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A fundação do Corinthians Paulista

Plínio Labriola Negreiros 5 de setembro de 2018

Neste mês, o Sport Club Corinthians Paulista completa 108 anos de existência. Essa efeméride tem significados pessoais e mais gerais. Penso nela como corinthiano, mas também na importância que o clube adquiriu nessa longa trajetória. E, em particular, revelo meu interesse pelas origens do clube, que foi objeto de uma dissertação de mestrado, defendida no distante 1992.

Relembro que pesquisar história do futebol em fins dos anos 1980 não era tarefa simples. Se pesquisar no Brasil não se constituía em uma tarefa tranquila para a maioria dos historiadores, os que poucos se aventuram no espaço do futebol acabam se deparando com dificuldades adicionais. Na época, uma constatação imediata: raramente os clubes de futebol, por mais projeção que detenham, revelam qualquer preocupação em preservar a sua memória; quando esta preservação se faz presente, notei a existência de uma “história oficial”, sempre quase mítica.

Ao mesmo tempo, trabalhar com o futebol nos seus primórdios (como também em épocas mais recentes) revelou sérias dificuldades em termos de fontes, já que a documentação dos clubes se apresentava pobre. Soma-se a isso a ausência de boa vontade por parte dos clubes. Aparentemente, ao menos as pessoas com quem mantive contatos não tinham dimensão do significado do trabalho historiográfico. Minha experiência com a Federação Paulista de Futebol, que ainda tinha a sua sede na avenida Brigadeiro Luís Antônio, foi surreal. O acesso à biblioteca e ao arquivo foram dificultados ao máximo.

Dadas esses entraves presentes nos clubes e na Federação, a busca de fontes mudou de rumo. Passei a considerar os periódicos diários como a principal fonte da pesquisa. Também percebi a importância dos cronistas de época, assim como os memorialistas. A dispersão de fontes não impediu que a prática e o significado do futebol, na década de 10, na cidade de São Paulo, fosse reconstruído a partir do meu olhar. Este desejava compreender o surgimento do Corinthians Paulista.

Nota publicada pela jornal Comércio de São Paulo, no dia 22 de setembro de 1910. Era a primeira notícia sobre o Corinthians publicada.
Nota publicada pela jornal Comércio de São Paulo, no dia 22 de setembro de 1910. Era a primeira notícia sobre o Corinthians publicada.

São Paulo cresce e os esportes chegam

O crescimento significativo da cidade São Paulo, a partir do último quartel do século XIX, trouxe experiências novas. Tal crescimento — que esteve acoplado a um processo de destruição e posterior remodelação — não apresentou benefícios igualmente divididos por toda a sociedade. Como tem sido regra, a cidade é (des)organizada a partir dos interesses do capital.

Ao mesmo tempo, a cidade começou a viver novas formas de lazer, que satisfaziam a população de um espaço urbano que, a cada dia, perdia um pouco o seu caráter provinciano. As procissões religiosas perdiam prestígio para novas formas de convívio social. Uma forma muito difundida de lazer constituiu-se na prática esportiva, consubstanciada na formação de clubes esportivos, além da informalidade das ruas e espaços vazios.

Tem-se, dessa forma, o aparecimento de inúmeras modalidades esportivas que, após breve período de adaptação, tornaram-se moda e passaram a ser largamente apreciadas pela população, seja como praticantes ou meros assistentes. Terminada a febre da moda, alguns esportes caíram no esquecimento, outros sedimentaram-se enquanto prática quotidiana.

Entre os muitos esportes que chegaram à cidade, um deles, definitivamente, ficaria entre nós. Vindo da “civilizadora” Inglaterra, mas não apenas, o futebol, em poucos anos, tornar-se-ia um verdadeiro objeto de paixão entre os paulistanos. Formaram-se os clubes especificamente preocupados com a sua prática. Logo a seguir, criou-se uma entidade que congregaria os primeiros clubes que jogavam o futebol e organizaria o primeiro campeonato paulista de futebol. Vivia-se o final de 1901; em 1902, teríamos o campeonato.

