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Fútbol argentino (IV): grandes hinchas

Fabio Perina 19 de agosto de 2020

A recente passagem a cerca de um ano do consagrado italiano De Rossi pelo Boca, embora rápida e pouco brilhante, trouxe em cascata várias ‘confissões’ desde então de grandes jogadores do futebol brasileiro e até do europeu do sonho de jogar na Bombonera por toda a paixão da torcida. Essa, certamente ao lado do Centenário, do Maracanã e do Azteca, está entre as canchas mais místicas do mundo! (Embora ao Monumental de Nuñez não lhe falte nada por também ter uma consagração mundialista assim como as três anteriores). Sem dúvida para a imensa maioria de torcedores sul-americanos esse também é um destino muito desejado, sobretudo quando em uma fase de grupos de Libertadores, pois permite meses de planejamento da viagem, inclusive por longas e sinuosas estradas para os mais envolvidos e com mais “aguante”. Conceito já fartamente analisado nas últimas duas décadas pelos pesquisadores argentinos. Algo de consenso entre eles é que enquanto apenas alguns hinchas são tidos como violentos, há uma aguantización de todos os sujeitos do futebol argentino que legitimam sua lógica. Vide ser uma estrutura que permitiu, por exemplo, que Raúl ‘Pistola’ Gámez, capo da barra do Vélez, brigasse contra os ingleses na Copa do Mundo de 86 e se tornasse presidente do clube depois de 30 anos!

Jugador Nº 12, barra brava de Boca Juniors, apelidada de La 12. Foto: Wikipedia.

O objetivo aqui nesta crônica será de alguns comentários gerais de hinchadas e seu entorno social. Inclusive, para deixá-la mais atrativa, buscarei materiais de referências audiovisuais ao invés de bibliográficos. Se nestes últimos anos em que vivemos tem sido farta a ‘indústria do flashback’ dos anos 90, alguém pode imaginar como será a memória de valorização dos anos 2000? Para o nosso tema, foi a década em que o estilo argentino mais influenciou torcedores brasileiros. De forma indireta, com um novo estilo de canto somado ao repertório das torcidas organizadas mais tradicionais. De forma direta, como a formação das novas barras Geral e Guarda Popular que rapidamente passaram a ser os maiores grupos na arquibancada de Grêmio e Inter (além de várias outras experiências por outros estados com duração e popularidade variada). Evidente que ao longo dos anos 2000 alguns fatores surgiram como estímulo para esse maior intercâmbio de torcedores brasileiros e argentinos: a popularização da internet que ajudou em pesquisas e em estabelecer contatos, a ampliação dos participantes da Libertadores e seu impacto simultâneo nos clubes realizarem mais investimentos financeiros e nos torcedores mais esforços para viajarem mais (uma possível evidência que o aguante veio para ficar e resiste a qualquer conjuntura é que mesmo durante crises econômicas tem sido comum as maiores torcidas do continente terem arquibancadas visitantes cheias na Libertadores). Se somente um levanta a taça, vários outros podem ter uma grande experiência de copar um setor visitante em outro país e tentar disputar ao menos por uns minutos com a hinchada local qual vibra mais. Um paradoxo que noto que o aguante ‘raiz’[1] critica a midiatização por criar consumidores conformados pela televisão ao invés de torcedores vibrantes. Embora cada vez mais ele se difunda justamente por meios midiáticos que também incorporam as suas disputas. Para dar um aperitivo das disputas por aguante, a seguir uma última comparação de letras de músicas bem conhecidas: a primeira cantada pelo Independiente e a segunda uma réplica direta cantada pelo Racing tenta refutá-la.

