falar é agir. Nesse cenário, o que é dito “não apenas comunica o ódio, mas constitui em si mesmo ato que impinge dor, uma arma para ferir a quem é dirigido” (Silva, 2016, p. 41).

O conceito não é novo, mas ganhou força e passou a ser amplamente debatido especialmente nos últimos anos, com a ebulição simbólica impulsionada pela internet e as redes sociais online.

 Moura (2016) reforça a conceitualização ao pontuar que se trata de manifestações discursivas que acabam por “insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião ou que tem capacidade de instigar a violência, ódio ou discriminação contra tais pessoas” (2016, p. 4).

Nem sempre, porém, o discurso de ódio se manifesta de forma clara e direta. A partir de uma abordagem jurídica e anterior à popularização das redes sociais online, Rosenfeld (2001) faz observações que continuam atuais. Ele distingue o discurso de ódio explícito (hate speech in form)do discurso de ódio velado (hate speech in substance). Em resumo, o primeiro diz respeito aos episódios em que a intolerância é evidente; já o segundo trata dos casos de violência velada e “pode apresentar-se disfarçado por argumentos de proteção moral e social, o que (…) pode provocar agressões a grupos não dominantes” (Schafer, Leivas e Santos, 2015, p.147). É o que vemos em alguns casos de ataques xenofóbicos ao Bahia, muitas vezes disfarçados de “críticas técnicas”.

Os episódios de violência simbólica são, portanto, formas de dominação e manutenção da estrutura social e de poder. Xingamentos e discursos odiosos direcionados a uma pessoa não são exatamente individualizados. Eles, na verdade, estão endereçados à coletividade da qual aquela vítima específica faz parte (Silva, 2016).

Portanto, se um torcedor de um clube nordestino é vítima de xenofobia, o caminho para se compreender o caso não é analisá-lo isoladamente, mas sim entendê-lo em um contexto em que esse tipo de ataque é recorrente e repetitivo. O xingamento, a ofensa, o discurso de ódio ali presentes dizem muito mais de um ataque coletivo do que individual. E, em maior escala, os ataques aqui mencionados não são exatamente apenas ao Bahia, mas podem ser lidos como ofensas contra toda uma coletividade de clubes nordestinos.

Referências

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.

BUTLER, Judith. Lenguaje, poder y identidad. Madrid: Editorial Síntesis, 1997.

HOLANDA, André Fabrício da Cunha; SCANONI, Sabrina Ramires; SIQUEIRA, Vanessa Ferreira. A culpa é do Nordeste? As eleições de 2014 e a repercussão de matérias jornalísticas nas redes sociais. Revista Latino-americana de jornalismo. João Pessoa, vol. 3, n. 2, p.228-243, jul/dez de 2016.

HSIEH, Hsiu-Fang; SHANNON, Sarah E. Three approaches to qualitative content analysis. Qualitative health research, v. 15, n. 9, p. 1277-1288, 2005.

JESUS, Étel Teixeira de. O Nordeste na mídia e os estereótipos linguísticos: estudo do imperativo na novela Senhora do Destino. 2006. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Instituto de Letras, Universidade de Brasília, Brasília.

MARQUES, João Vítor Nunes. Nordeste fora de foco: a produção acadêmica sobre xenofobia e futebol. In: 46º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2023, Belo Horizonte. Anais do Intercom. Belo Horizonte: Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. Trabalho 1669 – 732.

MOURA, Marco Aurelio. O Discurso de Ódio em Redes Sociais. São Caetano do Sul, Lura Editorial, 2016.

RAMOS, Valéria Bueno de Castro. Xenofobia contra nordestinos e nortistas nas escolas: a História como propositora de vivência intercultural. 2021. Dissertação (Mestrado em Ensino de História) – Faculdade de História, Universidade Federal de Goiás, Goiânia.

ROSENFELD, Michel. Hate speech in constitutional jurisprudence: a comparative analysis. Public Law Research Paper, n. 41, Cardozo Law School, abr. 2001.

SCHÄFER, Gilberto; LEIVAS, Paulo G. C.; SANTOS, Rodrigo Hamilton dos. Discurso de ódio: da abordagem conceitual ao discurso parlamentar. RIL Brasília a. 52 n. 207 jul./set. 2015 p. 143-158.

SILVA, Yane Marcelle Pereira. “Esses nordestinos…”: discurso de ódio em redes sociais da internet na eleição presidencial de 2014. 2016. [149] f., il. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania) — Universidade de Brasília, Brasília, 2016.


[1] Disponível no perfil do Bahia no X.

 

 

Este texto foi originalmente publicado no Blog Comunicação, Esporte e Cultura.

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Como citar

MARQUES, João Vítor. ‘Fora do eixo’: por que a ascensão do Bahia incomoda tanto?. Ludopédio, São Paulo, v. 177, n. 2, 2024.
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