Entretanto, se o futebol já era praticado por toda a cidade, na Liga Paulista de Foot-Ball (LPF) — entidade organizadora desse esporte em São Paulo —, somente os clubes fundados pelas elites paulistanas, nacionais e estrangeiras, terminavam participando daquilo que se convencionou chamar de “futebol oficial”. A criteriosa seleção imposta pelos clubes da LPF, regulamentada nos seus estatutos, deixava à margem os outros futebóis da cidade.

Esse esporte, porém, se disseminou com muita rapidez por toda a cidade. Cada terreno plano era espaço ideal para uma partida do “violento e emocionante esporte”, conforme expressão utilizada na época. Pessoas das classes populares passaram a organizar seu próprio futebol. Formaram clubes e associações patrocinadoras de campeonatos. Vale ressaltar que estes futebóis, denominados informal, varzeano ou dos arrabaldes, não detinham nenhum prestígio.

Isso, sem citar um outro futebol: aquele jogado nas condições mais precárias possíveis. Bastava um terreno, uma bola feita de jornais e meia, além de pedras e paus para marcar as metas. A dita “pelada” era jogada pelas crianças e jovens sem acesso aos melhores espaços, que eram os clubes e colégios. Jorge Americano, memorialista, narra as emocionantes partidas disputas na rua Barão de Itapetininga na década de 1910, por estudantes das redondezas. Tais jogos não eram apreciados pelos moradores da rua, que denunciavam à polícia as vidraças quebradas e os palavrões.

Enfim, do Velódromo, campo oficial da LPF, onde a elite econômica e dirigente corria atrás de uma bola, passando pelos inúmeros campos presentes em cada bairro da cidade e chegando aos terrenos vazios como nas ruas e praças, estava claro o quanto a população de São Paulo apreciava o chamado esporte bretão. As barreiras de classe, que tanto marcavam os outros esportes — notadamente o turfe, o ciclismo e o tênis — começavam, lentamente, a ser rompidos pelo futebol.

Por outro lado, destaca-se o fato de que as práticas oficial e varzeana, inicialmente, estiveram quase isoladas por completo; tinha-se poucos pontos de contato. O máximo que poderia acontecer era um popular gostar do futebol, já que a imprensa dava um espaço importante, tornando o esporte bretão uma referência. Mas, aos plebeus, cabiam contentar-se em assistir aos jogos e comentá-los.

Mas, o fascinante desse esporte, sem dúvida, encontra-se na sua dinâmica, tornando essa prática algo muito especial, no qual a emoção e a paixão cresciam a cada instante. Associa-se a essas características a crescente rivalidade entre os clubes da LPF. E os clubes dos arrabaldes, a cada dia, multiplicavam-se.

Este crescimento, quantitativo e qualitativo, produziu no futebol transformações importantes. De um lado, parte dos “clubes de elite” não se importava mais em manter os seus times fechados só para a elite paulistana. Interessava, antes de mais nada, vencer as disputas. Portanto, tais clubes foram buscar, a partir de 1908, nos times de bairro, bons jogadores, independente das suas origens sociais. Antônio Figueiredo, autor de História do Foot-Ball em São Paulo, publicado em 1918, já faz essa advertência. Por outro lado, os clubes de bairro começavam a desejar participar do futebol oficial.

A perplexidade atingia os clubes mais elitistas de São Paulo, em função do novo quadro que se desenhava. Os plebeus começavam a invadir aquele que era mais um espaço de exclusão social, entre tantos construídos em uma sociedade que há pouco abolira a escravidão. Filhos das famílias mais ricas e tradicionais da sociedade paulistana passariam a dividir o mesmo campo de jogo com operários imigrantes do bairro da Lapa, por exemplo. Já os clubes varzeanos impacientavam-se com a insistência da FPF em deixá-los fora do futebol oficial. Este criou mecanismos que impediam, na prática, a entrada de qualquer um que não fosse “dos seus”.

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Torcida do Corinthians no Pacaembu. Foto: Paulo Zapella/S.C.C.P.

Fundação do Sport Club Corinthians Paulista

Nesse contexto, em setembro de 1910, surge um clube denominado Sport Club Corinthians Paulista. Nascido no bairro operário do Bom Retiro — perto da estação da Luz e com forte presença de imigrantes —, organizado por trabalhadores italianos, portugueses e brasileiros, este clube praticou o futebol no único espaço que aquela sociedade lhe reservava: a várzea. Diferentemente de clubes com a mesma origem, o Corinthians Paulista percorreu caminhos diversos, que contribuíram para a ocorrência de algumas transformações na organização do futebol em São Paulo.