“No se como voy, no se como vengo / Solo se que te vengo a alentar / No puedo explicar este sentimiento / Se lleva adentro no puedo parar / Vamos independiente todo va a estar bien / Como siempre te seguiré / Como siempre te alentaré / Vamos independiente vamos a ganar / Que la vuelta yo quiero dar / Todos juntos a festejar / Que la academia no existe mas”

“Yo se como van yo se como vienen / si vas a la cancha vas en celular / si vos sos amigo de toda la yuta / y con la academia vos no te plantas / Ay independiente que risa me das / te corrió la guardia imperial, / fueron todos al hospital, / Ay independiente que puto que sos / todos saben que sos cagón / todos saben que sos botón / independiente PUTO fue al hospital / independiente PUTO fue al funeral”

A Copa 2014 pode ser vista como um grande laboratório ‘tardio’ desses anos anteriores. Pois os torcedores mais envolvidos de clubes gaúchos e cariocas foram bastante atuantes em dar um bom recebimento a seus aliados de clubes argentinos durante o torneio. Vide autoridades e jornalistas se alertarem meses antes para a chegada de muitos torcedores argentinos cruzando a fronteira. Tanto é que o intercambio musical foi imediato: o tão ecoado “Brasil, decime que se siente” logo adaptou o ritmo para clubes como o “Vengo del barrio de Boedo” (San Lorenzo) e “Mulambo, me diz como se sente” (Vasco) e outros mais. Enquanto os torcedores bem menos envolvidos, considerados “de seleção brasileira”, como não tinham vínculos pessoais com esses visitantes tiveram um olhar exótico por estarem longe de sua zona de conforto: viajarem largas horas em estradas, acamparem em praias e principalmente beberem e festejarem por todo o dia e noite. Se alguns desatentos ainda tinham dúvida, tiveram finalmente uma prova definitiva de todo o aguante dos argentinos com sua seleção. Mesmo com um “pachequismo canarinho” (termo de várias décadas atrás) que encontra sua zona de conforto no jejum de títulos da seleção argentina desde 93, é difícil contestar que nessa outra disputa fora de campo eles alcançaram o topo. Se algo serve de consolo, os intercâmbios culturais raramente são de via única e músicas brasileiras já viraram temas de cancha na Argentina cantando adaptações de Xuxa, Ana Carolina e Leandro e Leonardo, por exemplo.

Hinchada argentina durante a final da Copa do Mundo de 1978. Foto: Reprodução/Twitter.

Ao tentar desenvolver uma anatomia dessa década de 2000 (prolongada a mais meia década quanto às hinchadas), me parece possível fazer uma livre associação entre um contexto muito particular. Na Argentina, a década de 2000 de fato começa em seus aspectos sociais e políticos no final de 2001 quando a forte crise econômica fez o sistema político se diluir com seguidas renúncias de presidentes em poucos dias. Desde o fim da ditadura em 83, foi o momento de maior agitação popular consagrando novas táticas de protestos como panelazos e cortacalles. Sendo acompanhados por uma nova estética através de novos gritos deixando cancha e calle como espaços igualmente disputados por aguante. O Kirchnerismo, a partir de 2003, reestabilizou o sistema político e social através de um mandato de Néstor e mais dois de sua esposa Cristina. Um dos principais gritos de sua militância a seguir mostra essa base futbolera:

“Qué te pasa gorila? Todavía seguís esperando? Qué te pasa gorila? En Clarín están todos llorando! Van pasando los años y escuchamos a tus dirigentes Que el gobierno se cae y al gobierno lo banca la gente! Con Cristina los pibes están cubiertos! Con Cristina TENEMOS LA LEY DE MEDIOS! Con Cristina hay un gobierno diferente Y este proyecto, gorila, a vos te duele!” (Obs: o uso do termo ‘gorila’ remete à oposição histórica entre militarismo/golpismo e peronismo).