O Corinthians Paulista não se contentou em viver eternamente o espaço varzeano. A partir de um rápido progresso esportivo, passou a buscar participação no futebol oficial. Isto porque, segundo a “história oficial” do clube, já em 1912 não existia qualquer clube na várzea capaz de vencê-lo.

Nesse ponto, é interessante observar que, na “história oficial” do Corinthians, apresenta-se os primeiros anos do clube como decisivos, já que sedimentaram a condição de uma associação esportiva pautada por romper com todas as dificuldades impostas. Porém, quando se procura conhecer como foi a vida do clube nos seus anos anteriores à entrada no futebol oficial, mal conseguimos ter dados acerca de resultados de partidas. Tais resultados chegaram ao meu conhecimento em função da cuidadosa pesquisa de Celso Unzelte, materializada pelo Almanaque do Timão, publicado em 2000. Mesmo assim, os campeonatos e torneios disputados pelo clube ainda são desconhecidos.

O objetivo corinthiano veio ao encontro das mudanças que ocorriam no futebol paulistano. Este esporte tornava-se cada vez mais popular. Espaços maiores eram-lhe dedicados pelos periódicos. A visita de um clube estrangeiro, ou mesmo do Rio de Janeiro, era motivo de muita festa e euforia. Ao mesmo tempo, alguns clubes da LPF ampliavam a buscar novos jogadores nos clubes dos arrabaldes.

Assim, o Corinthians Paulista começou a trabalhar no sentido de se tornar, talvez, o primeiro clube de bairro de São Paulo a ingressar no futebol oficial. Este ingresso apresentou significações importantes, tanto para o próprio clube, quanto para o futebol paulista em geral.

Para o clube nascido no Bom Retiro, participar da LPF talvez tenha custado muito, já que ele esteve sempre preocupado em atender a todas as exigências que a elite dirigente do futebol lhe apresentava. Buscou comportar-se segundo o desejo dos controladores do esporte bretão. Em função disto, renegou parte de suas raízes. Procurou apoio de políticos locais. Tentou fugir ao estigma de clube de bairro, mudando a sua sede para o centro da cidade. Enfim, as concessões do Corinthians Paulista se concretizaram para que fosse possível a sua entrada e permanência no futebol oficial, ocorrida no início de 1913.

Portanto, a prática corinthiana estabeleceu-se de forma paradoxal. Pois, de certa maneira, o clube não aceitava mais a forma elitista de organização do futebol. Resistiu, no sentido de poder ingressar na LPF. Mas, no mesmo processo, rendeu-se, a partir do momento em que agiu da maneira como a entidade oficial determinava.

Daí o fato do Corinthians Paulista, no futebol oficial, ver-se obrigado a assumir conflitos internos. Isto deu-se porque parte dos associados não concordava com os caminhos que o clube seguia. Esses conflitos podem ser verificados na leitura das Atas de Assembleia, documento produzido a partir de 1913. Torna-se fato de que o clube, nascido pobre no Bom Retiro, não seria o mesmo.

Vale ressaltar que este processo resultou numa relativa popularização do futebol em São Paulo. Relativa porque, se, por um lado, as classes populares foram capazes de ocupar um espaço que antes era de exclusão social, por outro, o comando do futebol continuava nas mãos de um pequeno grupo elitista.

Sob outro aspecto, torna-se necessário perceber que este foi apenas parte do processo de popularização do futebol na cidade. Outros fatores corroboram este processo. Essa popularização, entendida como a possibilidade de toda a população participar das entidades oficiais, sem restrições sociais, econômicas ou raciais, recebeu forte contribuição dos importantes clubes que congregavam imigrantes, por exemplo. Não resta dúvida, porém, que a fundação do Corinthians Paulista há 108 anos trouxe importantes transformações para a cidade de São Paulo e a prática do futebol.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Plinio Labriola Negreiros

Professor de HistóriaEstudo a História do Corinthians Paulista e do Futebol

Como citar

NEGREIROS, Plínio Labriola. A fundação do Corinthians Paulista. Ludopédio, São Paulo, v. 111, n. 5, 2018.
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