Um elemento que pode ser recordado para tematizar o período é que a transição do punk rock (grupos como “Dos Minutos” e “La Renga”) para a cumbia villera (grupos como “Pibes Chorros” e “Damas Gratis”) como os principais ritmos de influência aos hinchas. Inclusive com cumbias dedicadas a craques ascendentes da metade da década de 2000 como Tévez e Agüero. As frequentes críticas e insultos presentes nos dois estilos musicais contra a ordem e principalmente contra a polícia sugerem ainda mais esse vínculo cancha-calle tão próximo. Embora nem sempre politicamente tão explícitos. A seguir dois trechos de cumbia, inclusive bastante difundidos pelo continente diante da midiatização do aguante já comentada, com um primeiro trecho de revolta e um segundo de apoio:

“Hay policia que vida elejiste vos / el verdugear a la gente es tu vocacion / matar a la gente pobre es tu profesion / y asi brindarle a los ricos la proteccion! ya vas a ver las balas que vos tiraste van a volverrrr” (com várias adaptações para calles e canchas)

“Viene el fin de semana / Todo’ a la cancha vamos a ir / Está todo preparado / El bombo y el trapo para salir / Al equipo que tiene mas aguante / Llevo dentro del corazón / Saltando, cantando, prendidos a los trapos / Dejamos el alma en el tablón”

Outro grande destaque audiovisual ao longo da década de 2000 que não pode faltar uma menção foi o programa ‘El Aguante’, pois de tantos programas que se havia de esporte e/ou entretenimento finalmente se dava aos hinchas seu devido protagonismo. Não se pode ter a pretensão de sentenciar que esse era um programa “de barras”, pois sendo representados diversos hinchas de todas as idades e de diversos clubes. Assim como a própria mídia se seduziu com a narrativa do “aguante”. Uma midiatização torna famosos capos de barras como Di Zeo da 12 e Bebote dos Diablos Rojos. Mas em paralelo também torna famosos hinchas militantes como o anônimo “Gordo” do Rosario Central e o conhecido Adrián “Panadero” Napolitano do Boca.

Caminhando para o fim da crônica, se ainda está longe de se ter qualquer prognóstico sobre como será o hincha dos anos 2020, qual a lembrança principal ficará do hincha da década de 2010? Sinceramente, espero muito que não seja a da recente série internacional de streaming “Puerta 7”. Por ela expressar forte afinidade subjetiva com a elitização/criminalização do hincha como a única ‘solução’ do Macrismo para se distinguir do Kirschnerismo quanto à organização do futebol conforme mostrei em outra crônica. Por um capricho do destino, essa ruptura eleitoral em outubro de 2015 teve um claro drama para o futebol que a influenciou em suas polêmicas: o reaparecimento do “Panadero” como o principal responsável do episódio do gás de pimenta em maio do mesmo ano suspendendo um Superclasico pela Libertadores. O levantamento de vida pregressa do indivíduo levou à rápida descoberta de sua aparição justamente no programa “El Aguante” no ano 2001. Elementos de sobra para o também rápido lançamento de uma cumbia sobre o tema tratando com humor um paralelo com seu ofício profissional. Ainda sobre essa memória em disputa, a recente e vigorosa organização de hinchas e sócios dentro de cada clube para barrar em assembleias o projeto macrista de clube-empresa deixa alguma esperança que o futebol dos anos 2020 em diante possa ser mais popular e para isso a preservação do aguante é fundamental.


Nota

[1] Arrisco dizer que há uma utopia no aguante, pois de alguma forma ele permite que o desempenho dentro de campo entre clubes grandes ou pequenos seja relativizado diante de uma nova competição fora dele entre tantas hinchadas através de uma interação mais horizontal, espontânea e sem filtros midiáticos.

Materiais de apoio

https://www.youtube.com/watch?v=1IOGFENyGJM

https://www.youtube.com/watch?v=jhHXPHlzv84

https://www.youtube.com/watch?v=BKBvjFpv_7o

https://www.youtube.com/watch?v=JqdarWNDcao

https://www.youtube.com/watch?v=TueoYH83g-A

https://www.youtube.com/watch?v=MUUrW7xJSw4

https://www.youtube.com/watch?v=_KvVu-hpnKg

https://www.youtube.com/watch?v=fOI3zMGWX2o

https://www.youtube.com/watch?v=1DuMxfL5S5Y

https://www.youtube.com/watch?v=UX4JwyE_GMg


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Fútbol argentino (IV): grandes hinchas. Ludopédio, São Paulo, v. 134, n. 43, 2020.
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